quarta-feira, 30 de setembro de 2015



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MARTHA MEDEIROS

PODER E STATUS


Três anos atrás, fui a Brasília receber a Ordem do Mérito Cultural. Eram entre 30 e 40 agraciados de diversas regiões do país. Chegando ao hotel, soube da programação: a entrega da comenda seria na manhã seguinte, no Palácio do Planalto, e à tardinha haveria um coquetel no Palácio da Alvorada. Fomos avisados de que cada um de nós teria um carro com motorista à disposição enquanto estivéssemos na cidade.

O dia amanheceu. Enquanto me arrumava para a cerimônia, fui até a sacada do quarto e vi uma fila de sedans pretos enfileirados na porta do hotel. Desci até o lobby para juntar-me ao grupo. Então, em fila, fomos conduzidos cada um para um carro, e saímos em comitiva, todos ao mesmo tempo, para o mesmo local. Patético, pra dizer o mínimo.

Não estou depreciando a honraria concedida, da qual me orgulho muito, mas óbvio que tinha algo errado ali, como sempre teve.

Na Suécia, deputados moram de segunda a sexta em apartamentos funcionais de 40m2 com lavanderia comunitária. Não têm empregados. Seus gabinetes de trabalho possuem 18m2, sem secretária, assessor ou carro com motorista. O dinheiro do contribuinte não é usado para privilégios de qualquer espécie. Além do bom uso do dinheiro público, essa postura é um seletor natural: quem quer mordomia, que bata em outra vizinhança. Entra para a política apenas aquele que deseja servir ao país, e não ser servido por ele.

O papa Francisco, dias atrás, circulou por Washington a bordo de um automóvel compacto e popular, um gesto simples que ajudou a redefinir o que é poder. Todos nós merecemos eficiência e conforto. Buscar mais que isso não é crime, mas é uma necessidade supérflua. Moramos em apartamentos mais espaçosos do que de fato precisamos, contratamos funcionários para fazer o que poderíamos fazer nós mesmos e dirigimos veículos cuja potência a lei nem permite testar (qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em cinco segundos, a não ser que estejamos fugindo da polícia?).

Em nossa sociedade, a aparência reina. O bairro em que você mora, a marca do seu jeans, o hotel em que você se hospeda: além do benefício real (a qualidade) há o benefício agregado – o status. Tudo bem. Só que status e poder não são a mesma coisa.

Status é ranking. Costuma ser valorizado por quem verticaliza as relações. Não vejo problema em se proporcionar coisas belas, saborosas, requintadas. Se são pagas com o próprio suor, é um direito adquirido, mas não confere poder algum, apenas bem-estar privado.

O poder é horizontal. Poderoso é aquele que distribui, compartilha, multiplica. Que produz ideias, arte, soluções, e as torna úteis e benéficas para os outros. Que não passa a vida tentando preencher o próprio vazio.

Não precisamos que nossas coisas falem por nós, a não ser que nossos atos já não digam nada.

sábado, 26 de setembro de 2015



27 de setembro de 2015 | N° 18307
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Quatro fatos e uma pergunta


Dotado de uma importante rede de universidades, com décadas de atuação intelectual, com pesquisas, publicações, simpósios, etc., o Rio Grande do Sul não tem produzido – ou não tem trazido a público – interpretações sobre o Brasil. Talvez eu esteja cometendo injustiças, mas só vejo duas figuras gaúchas com demonstrada capacidade de apresentar de público leituras de conjunto sobre o país. 

O primeiro foi Vianna Moog (1906 – 1988), com obras como Bandeirantes e Pioneiros, em que desenhou um contraste entre a colonização do Brasil e aquela dos Estados Unidos. O segundo foi Raymundo Faoro (1925 – 2003), autor de Os Donos do Poder, ensaio de interpretação sobre a formação do Estado brasileiro, apropriado desde sempre pelos grupos que sucessivamente chegaram ao poder e dele passaram a se servir como se ele fosse coisa privada.

Por que só eles?

Não estou desconsiderando escritores que alcançaram forte público nacional, como Erico Verissimo, Moacyr Scliar ou Caio Fernando Abreu, para citar de novo apenas gente já ausente; nem estou esquecendo intelectuais de importância, como Moysés Vellinho ou Décio Freitas. O certo é que, salvo os dois antes mencionados, não produzimos aqui interpretações gerais do país, nem em ficção. Por quê?

2 Com todas as suas limitações históricas, por sinal raras vezes iluminadas com ênfase, a experiência história da República do Piratini teve o inegável valor de ser, bem, republicana, numa conjuntura histórica em que estava em jogo o futuro da monarquia no Brasil. Houve uma guerra, sustentada por longos anos; no centro político do conflito estava uma reivindicação de maior autonomia, negada às províncias pelo poder central daquela jovem nação (a Independência aconteceu meros 13 anos antes da eclosão da guerra sulina) como antes havia sido negada à colônia portuguesa pela metrópole. 

O desfecho da guerra foi um arranjo à moda brasileira, não à moda platina: na Argentina e no Uruguai, os derrotados vão para o exílio curar as feridas (e eventualmente pensar no assunto, como ocorreu com Sarmiento, que lá escreveu um clássico de seu país, o Facundo), mas no Brasil as elites sempre dão um jeito de comporem as coisas, excluindo os de sempre, índios e negros especialmente. Conciliação pelo alto, como se dizia: perdão total do Imperador aos rebeldes, ratificação de seus atos durante a República, etc.

Terá tido esse desfecho algum papel, a longo prazo, na ausência de pensamento crítico sobre o conjunto da nação brasileira? A guerra separatista e essa paz conciliadora terão exercido sobre as elites intelectuais algum poder limitante, obrigando-as a tarefas locais e mesmo localistas, tão somente?

3Como uma espécie torta de compensação, o Rio Grande do Sul há 15 anos é o berço quase exclusivo dos treinadores da Seleção. Desde 2001, passaram pelo cargo Felipão (depois Parreira, carioca), Dunga, Mano Menezes, de novo Felipão e Dunga. Isso sem falar de Tite, treinador do time que agora ponteia o Campeonato Brasileiro e candidato a treinar a Seleção, em seguida.

Por quê?

Políticos de projeção e de projeto realmente nacionais tivemos dois, Getúlio e Brizola, um bem e outro mal sucedido na conquista do poder central. Além deles, quem mais? É certo que na geração de Getúlio havia outros destaques, como Osvaldo Aranha, sem ir mais longe. Mas sempre poucos, e no passado.

4 Curiosamente, o Rio Grande do Sul tem apresentado e desenvolvido impressionantes iniciativas de vocação e timbre cosmopolita. A AGAPAN, começada em 1971, é exemplo de luta ecológica até hoje. O MST tem uma forte raiz na organização dos camponeses do norte gaúcho, nos anos 80. 

O Orçamento Participativo conheceu sua mais complexa realização aqui, desde o final dos anos 80, e dele brotou a invenção do Fórum Social Mundial, que fez Porto Alegre conhecida no mundo todo. O Fórum da Liberdade tem papel importante para os liberais brasileiros. No campo da tecnologia, o Fórum Internacional do Software Livre é referência forte em seu campo.

Mas nenhum deles tem o Brasil como foco, objetivo ou âmbito, propriamente. Por quê?


27 de setembro de 2015 | N° 18307 
ANTONIO PRATA

Encontrei Madalena

“Fui passear na roça/Encontrei Madalena/Sentada numa pedra/ comendo farinha seca”. Não foi passeando na roça que encontrei Madalena, mas parado na Doutor Arnaldo, às seis e meia da tarde, ouvindo rádio. A Madalena do rádio me levou a outra, numa sala de aula, em 1985. Não me lembrava dela havia anos, agora quase consigo vê-la na mesa ao lado, na nossa primeira série: o cabelo preto, comprido e cacheado, a pele morena, lábios grossos, uma pequena Sônia Braga de Melissinha, Bic dez cores e estojo coreano.

Falando assim, até parece que eu era apaixonado pela Madalena. Não era. Embora ela me apareça linda, na memória, em 1985 todos a achávamos feia. No colégio que estudávamos, no Morumbi, os modelos de beleza eram a Xuxa e as Paquitas – entre as commodities mais valorizadas na bolsa do primário não estava, como se vê, a melanina. O próprio nome Madalena, penso, destoava das Patrícias, Vanessas e Sofias que admirávamos. Madalena, com seus “as” abertos e consoantes molengas, está para sandália rasteirinha assim como Patrícia, Vanessa e Sofia estão, com suas consoantes pontiagudas, para botas de Paquita.

O trânsito anda, para, a música segue, “entra em beco, sai em beco” e caio numa divagação meio Oliver Sacks: engraçado que a imagem daquela menina, mesmo encaixotada em meus arquivos com o carimbo “FEIA”, não tenha sido deformada pelo juízo de valor. Mudado o meu entorno, mudada minha visão de mundo, a desencaixoto, hoje, e a descubro bonita, por trás do rótulo.

Será? Será mesmo que a imagem não foi deformada? Quem me garante que o presente não tenha embelezado a garota de acordo com meus valores atuais? Pra começo de conversa, a memória foi atiçada pela música. A Madalena de 1985 se misturou à do Gil. Vejo minha colega de infância sentada numa pedra, na primeira serie, de vestido de chita, sorriso brejeiro, como num clipe – reparo que se parece muito com a Camila Pitanga.

Vendo essa Madalena Pitanga, percebo que a melanina está em alta na minha Bovespa pessoal. Será que me livrei de parte dos preconceitos de menino branco, paulista, de colégio particular? Ou a beleza da Madalena é uma espécie de ação – ou reação – afirmativa do meu senso estético, diante dos horrores atuais? O Apartheid praiano, no Rio, as chacinas da PM, em São Paulo, o governo se esfacelando, emporcalhando qualquer bandeira que soe remotamente de esquerda, Que Horas Ela Volta? indo e vindo na minha cabeça: aí a memória encontra a menina morena no meio das Paquitas, Galvão Bueno grita, lá do fundo do meu córtex, “Madalena é Brasiiiil!”, preciso ter esperança no Brasil, um mínimo de otimismo pra continuar saindo da cama, todo dia, pronto, Madalena surge, graciosa, bela, cravo e canela, às seis e meia da tarde, num cruzamento dos meus neurônios.

O trânsito anda, para. “Entra em beco, sai em beco”. O Waze fica recalculando e avisando que estamos cada vez mais longe do nosso destino. Tá tudo travado, tudo zoado. Penso nos comentários que esta crônica irá gerar. Vão me chamar de petista? De machista? De racista? Todo mundo buzina e ninguém ouve nada. A gente devia voltar pra 1985 e recomeçar, do zero. Eu não daria a menor bola pras Patrícias, Vanessas e Sofias, só teria olhos para a Madalena – se é que, algum dia, estudei mesmo com uma Madalena.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
CARPINEJAR

A alegria veste a tristeza


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. 

Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
MARTHA MEDEIROS

A tarde é a nova noite

Qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme: todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa

Estava folheando uma revista quando vi uma pequena nota sobre a inauguração de um bar em São Paulo que tem seu ápice de frequência durante o almoço e nas horas seguintes. O título da nota era: A tarde é a nova noite. Juntei as palmas das mãos, fechei os olhos e agradeci as preces atendidas.

O proprietário do bar, instalado na cobertura de um prédio, alega que a noite de São Paulo ficou tão grande que começou a ocupar o dia também. Porto Alegre não tem uma noite assim tão grande e, na minha modesta opinião, não precisa esperar para ter, pode adotar essa moda agora mesmo e ser moderna hoje, já, imediatamente. A tarde é a nova noite. Meu mantra.

Nos últimos meses, fui a uma festa de casamento de dia, a um show de comemoração de um site de dia e a um lançamento de uma revista numa casa noturna – de dia. Chamei de casa noturna por hábito: qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme. Todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa. Chego a me emocionar com tamanha civilidade.

A tarde é a nova noite. E não precisa ser de tardezinha. Pode ser início da tarde, meio da tarde, pode ser tarde só no nome, pois que cedo.

A vida acontecendo à luz do dia. Consequência saudável de um mundo evoluído, em que as pessoas, por trabalharem online, podem ser produtivas a qualquer hora, em qualquer lugar, sem necessidade de cumprirem expediente rígido e formal, liberando-se, assim, das quatro paredes do ambiente corporativo. Sei que isso ainda é para poucos, que a maioria das pessoas possui empregos inflexíveis, mas não custa sonhar que o padrão de poucos se tornará em breve o padrão de todos, que as pessoas possam trabalhar em horários alternativos e ter disponibilidade para encontrar sua turma para celebrar, gargalhar e prestigiar os espaços de lazer da cidade ainda sob céu claro.

Se isso for utópico demais, que esses encontros com luz natural aconteçam então nos fins de semana apenas, aos sábados e domingos, mas sempre aproveitando o dia (carpe diem!) de dia mesmo.

Estou advogando em causa própria, claro. Assumidamente uma cinderela urbana, é com muito custo que atravesso os ponteiros da meia-noite sem virar abóbora. Logo, prezo tudo que é solar. Entendo que o dia se presta para os esportes, os parques, os sucos, mas acredito que também podemos ter festas e baladas à tarde, sem prejuízo àquelas que não resistem a um paetê – há muito tempo que o brilho virou item fashion ao ar livre também.

A tarde é a nova noite. Eis aí uma tendência original, descolada e livre de ressaca na manhã seguinte. Que a moda pegue – e não largue.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015



23 de setembro de 2015 | N° 18303 
MARTHA MEDEIROS

Amor bandido

Não encontro vocabulário que alcance a dimensão do que sinto. Tenho lido os jornais e também comentários diversos no Face, de todas as correntes. Nunca soube de tanto e nunca tive tantas dúvidas, o que me conforta: dúvida é esperança. Mas esperança de quê?

O único talento dos nossos políticos é o de transferir o poder entre si e o de se lixar para o bem público, que deveria ser o objetivo único. Nossos representantes, eleitos por nós, são tão miseráveis, que preenchem o próprio vazio com cargos. Até uma manchete divulgando que o cara está preso pode satisfazê-lo – antes isso do que o anonimato. Prisão domiciliar está sendo comemorada como uma Mega Sena. Indecentes, quase todos. Dou desconto para um Pedro Simon e outro.

Penso muito na Dilma, no ser humano por trás da presidente, em como deve ser o momento em que ela vai pra cama à noite. Imagino que pense antes de dormir: maldita hora em que venci a eleição, poderia estar hoje em posição privilegiada, apontando o dedo em vez de tê-los apontados pra mim. E Aécio, da mesma forma, antes de dormir deve agradecer a sorte de ter perdido. Logo eles trocarão de lugar e assumirão o discurso um do outro, e a pantomima seguirá. Não foi sempre assim?

Depois de Dilma, virá outro inconsequente. Alternância de partido muda quase nada. O que mudaria alguma coisa seria uma mentalidade incorruptível, estímulo à criatividade e total desapego ao poder. Mujica ainda foi o que de mais novo surgiu por aí, ao mostrar que nem todo governante se envaidece com a própria influência. 

O Brasil bem que tentou, deu seu voto de confiança a Lula anos atrás, e algumas coisas foram melhoradas, mas ela estava no caminho, a casca de banana em que tantos derrapam: a ganância. E lá se foi a ética pro espaço, permitindo a continuidade da velha troca de favores que não se interessa por projetos que beneficiem o povo a médio e longo prazos. Mantêm-se os projetos de interesse imediato, sem visão de futuro, que só sustentam o ego de alguns. O ego, sempre ele.

Infelizmente, ame-o ou deixe-o continua sendo o slogan perfeito pra nós, ainda que representativo de uma época nefasta. Como escolher? Nasci neste país que nunca atendeu a meus ideais, e não consigo deixá-lo e também não consigo amá-lo. Amar o Brasil é amor bandido, é ficar ao lado de quem provoca muita dor e só satisfaz minimamente. Seu lado bom (arte, natureza e o que mais mesmo?) alimenta o comodismo.

Então fico, ainda que a sensação seja a de estar num bote inflável, à deriva, sem saber para onde estou indo: que brasileiro, a esta altura, não possui alma de refugiado? Na beira da praia, em vez do corpo imóvel de um menino, vemos meninos fazendo arrastões: é diferente? É, mas nem tanto. Não existe situação vantajosa em meio a desgovernos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015




22 de setembro de 2015 | N° 18302 
CARPINEJAR

Como uma nota de três reais


Elogio, quando sempre, vira bajulação. Ternura, quando excedida, vira cinismo. Concordância, quando constante, vira sarcasmo. Aceitação, quando submissa, é indiferença.

Amizade é medida (já o amor é perder a medida). Percebo quem é falso pela ânsia de agradar a qualquer custo. É um torturador pelo afago. Alegria se transforma em histeria; a espontaneidade, em afetação.

Não é um contato natural, mas uma negociação: a impressão é de que o outro, que não para de me reverenciar, está vendendo algo que não sei, algo que não estou vendo. É muita simpatia para nada. É muita camaradagem gratuita. É esnobar com uma nota de R$ 3.

Mantenho um pé atrás com quem é abusivamente açucarado. Evito quem é dado ao léu, antes mesmo de estabelecer intimidade. Gritinhos no “oi” apressam o meu adeus. Diminutivos esgotam a minha paciência. Quem se aproxima querido demais falará mal de mim pelas costas. A traição está insinuada na atração artificial.

Não tenho dúvida. Acúmulo de gentileza é véspera de maldade, de oportunismo, próprio daquele que pretende enganar. Desconfio de quem chega com mimimi, só exaltando as minhas virtudes, concordando com os meus comentários. É característica de personalidade maquiavélica, porque me faz relaxar, confessar as dificuldades e abrir a guarda para tirar vantagem.

Não levo a sério quem carrega nos adjetivos, superfatura nas exclamações, endeusa nos cumprimentos. Amigo que se gosta vive se provocando. O que adula é um inimigo disfarçado.

Hipocrisia vem do exagero do perfume. O tipo busca dissimular a carência de banho com borrifadas, procura abafar a maldade e a inveja com o comportamento contrário. Temo mais a chuva de confetes do que os relâmpagos e dilúvios.

A afetação me põe ressabiado. Não aturo a fala dublada – a impressão é de que falta a opção do áudio original. Parece que a voz vem de um ventríloquo. Parece uma tia chata interpretando as vontades de um bebê.

A pessoa se comunica miando, ganindo, arrastando as vogais. Força empatia, ri sem nenhuma piada, é solene sem necessidade. Gente falsa é o mesmo que conversar com alguém fingindo o orgasmo em todo momento. Não tem como acreditar que algum dia será para valer.

Autenticidade implica alternância e até um certo mau-humor. Prefiro o ferrão ao mel.

sábado, 19 de setembro de 2015



20 de setembro de 2015 | N° 18300 
CARPINEJAR

Perdi 1 milhão de reais

Não festejei o meu primeiro milhão porque fumei o meu primeiro milhão.


Eu me dei conta de que se juntasse as minhas baforadas com as tragadas do cantor Renato Godá, amigo de vício e de faixa etária, já teríamos posto fora R$ 1 milhão. Nesta brincadeira existencialista e maldita, torramos um patrimônio difícil de obter. Participamos de um Big Brother às avessas: em vez de ganhar, gastamos a recompensa máxima do reality show.

Cada um fumou duas carteiras por dia durante 26 anos, o que resultaria em R$ 284.700. Se esse valor tivesse sido investido há três décadas em uma aplicação que rendesse 1% ao mês, sem considerar inflação e troca de moeda, o montante atualizado com juros seria de R$ 1.170.117.

Foram quarenta cigarros do amanhecer até o anoitecer desde os 17 anos. Apaguei no cinzeiro mais de 380 mil filtros. Encheria uma piscina olímpica com as minhas bitucas.

O resultado é assustador. Nenhuma morte seria tão cara. Fui um perdulário invisível. Não percebi o investimento porque identificava como um mero troco. Quem adquire cigarro não anota sua compra, e tampouco registra como gasto. Só que empenhei uma parcela fixa diária e interminável de quinze reais. Somadas ao longo de minha história, formam uma bagatela que paralisa os mais incrédulos, digna de prêmio dividido da Mega Sena.

Com tudo o que fumamos, poderíamos abrir uma grande empresa com forte capital de giro. Ou comprar à vista uma cobertura de 300 m2 no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Ou levar cinco carros Santa Fé zero quilômetro para as nossas garagens. Acabaríamos ricos, com uma poupança redentora, não precisaríamos nos preocupar com a crise e muito menos em trabalhar duro todo o mês. Mas cedemos a nossa fortuna imaginária e os nossos pulmões reais para a indústria tabagista.

Não transformamos o nosso suor em sorte, em previdência, em títulos de capitalização, em economias para a universidade dos filhos, ele simplesmente virou fumaça.

Qualquer um é considerado maluco ao queimar dinheiro. Eu e o meu comparsa músico queimamos 1 milhão de reais com a boca.



20 de setembro de 2015 | N° 18300
MARTHA MEDEIROS

Escuta

Amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam


Eu estava diante de um cenário deslumbrante que poucas vezes vi igual. O lugar chama-se Tonnara di Scopello, uma baía minúscula no norte da Sicília, na Itália. A beleza era de deixar qualquer um sem palavras, mas ao meu lado estava uma mulher que tinha palavras de sobra e provavelmente já estivera naquele recanto uma centena de vezes a ponto de não se deixar embasbacar pela vista. A única coisa que ela queria precisava! era falar. Quando cheguei, ela já estava ao telefone. Quando fui embora, ela ainda não havia desligado. Parecia longe de ter esgotado o assunto.

Italianos falam muito, reza a lenda. Mas ela abusava do estereótipo. Não parou de falar nem quando uma menininha de uns quatro anos, que imaginei ser sua filha, veio solicitar sua atenção. Ela passou a mão na cabecinha da criança, enxotando-a com suavidade, e com a outra continuava segurando o celular junto ao ouvido. 

Em pé, de biquíni, caminhava dois passos para frente e voltava os mesmos dois passos, ininterruptamente. E falava. E falava. Meu conhecimento do idioma é limitado, mas suficiente para perceber que ela não estava ditando um discurso e tampouco estava apresentando a defesa da sua tese de mestrado. Ela estava simplesmente conversando sobre a vida, contando casos, isso que a gente faz em mesa de bar.

Por um instante, supus que no outro lado da linha haveria um excelente ouvinte. Mas não me surpreenderia se fosse outra pessoa que também não parasse de falar. Porque nesse ponto chegamos: escutar, hoje em dia, é o de menos. A parte desimportante da convivência.

Aprecio a concisão, logo, fico meio impressionada com quem dá voltas sobre o mesmo tema, com quem reproduz diálogos inteiros (“Então ela disse isso, e ele respondeu aquilo, e ela retrucou assim, e ele então falou que...”), com quem entra em detalhes desnecessários a fim de espichar a conversa, com quem não finaliza o pensamento, e sim emenda um no outro até que se perde: “Onde é que eu estava mesmo?”.

Estava encantado com o som da própria voz. Encantado por ainda existir comunicação verbal nesse mundo de tantas abreviações digitais. Encantado por ser o narrador, o protagonista da cena. Quem não? Somos todos meio italianos, principalmente em mesas de bar, onde todos falam, ninguém escuta ninguém e voltam todos para casa embriagados de afeto e amizade.

Mas escute: se alguém ainda silencia e presta atenção no que você diz (não vale o analista), leve em conta o romantismo dessa atitude, a declaração muda que está sendo oferecida carinhosamente a você. Como diz um amigo meu, amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam.

Do outro lado da linha daquela mulher siciliana talvez houvesse um homem apaixonado. Prefiro essa ilusão do que imaginar que era outra matraca que também não escutava nada.

mar­thamedeiros@terra.com.br

quarta-feira, 16 de setembro de 2015


16 de setembro de 2015 | N° 18296 
MARTHA MEDEIROS

Rock at home


Onde você está agora? No quarto, no escritório, no ônibus? Aliás, que horas são agora? É de manhã, é de tarde, você está entediado, aborrecido, feliz da vida?

Difícil estar feliz da vida diante da situação desalentadora do país e do nosso Estado, mas há que se buscar pequenos prazeres para seguir adiante, e é o que estou fazendo. Neste exato instante (você já pensou sobre a distância que separa o momento em que escrevo e o momento em que você me lê?) estou tomando um cálice de vinho (é noite!) e escuto o novo CD de uma banda que me reconecta com o espírito que eu tinha aos 16 anos e que permanecerá comigo pra lá dos 90 – velhinhas também escutam rock.

O disco: 1 Hopeful Rd, da banda californiana Vintage Trouble, que surgiu em 2010 resgatando um rhythm’n’blues que anda meio esquecido nesta era de música eletrônica, bate-estaca, tum-tum-tum. Já falei dessa banda em sites, blogs, postagens no Face, agora falo no jornal porque sei que roqueiros clássicos sobrevivem por aí, feito dinossauros que se negam a entrar em extinção.

A primeira faixa do disco é vigorosa demais pro meu gosto, mas da segunda faixa em diante é um passeio na estrada. Não sou colunista de música, especialista em nada, então escute por sua conta e risco, mas algo me diz que você irá gostar de pegar essa carona comigo.

Por enquanto, a banda ainda toca em bares mundo afora, em pubs, espaços pequenos (eu assisti ao Barão Vermelho pela primeira vez numa boate que me permitia estar a cinco metros de Cazuza, no mesmo plano, sem distância entre palco e plateia), mas Vintage Trouble já está abrindo shows para o The Who e o AC/DC. Não tenho dúvida de que em breve brilhará sozinha em grandes palcos. Se ela estivesse no Rock in Rio, que começa na próxima sexta-feira, eu marcaria presença na fila do gargarejo, extasiada.

Ao mesmo tempo que divulgo e enalteço a banda, sei que posso estar dando um tiro no pé e eles nunca passarem de azarões, virarem aqueles que quase chegaram lá, quase estouraram, quase lançaram hits. Mas precisamos mesmo de ídolos que chegaram lá? Não basta chegarem a nós?

Ainda estou aqui. Ainda tomando um vinho. Se você está trabalhando e é de dia, me compreenda e relativize, a noite logo chegará pra você, eu ainda estou no ontem – e o rock, neste minuto, toma conta do recinto.

Às vésperas de mais uma edição do maior festival do gênero, me rendo à nostalgia. Estive no primeiro Rock in Rio, em 1985, e continuo até hoje fiel a esse som que perdeu o seu caráter transgressor, mas que ainda exerce sobre mim um efeito que o jazz, a bossa e o samba, por mais sensacionais que sejam, não atingem. O efeito de me fazer sentir viva, a despeito das notícias da primeira página. Tim-tim.

sábado, 12 de setembro de 2015



"Não importa o quanto
essa nossa vida nos obriga a ser sérios.
Todos nós procuramos alguém
para sonhar...brincar...amar..
e tudo o que precisamos,
é de uma mão para segurar,
e um coração para nos entender..." 






MEU ANJO

A amizade é algo inexplicável
que brota em nossos corações.
Um sentimento puro,fraterno
e Divino!
Adoro sua amizade!
Beijo e um ótimo final
de semana








































Feliz Sábado meu Anjo...

"Dizem Que O Amor É Belo, 
Mas Belo Ele Não É,
Belas São As Pessoas 
Que O Tem Em Mãos 
E Sabem Cultivá-Lo."

(( Marcos Love ))


Beijos Com Carinho



RUTH DE AQUINO
11/09/2015 - 22h30 - Atualizado 11/09/2015 22h39

Hominídeos na caverna do Planalto



Como nos livrar dos fósseis que rebaixam nosso presente e ameaçam o futuro de nossos filhos e netos?

Hominídeos com um cérebro diminuto, do tamanho de uma laranja, foram descobertos nas cavernas luxuosas e atapetadas do Planalto. Para ser mais precisa, e não discriminar os homens, também foram encontradas mulherinídeas. Trata-se de uma espécie “prima” do ser humano normal, com mãos, pernas e pés idênticos aos de todos nós, mas com um cérebro atrofiado, dado a decisões incoerentes, mirabolantes, contraditórias, primitivas e suicidas. Uma espécie vivinha da silva em Brasília.

Pesquisadores e eleitores no Brasil acreditavam que essa espécie, batizada de Homo naledi, estaria extinta há milhões de anos. Muito antes, portanto, do Homo sapiens. Ou da “Mulher sapiens”, como bem lembrou recentemente a presidente Dilma Rousseff.

Mas o desastre descomunal que afundou a economia do Brasil e expôs as vísceras de uma política corrupta mostrou que os hominídeos se multiplicaram entre nós. O maior desafio para a população honesta e sofrida deste país é saber como se livrar dos fósseis que rebaixam nosso presente e ameaçam o futuro de nossos filhos e netos.

Precisamos de grandes homens e grandes mulheres que assumam sua responsabilidade e tomem decisões sábias para nos tirar do atoleiro. Nós, os contribuintes, estamos cheios de ser atingidos por balas perdidas no tiroteio insano entre os Poderes.

Essa história de morar num país tropical abençoado por Deus já era. O lado B do Brasil é o lado da bandalha, da bagunça, da balbúrdia. Poderia ser B de bonança. E ainda pode ser, mas não à custa de quem é inocente. Mais impostos? Mais contribuições? Mais aumentos nas contas? Em ambiente de inflação e desemprego?

O que fazem as castas sapiens no Executivo, no Legislativo e no Judiciário? Continuam com sua remuneração intocada pela crise. Ganham reajustes acima da inflação. Mantêm seus benefícios imorais, injustificáveis, e seu exército de assessores apadrinhados. Discutem sobre os “remédios amargos” que eles só receitam, nunca tomam. Conspiram nas sombras e em público, numa dança de alianças oportunistas.

A cada semana, Dilma elege um como bucha de canhão. Uma hora é o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, outra é o chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, e daqui a pouco será o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa. Só não dá para Dilma ir contra seu criador, Lula, porque esse está mais descontrolado do que a inflação, atira no que viu e no que não viu. Afetado pela perda da memória recente, Lula diz hoje o contrário do que disse em 2008. O selo de bom pagador era ótimo, uma prova de que o Brasil tinha se tornado “um país sério”. Agora, o selo de mau pagador “não significa nada”.

Com o Brasil rebaixado para a Série B, os “remédios amargos” anunciados por Dilma e pelos hominídeos do Planalto para equilibrar o orçamento nacional não passam pela goela dos seres humanos normais. Temos o cérebro maior que uma laranja, não vivemos em cima de árvores olhando a paisagem e nossos dedos não são curvados para pegar maços de milhões de dólares. Tampouco temos a quem delatar porque não participamos de nenhuma negociata entre hominídeos e mulherinídeas.

Hoje, Dilma contamina seus ministros com a arrogância e com o total descolamento da realidade. A declaração é de um senador da oposição e faz todo sentido. Só a contaminação presidencial explica que Levy diga, com a maior cara de pau, que os brasileiros não se negariam a pagar mais impostos para ajudar o país. E que todos nós devemos encarar esse aumento de impostos como “investimento”. Investir em que, Levy? Estamos comprando papéis do governo do PT?

No dia 24 de setembro, irá ao ar em rede nacional o programa do PMDB com o slogan “O Brasil está pronto a acertar as contas com a verdade”. Tenho dúvidas.

A verdade dói. Uma notícia discreta na sexta-feira me chamou a atenção: a atriz Myrian Rios, ex-mulher de Roberto Carlos e ex-deputada estadual, não reeleita no ano passado, acaba de ganhar um cargo de R$ 20 mil na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj. Foi nomeada subdiretora-geral de Cultura. O presidente da Alerj, Jorge Picciani, disse que Myrian Rios ajudará a Casa a ser um polo irradiador de cultura no Rio!!! Três exclamações.

Myrian é a mulherinídea que, além de ser contra o direito ao aborto até em casos de estupro, comparou o homossexualismo à pedofilia. Myrian defende, em tese, o direito de demitir uma babá lésbica pois ela pode “cometer pedofilia” contra suas filhas. Também defende o direito de demitir um motorista homossexual porque ele poderia “bolinar meu filho”.  Essa senhora rebaixa a nota da Cultura no Rio. É um símbolo contemporâneo de nosso lado B.


12 de setembro de 2015 | N° 18292
PARALELO 30 | Juarez Fonseca

Nas raízes do Brasil

TREZE DOCUMENTÁRIOS MOSTRAM um país que poucos conhecem

“O Brazil não conhece o Brasil, o Brazil nunca foi ao Brasil”, cantava Elis em 1978 na música Querelas do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós. Muitas coisas mudaram de lá para cá, mas na essência esse desconhecimento permanece. Tanto permanece, que um projeto como Visceral Brasil (As Veias Abertas da Música) é capaz de surpreender e emocionar qualquer pessoa com alguma sensibilidade. São 13 documentários sobre artistas populares de sete Estados, exibidos em 2014 pela TV Brasil e agora lançados em uma caixa de quatro DVDs. 

Com roteiros e direção da cineasta carioca Márcia Paraíso e curadoria da produtora cultural gaúcha Carla Joner, ambas experimentadas no trabalho com o universo da música de raiz, os documentários de 26 minutos cada são o que de melhor já foi feito no gênero, pelo conjunto e pela realização.

Outros projetos, como o essencial Rumos, do Itaú Cultural, já mapearam o país; mas este é diferente. Além de mostrarem os artistas em seus ambientes (cidades, casas, cozinhas, famílias, parceiros), os documentários abrem o olhar para o entorno paisagístico, as marcas das regiões, com cenas de grande plasticidade. 

Acompanhando os sotaques, Márcia, Carla e a equipe da Plural Filmes conseguiram criar uma linguagem própria para cada episódio. Alguns têm interferência externa, como comentários de terceiros; outros restringem-se ao universo do artista ou grupo. A riqueza das expressões pessoais e artísticas, das vidas inteiras nos longes (quase todos são idosos, vários são desdentados), frequentemente produzem um nó na garganta do espectador, uma saudade indefinível do Brasil. Mas o que perpassa os filmes é a alegria.

OS PERSONAGENS

Já relativamente conhecido, por ser uma instituição baiana, Mestre Bule Bule, 68 anos, é cordelista, cantador e sambador ligado à tradição sertaneja. “Patrimônio vivo” da Paraíba, a incrível Zabé da Loca, 91 anos, criou a família vivendo em uma caverna e tocando pífano. Pernambucano, Arlindo dos 8 Baixos tocou durante 23 anos com Luiz Gonzaga e deixou uma legião de seguidores. 

Cego e sem as duas pernas, tinha 71 anos quando gravou o documentário. Ícone do bumba-meu-boi de matraca, o maranhense Mestre Humberto deu seu depoimento aos 74 anos. Os tambores marcam a liderança de Dona Maria do Batuque, 82 anos, que vive em São Romão, norte de Minas. Outro de Pernambuco, o grupo mescla raízes indígena e negra. A herança afro também move o grupo Zambiapunga, do sul da Bahia.

São de Belém do Pará os três personagens mais “da moda” do Visceral Brasil: Mestre Laurentino, roqueiro de 88 anos, que só canta com banda de jovens; Mestre Vieira, 81 anos, tido como o criador da guitarrada; e Dona Onete, 77 anos, mestra na história da Amazônia, uma das definidoras do carimbó. Do extremo Norte, Rondônia, o projeto traz as manifestações dos índios Suruí, com participação de Marlui Miranda. 

E os representantes do extremo Sul são GibaGiba, 74 anos na época da gravação, mestre do tambor de sopapo e da negritude gaúcha; e Pedro Ortaça, 73 anos, remanescente da geração que criou a música missioneira no RS, com sua ideia de romper fronteiras e cantar opinando.

GibaGiba e Arlindo dos 8 Baixos morreram em 2014, antes da estreia do projeto na TV. Mestre Humberto morreu em janeiro deste ano.



12 de setembro de 2015 | N° 18292 
NÍLSON SOUZA

MENSAGEM NA PELE


Na minha infância, tatuagem era coisa de marinheiro. Conheci alguns trabalhadores do porto e me impressionava com aquelas figuras toscas pintadas em seus braços e peitos. Eram desenhos malfeitos, a maioria com motivos relacionados à atividade que exerciam: âncoras, navios, bandeiras, às vezes um monstro marinho ou uma caveira.

Tatuagens eram coisa de valentões. Mudaram os tempos, mudaram os costumes. Atualmente, tornaram-se enfeites para todos os corpos, ganharam cores e formatos sofisticados. Estão em todas as peles, mais para embelezar do que para estigmatizar, como já ocorreu num passado em que identificavam integrantes de organizações criminosas.

Esse rótulo não está totalmente abolido. Recentemente, um militar baiano divulgou pesquisa de 10 anos com delinquentes que passaram por presídios, delegacias e institutos médico-legais, relacionando suas tatuagens com o tipo de atividade que exerciam. Identificou mais de 30 significados. Os autores de mortes de policiais portavam desenhos de palhaços ou do Coringa, traficantes davam preferência para magos e duendes, muitos ostentavam personagens de desenhos infantis com características parecidas aos crimes que praticavam.

No futebol, que talvez seja hoje a atividade em que a tatuagem tem maior visibilidade, prolifera a diversidade. Alguns atletas são verdadeiros catálogos de figuras e inscrições, que vão do nome da mãe ao desenho de uma jogada, como fez o chileno que chutou na trave do Brasil na última Copa e decidiu eternizar a imagem de seu feito nas costas.

Eternizar talvez não seja bem o termo. O nosso Neymar, que ostenta nada menos do que 14 imagens e frases pelo corpo, teve o bom senso de imprimir no pescoço uma mensagem adequada para quem anda sempre muito próximo do êxito e do fracasso: “Tudo passa”. Trata-se de uma verdade digna de ser tatuada.

As modas passam, as guerras passam, a crise brasileira vai passar, a violência e a intolerância vão passar. Nós todos vamos passar, pois estamos de carona neste planeta que gira em torno de sua estrela. O planeta vai passar, e o próprio Sol, garantem os cientistas, um dia também se apagará.

A propósito, tatuagem de Sol significa verdade e luz.



12 de setembro de 2015 | N° 18292 
DAVID COIMBRA

Picasso, quando nasceu

Picasso, quando nasceu, e o Picasso a que me refiro é o pintor, não o goleiro do Grêmio, se bem que, suponho, poucas pessoas irão se lembrar daquele Picasso goleiro, porque ele jogou no Grêmio numa época em que o Inter ganhava tudo, era o Inter de Falcão e Valdomiro, e o Grêmio tinha Picasso, Wilson Cavalo, Ancheta, Beto Fuscão ou Beto Bacamarte e Jorge Tabajara, essa era a defesa inteira.

Note como minha memória é boa para informações mais ou menos inúteis, posso citar de cor a escalação do América de 1974 e a fórmula de Bhaskara e vez em quando, por algum motivo, me pego cantando toda a letra do O Bom Rapaz, do Wanderley Cardoso, e nada disso me serve para nada, então, o que eu dizia é que Picasso, quando nasceu, aconteceu algo inusitado, se bem que, antes de contar essa história do Picasso pintor preciso observar que na época do Picasso goleiro, os anos 1970, alguém espalhou que ele, goleiro, era míope, uma maldade, 

Picasso era bom goleiro, foi uma evolução para o Grêmio, porque antes dele o goleiro era Jair, um baixinho, do tamanho do Romário, inclusive dizem que foi por causa do Jair que diminuíram a altura das goleiras do Olímpico, fato só descoberto pelo sucessor de Picasso, o argentino Cejas, que chegou ao clube em 1976, levantou o braço e viu que o travessão dava no seu punho, então as goleiras foram replantadas.

Mas o que eu dizia mesmo? Ah, sim, o pintor Picasso, quando nasceu, não respirou. Os pulmões não abriram, diriam os antigos. Simplesmente não respirou, ia morrer, aí sabe o que o médico fez? Soprou fumaça de charuto no rosto dele. O nenê, sentindo o cheiro acre da baforada, começou a respirar e a chorar, abriu-se para o mundo que conquistaria anos depois com suas mais de 45 mil obras de arte, um fenômeno de quantidade e qualidade.

O médico fumava na sala de parto. Quem poderia conceber algo assim, hoje em dia? Coisas que eram feitas antes com toda a naturalidade hoje causariam escândalo. O que me leva a pensar: quais serão os nossos atos de agora que assombrarão os pósteros por sua insalubridade?

Arrisco um: discutir com estranhos nas redes sociais. Aí está uma atividade que não tem lógica. Você não conhece o sujeito, mas sabe que ele escreveu uma besteira em algum escaninho da internet, e você se irrita. Por quê? Você acha que conseguirá derramar o bom senso nas cabeças de todos os idiotas do mundo? Você acha que faz diferença discutir com ele?

Não faz. E é definitivamente insalubre.

Neste fim de semana, tente este exercício: quando alguém irritá-lo, conte até 10, faça om, pense na escalação do América de 1974, mas não responda. O silêncio é quase sinônimo da paz.


12 de setembro de 2015 | N° 18292 
CLÁUDIA LAITANO

Hipsters vitorianos

Não tem nada a ver – ou talvez até tenha. Na semana em que a Apple lançou mais uma fornada de produtos com novos recursos, entre eles uma “tela touch 3D” (hã?), o texto mais comentado na imprensa americana não foi uma exposição detalhada de todos os motivos pelos quais aquele celular bala que você parcelou em 12 vezes no ano passado já virou relíquia, mas um relato em primeira pessoa sobre as delícias de viver como se o século 20 nunca tivesse existido.

Na quarta-feira, a jovem historiadora americana Sarah A. Chrisman, especializada na era vitoriana, publicou no site jornalístico Vox um depoimento sobre como ela e o marido, também historiador, decidiram há alguns anos abrir mão, gradativamente, de todos os confortos contemporâneos. Morando em uma casa construída na década de 1880, no Estado de Washington, o casal usa no dia a dia apenas aquilo que já existia na época da rainha Vitória. 

Em vez de computador, caneta tinteiro e lacre de cera. No lugar da geladeira, uma caixa de gelo. As roupas, a escova de cabelo, a pasta de dente, a iluminação e até as bicicletas que usam para passear na vizinhança são originais do século 19, manufaturas de empresas que já existiam então ou recriações.

O texto imediatamente gerou reações inflamadas de ódio e desconfiança, além de muita zombaria. Houve quem escrevesse paródias divertidas, como o sujeito que dizia ter decidido permanecer para sempre em 2012, apesar do sofrimento de viver em uma sociedade que insistia em dar spoilers de séries que ele ainda não havia assistido ou cobrar que ele trocasse seu velho iPhone 5 por um modelo mais moderno. (Levanta a mão aí quem, no Brasil de 2015, não adoraria passar pelo menos um fim de semana em 2012, só pra relaxar...)

Os jovens hipsters vitorianos, sem falar na “dieta paleolítica”, sugerem que o consumo retrô da geração que reabilitou a máquina de escrever, o vinil e as câmeras LOMO está recuando cada vez mais longe no tempo em busca de inspiração para transcender os apelos do consumo compulsório de novos confortos e novas tecnologias que parecem ter tomado conta de todas as esferas da vida contemporânea – mesmo que para isso sejam obrigados a aderir a uma espécie muito específica (e charmosa) de consumismo: o consumismo vintage.

Podemos questionar se o século 19 seria mesmo um lugar tão bom assim para se viver, com legiões de mulheres, negros, judeus e pobres de todas as partes do mundo sendo tratados como cidadãos de segunda classe mesmo pela elite mais sofisticada das grandes metrópoles (duvido que o casal achasse tão divertido viver no Brasil imundo e escravocrata da década de 1880...), mas talvez haja nessa volúpia passadista algum tipo de recado escrito à mão com caneta tinteiro para o futuro: quanto mais a tecnologia nos empurra para necessidades que nunca tivemos, mais aumenta o fetiche em torno de tudo aquilo que parece não ter sido planejado para ficar obsoleto assim que sai da caixa.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015



09 de setembro de 2015 | N° 18289 
MARTHA MEDEIROS


Que horas ela volta? 

Em junho passado, o ator e colunista da Folha de S. Paulo Gregório Duvivier publicou um texto chamado “Nos países em que você lava a própria privada, ninguém mata por uma bicicleta”. 
Muitos elogiaram, compartilharam, mas uma coluna de jornal não é suficiente para mudar a cabeça de um país. Se o texto dele foi um importante tijolinho, no cinema temos um tijolaço que também pode ajudar a construir uma nova mentalidade nacional. Trata-se do excelente Que Horas ela Volta?, da diretora Ana Muylaert, com a extraordinária Regina Casé.

O filme conta a história de uma empregada nordestina que trabalha e mora na casa de uma família do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Ela praticamente criou o filho dos patrões, enquanto que não vê a própria filha há anos, desde que a deixou em sua terra para tentar a vida no Sudeste. Até que um dia a jovem chega a São Paulo para prestar vestibular e viver com a mãe.


Nem um pouco submissa, ciente de seus direitos de cidadã, a garota revoluciona o cotidiano familiar regido pelo tradicional “cada um que conheça o seu lugar”. Ela realmente conhece o dela, só que não é o mesmo de sua mãe, que está habituada a diminuir-se e resignar-se, e que se horroriza com a “insolência” da filha. 


 Em duas horas de projeção, está tudo ali: a invisibilidade do proletariado (a empregada serve os canapés numa festa em que nenhum convidado olha para seu rosto), a gentileza que procura atenuar a culpa pela diferença de classes (a patroa compra um colchão melhorzinho para a garota que dormirá no quarto da mãe, assegurando assim que ela não ultrapassará as fronteiras da ala íntima da casa), tudo embalado na boa intenção que mascara a perversidade da desigualdade. Segundo a própria diretora, o filme trata sobre “as regras sociais invisíveis que nos regem, muitas vezes, sem nossa própria consciência”.

Essas regras invisíveis são desvendadas no filme com tanta veracidade, tanta familiaridade, que se tornam perturbadoras. A certa altura, a personagem de Regina Casé tenta explicar para a filha que ela não pode aceitar os agrados dos patrões, pois eles oferecem sorvete e convidam para sentar na sala apenas por educação. “Eles têm certeza de que diremos não”. Até que a classe emergente começa a dizer sim, a reconhecer o verdadeiro lugar a que pertence, e a pirâmide desestrutura-se.

A que Horas ela Volta? sintetiza o momento atual do Brasil, evidencia as razões dessa guerra de nervos partidária, expõe o estresse gerado quando uma teoria demagógica se aproxima da prática, revela o indisfarçado incômodo de assistir à ascensão intelectual e econômica de quem, até então, existia apenas para nos servir. Enfim, escancara o susto gerado pela perspectiva de que todos terão que lavar sua própria privada um dia.

sábado, 5 de setembro de 2015


06 de setembro de 2015 | N° 18286 
CARPINEJAR

Ele morreu me dando a mão


Sou um mensageiro, um carteiro à paisana. Desde pequeno, sinto que psicografo os vivos para os vivos. Mas não imaginava que pudesse estar envolvido seriamente num outro casamento.

Descobri que o aposentado Luiz Fernando, 60 anos, conhecido como Beliche pela família, morreu segurando o recorte de minha crônica “O amor depois do divórcio”.

Ele dormiu numa quinta-feira, em 4 de abril de 2013, e não acordou mais, devido a uma parada cardíaca.

Durante um mês, não tirou o texto publicado em Zero Hora (17/3/2013) dos seus bolsos. Transportava da calça ao casaco. Virou sua segunda identidade: amassada, dobrada, com a tinta curtida do braile da releitura.

Não largava a proximidade com aquelas palavras, que se transformaram em seu pingente de São Jorge, seu escapulário de papel, cortado bruscamente com as próprias mãos da revista Donna.

Entregaria a crônica para sua ex-mulher Ana Maria. Estavam separados havia cinco meses, depois de 15 anos dividindo a mesma casa.

Angustiado com o fim da relação, porém esperançoso de que isso não significava o fim do amor, naquela confusão de não prever o que virá e buscando corrigir os seus erros.

Ele decidira não continuar distante da paixão de sua vida, apesar das brigas e dos desentendimentos, só que faleceu a uma semana da audiência de divórcio.

Luiz Fernando acalentava o sonho de ler a crônica em voz alta na sessão do Juizado. Planejara uma reaproximação maiúscula, contundente, definitiva. Seria sua forma de pedir desculpas e assinalar o quanto aprendera com a distância e o sofrimento.

Vinha decorando o meu texto, memorizando letra por letra, vírgula por vírgula, sendo dono da reflexão mais do que eu já fora um dia:

“Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito. Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto. Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas. Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento”.

Fui sua última carta, fui sua confissão, fui seu testamento, fui sua boca murmurando beijos, fui seu braço formigando abraços, fui o seu derradeiro aceno.

Ele nunca declamou a crônica para sua ex-esposa, nunca expressou o quanto amargava a ausência de sua companheira, nunca admitiu a saudade feroz e inimiga que consumia a sua paciência.

O que ele não desconfiava é que Ana Maria também queria se reconciliar.

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