quarta-feira, 29 de março de 2017



29 de março de 2017 | N° 18805 
MARTHA MEDEIROS

A baixa cotação dos off-lines

Ela estava sentada à minha frente, gloriosa aos 79 anos, uma mulher ainda bela, com a inteligência intacta, amante dos livros e do cinema, com o bom humor em pleno funcionamento, mas com uma deficiência comum a outros que nasceram na Idade da Pedra Lascada: entende bulhufas de computadores. Não usa smartphone, nem tablet, nem iPad. Está alheia ao universo virtual, que, segundo ela, não lhe faz a menor falta. Perguntou a mim: “Tenho esse direito?”.

Ela mesma respondeu: “Descobri que não, não tenho”.

Vive sozinha há uns 25 anos e os filhos moram em suas próprias casas: a família é unida, mas eles não são onipresentes. Nem ela deseja que estejam na sua cola, é independente o suficiente para fazer suas compras, praticar exercícios, encontrar suas amigas, ir ao banco.

Ah, ir ao banco.

Ela é correntista de um grande banco que foi absorvido por outro grande banco, coisa que todo cliente é obrigado a aceitar sem direito a dar pitaco. Ok, nenhum problema. Só que é uma mulher que gosta de ter tudo na ponta do lápis, até porque este “tudo” não é tanto assim. Ela faz contas, como qualquer cidadã. 

Através do extrato do seu cartão de crédito, confere seus gastos mensais. Até que soube que seu banco, agora sob nova direção, não emitiria mais extratos de papel, apenas extratos online. Ela pensou: isso é bom, economia de celulose, mas eles certamente abrirão exceção para quem está fora das redes. E muito calmamente foi até sua agência solicitar a continuidade do recebimento do extrato pelo correio.

Foi tratada como se fosse um alienígena, um ser primitivo a ser estudado por arqueólogos. Saiu de lá sem a solução para essa questão que lhe parecia tão simples, e é.

Pergunta ainda não respondida: idosos (e nem tão idosos) são obrigados a se informatizar? Humilhá-los é uma forma de punição pelo atrevimento de não terem um iToken?

Se você não viu o filme Eu, Daniel Blake, vencedor do Festival de Cinema de Cannes do ano passado, procure assistir por algum canal pago ou pelo DVD: trata da alienação forçada e injusta imposta àqueles que pegaram a revolução tecnológica no meio do caminho e não são mais considerados pessoas que valham o esforço de um atendimento analógico.

A bela septuagenária aqui citada não é um personagem de cinema. É apenas mais uma entre tantos senhores e senhoras que se sentem excluídos por seus digníssimos gerentes de conta, que parecem esquecer que existe vida além dos aplicativos. Até onde sei, o dinheiro de alguém de 35 anos vale o mesmo que o dinheiro de quem tem o dobro dessa idade. Ou não? Bancos, lojas, repartições: não matem seus antigos clientes antes do tempo.

sábado, 25 de março de 2017



25 de março de 2017 | N° 18802 
CARPINEJAR

Por favor, não atrapalhe o amor dos outros

Peço um favor aos hotéis, restaurantes, floriculturas e lojas: renovem o seu cadastro. Não queira conhecer os clientes sem atualizar os dados e demonstrar intimidade.

Relações serão sempre quebradas por uma apressada falha. São floriculturas lembrando que em determinada data você mandou flores para alguém.

Será que acreditam no amor eterno?

Este alguém é um ex. Já está há dois anos num relacionamento e precisa apagar o SMS como se fosse de um amante, antes que se estabeleça uma crise irreversível de desconfiança.

São lojas antecipando para quem está dando um presente. Sempre de um finado. Melhor seria trocar o vestido por uma coroa de flores.

São resorts enviando e-mails para pombinhos que hoje se bicam como corvos. São hotéis procurando antever uma fidelização e destruindo a sua fidelidade. Você faz check-in, e o atendente inventa de nomear o casal pelos antigos registros.

E aquele casal não vigora mais. Como explicar o erro em cinco minutos?

Terá incessantes horas de luta e acareação de madrugada para consertar a ocorrência e provar que não tem culpa nenhuma.

O passeio e o lazer transformam-se numa tortura. Pagará uma fortuna para passear e não sairá do quarto. E não surte efeito chamar à razão para a conversa.

Todos somos infantis ao sofrer por amor, perde-se o discernimento na hora. Você não errou. Não trocou o nome. Quem trocou foram os malditos estabelecimentos.

Nem os 10% e a comissão cobrem os danos emocionais. Custoso explicar que não há virgindade em pessoas adultas e de vida feita.

Loucura acreditar que ecos, atos falhos e ruídos não aparecerão de repente. Existe o passado, mas é somente passado.

Será penalizado por levar a sua nova companhia a ambientes que frequentou com parceiras anteriores, só que não existem tantas opções assim para não repetir os lugares.

Quem conta com muito dinheiro pode variar, porém aqueles que se encaixam numa determinada classe e faixa salarial apresentam nítida limitação de opções e jogam com as mesmas peças.

A força do imponderável estraga a harmonia dos pares. Não tem como controlar o azar. As referências passadas ora voltam trazendo vergonha e medo.

O que não dá para esquecer é que a separação é uma longa desintoxicação, deve-se aguardar que o nome do ex naturalmente prescreva com o tempo. Que o comércio nos ajude e não nos atrapalhe!



25 de março de 2017 | N° 18802 
MARTHA MEDEIROS

Às escuras

Difícil comemorar esses 245 anos de Porto Alegre em pleno blecaute, não apenas literal, mas metafórico

Neste domingo, Porto Alegre está de aniversário. Acenda uma vela. Duas. Três. 245 velas. Talvez elas bastem para iluminar a sua rua, ao menos a sua rua. Aqui perto de casa, teríamos que acender 3 milhões de velas. Um breu.

Porto Alegre, depois que o dia cai, é mais que noturna: é soturna. Eu, intrépida, ainda tenho coragem de sair à noite, mas, nos poucos bairros em que circulo, deparo com um cenário melancólico: um poste de luz aqui, outro acolá, e no espaço entre eles, não sei, não dá pra ver.

Difícil comemorar esses 245 anos em pleno blecaute, não apenas literal, mas metafórico. Feito cabras-cegas, estendemos os braços à procura da nossa ex-alegre cidade, mas tropeçamos em calçadas esburacadas, entramos em ruas sem sinalização e temos medo de quem cruza por nós. Um antigo estádio está prestes a cair de podre, a Fundação Iberê está com a fachada suja e portas semiabertas, o Multipalco ainda não conseguiu verba para sua conclusão, obras se arrastam feito lesmas, e o metrô entrou para o folclore gaúcho como o Negrinho do Pastoreio ou a Salamanca do Jarau. Aí retiramos a venda sobre os olhos e tudo continua escuro, não era uma brincadeira, estaremos mesmo nas... trevas?

Corta. Essa é a parte em que interrompo o relato macabro para lembrar que Porto Alegre tem as canchas de beach tênis ao ar livre, tem o Barranco aberto de segunda a segunda, tem dois estádios de futebol bem aproveitados, tem o incansável Luciano Alabarse batalhando pela cultura – e não só ele. Tem o Brique da Redenção, tem o Araújo Vianna, tem o Teatro do Bourbon Country, tem o Theatro São Pedro, tem a L&PM, tem o Hospital Moinhos de Vento, tem o Zaffari, tem o Instituto Ling, tem a Bolsa de Arte, tem a Casa de Cinema, tem a Casa de Teatro, tem a Casa Destemperados, tem o Sarau Elétrico, tem o Vila Flores, tem a Bamboletras, tem o Fronteiras do Pensamento, tem o Porto Verão Alegre, tem a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga e vou parando por aqui porque estou vendo pela janela um sujeito mal-encarado que está bufando por eu ainda não tê-lo citado, e basta de violência, meu lugar é aqui dentro da Revista Donna, não no obituário – não ainda.

Incluo algo mais acessível para quem não pode usufruir de nada que citei acima: temos também um pôr do sol magnífico que não depende de governo nenhum nem da boa vontade de ninguém, mas, ainda que ele seja democrático e nunca falhe, tem sido insuficiente para vermos alguma luz no fim do túnel. Parabéns, Porto Alegre, mas te queremos mais radiante.


25 de março de 2017 | N° 18802
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O QUE A GENTE APOSENTA QUANDO SE APOSENTA?

Depois de muitos anos, nem sei exatamente quantos, encontrei-o na praia, em Vitória. Caminhava com aquela lerdeza de quem saiu de casa determinado a ir a lugar algum. Com mais cabelos do que a maioria dos contemporâneos e uma condição física macroscópica invejável, contou-me que, desde que se aposentara de sua função burocrática, há 20 anos, alternava residência na praia e na cidade conforme o clima e o humor. Pareceu surpreso quando lhe perguntei como ocupava o tempo e anunciou como se fosse um diferencial da qualidade: “Eu caminho muito!”. “Bom para as pernas”, foi o comentário mais inteligente que me ocorreu.

E então nos despedimos. Ele sem mais o que contar, e eu sem ânimo para argumentar o quanto me parece injusto que esses tantos que aprenderam o que podiam e ainda não começaram a esquecer têm saúde mas, na falta de vontade de fazer alguma coisa útil, contentam-se em esperar a morte, disfarçada de aposentadoria. Um atestado inequívoco de que enquanto faziam o que fizeram preferiam estar fazendo outra coisa.

Claro que as pessoas são diferentes e todas têm o direito de fazer o que quiserem de suas vidas, incluindo nada, e as coisas que energizam alguns enfaram outros. Aliás, são essas diferenças na busca da felicidade que tornam tão pouco produtivos os livros de autoajuda ao proporem modelos padronizados para perfis incomparáveis. 

Por essas discrepâncias, não se pode pretender afinidade entre tipos que consideram que felicidade é andar descalço na praia deserta e os que acham que ser feliz depende de se alcançar um ponto de equilíbrio no máximo de tensão. Sem dúvida, as pessoas que fizeram alguma diferença nesta vida estavam todas no segundo grupo, mas entender essas disparidades e vicissitudes e não tentar modificá-las, além de prática saudável de convívio social, é um exercício de sabedoria.

Sempre tive a curiosidade de imaginar em que momento da vida uma escolha infeliz desembocou neste desânimo, agora irrecuperável. Teria sido vítima daquela apatia que deixa muitos adolescentes com olhar marasmático e que, de tanto ter dúvida do que fazer, acabam se convencendo que não gostam muito de nada e assumem a primeira função que o acaso lhes oferece, e seja o que tiver de ser?

Ou teriam idealizado algum projeto e desistido quando perceberam que era mais difícil do que imaginaram? A principal marca das pessoas de sucesso é a obstinação, e sabe-se que a maioria das desistências ocorre no primeiro mês do investimento, o que mostra o alto grau de resignação e abandono diante das adversidades.

Quando se observa o comportamento atual da juventude, com a marca da informação instantânea e da privacidade pulverizada pelo compartilhamento total, saltam aos olhos dois erros conceituais graves: não há possibilidade de relacionamentos afetivos sólidos na superficialidade do Facebook, nem a mínima chance de realização profissional sem trabalho árduo. Esta geração marcada pela ansiedade, diante da primeira dificuldade, descobre que os amigos verdadeiros se contam nos dedos, e são os mesmos de antes das redes sociais, e que as conquistas profissionais demandam um tempo às vezes exasperante. 

Como os milagres são raros, estes jovens se inspiram em exceções de sucesso e ficam presos à fantasia que, quando percebida como tal, instala um doloroso ciclo de depressão, que é o estopim para a maioria das vítimas de drogadição. Só o encanto da descoberta de algo que lhes acelere o coração dará à vida essa energia que enternece a alma, dilui o cansaço, espanta a monotonia e explica por que, para esses felizardos, o ócio da aposentadoria é insuportável.



25 de março de 2017 | N° 18802 
LYA LUFT

Ah... família

Quantas vezes se discute o tema “família” durante uma vida inteira! Em grupos de mesa de bar, entre amigas (sobretudo mulheres, porque homens comentam menos questões afetivas)! Quanto de queixas em salas de terapeutas e psicanalistas, quanto ressentimento secreto ou evidente contra pai, mãe, irmãos... Mas também: quanta segurança, conforto, alegria e emoção. Quanta descoberta através dos anos.

Lembro desde muito pequena de certa ansiedade em relação a isso. Às vezes, corria para a mãe perguntando: “Você gosta da vovó?”. E a resposta vinha sempre: “Claro, ela é a mãe do meu marido”. E perguntando à avó, a resposta era quase igual: “Claro, ela é a mulher do meu filho”. Aquilo não me tranquilizava muito, mas por algum tempo valia. 

Devo dizer que não havia brigas sérias em minha família, não éramos anjos, apenas pessoas: algum conflito sempre existia e existirá em qualquer desses grupos humanos meio estranhos chamados família, dos quais a gente não pediu para participar, e às vezes gostaria de escapar, raramente conseguindo... E onde tantas vezes se bebe a água fresca e vital de um aconchego que nada mais pode nos dar.

Não realizo com muita frequência o sonho de toda mãe galinha choca, como já me definiram: ter seus pintos perto, à sua volta ou ao alcance de um voo direto e breve. Parte de minha família mora longe, digo looonge mesmo: um filho com mulher na África remota e dois de meus netos, seus filhos, cursando faculdade na Nova Zelândia. Às vezes brinco que, na próxima mudança, quem sabe se transfiram para o Polo Norte e o Polo Sul. E apesar disso, graças aos milagres do cyberspace e do afeto, de alguma forma estamos sempre juntos, eles e nós, a família que por sorte minha ficou aqui.

Por isso mesmo, talvez, as reuniões são tão importantes, e fazem transbordar este coração: os que antes foram meus bebês, minhas crianças, meus adolescentes, agora são mãe e pais, um de barbas brancas, com suas famílias. Suas profissões. Perto ou longe, abrindo caminho neste vasto mundo onde há muito já não posso nem devo protegê-los como quando eram crianças, e eu talvez ainda sonhasse que eram “minhas”.

Isso de ser família tem alguns clarões gloriosos, como quando finalmente todos se reúnem, e muita risada, muita brincadeira, muito abraço, foto, carinho, memória de velhas aventuras: “Lembram de quando alguém nos deu um macaquinho de presente e ele queria morder todo mundo? Lembram daquele cachorrinho? Daquela pescaria na praia? 

Daquela vez em que torci o pé na escola? Daqueles jogos de vôlei na piscina? De quando o diretor te chamou, mãe, porque eu tinha tirado a peruca de um professor que implicava com a gente? De quando a gente se casou? De quando nossas crianças por sua vez nasceram?”. E assim se gastam noites, e dias, e churrascos, e almoços, e felicidades. Não é paraíso, mas é realidade, é chão, raiz, emoção tantas vezes mal disfarçada.

Ando tendo uma dessas dádivas da vida. E me faz acreditar que existe algo nos laços de família que é muito mais do que genes e sangue: é alma e afeto. E que, por mais louco ou chato que ande este grande mundo, talvez este país, uma família amorosa mostra que algumas coisas permanecem, belas e firmes. E que tudo valeu a pena.

terça-feira, 21 de março de 2017



21 de março de 2017 | N° 18798 
CARPINEJAR

Relógio à prova d’água

Hoje vejo celulares à prova d’água, os donos entram na piscina para fotografar ou o deixam cair de propósito na pia fingindo susto e depois se regozijam da durabilidade. Eu entendo o que é isso, já fui adolescente.

Em uma época em que existia apenas telefone fixo e tudo era dividido com os irmãos, eu me senti poderoso quando recebi um relógio à prova d’água aos 13 anos de meu tio Otávio. Era a maior tecnologia daquele tempo.

Quando ele me presenteou, destacou a longevidade: – Pode mergulhar à vontade.

Era algo que não precisava tirar para dormir ou tomar banho. Eu me vi como James Bond chamando um carro pelo visor dos ponteiros. Representou um dos raros momentos em que driblei o ceticismo e me enxerguei invencível, um super-herói de capa e sunga.

A sensação era de que podia enfrentar qualquer adversidade. Gritava para mim mesmo:

– Agora vai.

Imaginava o fim da minha seca de beijo na boca, que viria namorada e aumentaria a roda de amigos me cercando no recreio. Nada disso aconteceu, as melhores lembranças nunca são as que esperamos. Mas era uma possibilidade renovada de vaidade.

Lembro o quanto protagonizei papéis ridículos e felizes: ia ao chuveiro sempre de relógio para comprovar a sua exceção. Não tem cena mais patética do que um homem pelado de relógio de pulso. Talvez só pelado de meia.

Esperava ser perguntado ao longo do dia das horas para ostentá-lo. Na aula, na rua, em casa. Respondia o horário e acrescentava que aquela peça suportava mergulhos. Não tinha nenhum motivo para explicar este detalhe, absolutamente fora do contexto, mas não perdia a chance.

Na praia, andava com ele a tiracolo, três vezes maior do que o tamanho do meu pulso. Um relógio de parede no braço magrinho e corpo franzino. Provocava perguntas dos outros, alegrava-me quando acontecia e alguém caía na cilada e me advertia para tirar o relógio ao pular as ondas.

– Estragará o relógio. Olhava, sério e estudioso, para o meu interlocutor, coçando o bigode invisível:

– Vamos ver o que acontece –, e logo fazia cara espiritual de ioga e desapegado do mundo material.

O relógio resistiu à profundidade do mar, porém o metal não venceu a ferrugem do veraneio de dois meses e fui obrigado a dispensá-lo, completamente avariado, com o pino enguiçado.

O único aparelho que se afogou várias vezes e sobreviveu com o tempo foi o meu coração. Superou a série de amores naufragados da adolescência. Depois que escapamos dos tormentos sentimentais até os 20 anos, estamos vacinados para o restante da vida adulta.

sábado, 18 de março de 2017



18 de março de 2017 | N° 18796 
LYA LUFT

Canção dos homens

(Primeiro, uma erratinha: na “Canção das mulheres”, do fim de semana passado, omiti – mea-culpa – uma palavra essencial: “Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amo menos quando preciso de um pouco de quietude”. Segundo, como há uns 15 anos houve protesto de amigos ou leitores: “E nós, os homens?”, então, aqui vai – também um pouco modificado.)

Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o que estiver fazendo – TV, filho, computador – e venha me dar um beijo e um sorriso bom, não logo cobrando que estou atrasado ou sempre cansado.

Que quando preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou a escute, como se silêncio fosse sinal de falta de amor.

Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem não tem jeito pra isso ou que não sei segurar a cabecinha dele ou vou arranhar sua pele com minha barba... Mas me mostre como se faz.

Que ela não se interponha entre mim e as crianças, mas sirva de ponte entre nós – porque a mãe em geral abre a porta para que o pai entre na vida dos filhos ou ergue um muro para que ele fique de fora.

Que ela nunca me critique diante dos outros, não me humilhe porque estou ficando calvo ou barrigudo, ou porque como ou bebo demais... Nem comente nossa intimidade. Que quando estou com pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de prover para minha família.

Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo. Que não se insinue com minha secretária ou colega para descobrir com eles se eu sou fiel.

Que fale comigo quando lhe causo tristeza ou desgosto, com essa coragem das mulheres – e não deixe que o silêncio da mágoa se acumule entre nós. 

Que se passo algum tempo sem a procurar ela não ironize, e quando a quero abraçar ela me acolha e responda, e não fique impaciente ou rígida, mas mostre que ainda me quer.

Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz.

Que cuide um pouco de mim como minha companheira, mas não como se eu fosse um filho desastrado e ela a mãe mal-humorada: que não me transforme em filho. E que me deixe também cuidar dela do jeito que eu posso, mesmo que às vezes seja difícil entender o que ela tem ou o que quer.

Que com os trabalhos, e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito que tanto me encantou, e que, se for mudando – como todos mudamos com os anos –, que seja para ser mais parceira, não mais distante ou hostil, e que me ajude a ser também assim com ela.

E que se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho demais, ou a machuco consciente ou inconscientemente, ela saiba me chamar de volta com aquela compreensão, sabedoria e alegria que só nela eu descobri, e desejei que não se perdesse nunca – mas que me contagie e me torne mais aberto, menos solitário, menos defensivo, muito mais humano.

Que por ela eu me torne um homem melhor.


18 de março de 2017 | N° 18796 
MARTHA MEDEIROS

Tem homem no mercado

Aconteceu há algum tempo no Rio. Uma mulher colocou um anúncio classificado no jornal em busca de um homem que fosse disponível, hétero e que ganhasse ao menos dois mil reais por mês. Se era piada, funcionou, porque gerou boas gargalhadas. Esta mulher solteira procura não reivindicou honestidade, inteligência, bom humor ou conhecimento geral resumiu-se ao básico do básico. Que o produto não tivesse compromisso com ninguém, que gostasse de mulher e pagasse suas próprias contas.

O que significa que o que sobra por aí é justamente o oposto. A comunidade gay só aumenta. Se o candidato for surpreendentemente hétero, é provável que tenha alguma namorada escondida na manga. E se for hétero, livre e desimpedido, maravilha – mas talvez não tenha grana nem para um pastel de vento, vai encarar?

Vai. Porque o que mais se propaga por aí é a frase “Não tem homem no mercado”, e a mulherada que, como se sabe, não faz outra coisa na vida a não ser se dedicar às pesquisas no súper, se apavora e acaba aceitando qualquer promoção. Homem duro? Serve. Homem casado? Serve. Homem que mora com a mãe aos 45 anos? Serve. Sendo homem, serve.

Até que o cenário piora: é bandido? Serve. Desrespeita você? Serve. Bate em você? Serve. Aí a mulher morre nas mãos desse delinquente e ninguém entende.

Vamos dar um rewind? Começando por parar de divulgar essa ameaça boba de que não tem homem no mercado. Tem, sim. Tem um monte de homem solteiro, separado e viúvo que sonha em encontrar uma mulher madura, companheira e independente. É verdade que há mais mulheres no mundo do que homens, a vantagem é deles, mas apostar no desabastecimento das gôndolas é o caminho mais curto para fazer bobagem. Você acaba se contentando com o que sobrou no fundo da prateleira, já com o prazo de validade vencido.

Quando vemos um homem sem mulher, pensamos: é porque ele não quer uma.

Quando vemos uma mulher sem homem, pensamos: é porque nenhum deles a quis.

Se insistirmos nessa mentalidade medieval, continuaremos propensas a aceitar qualquer carne de pescoço que se passe por filé. Não há por aí quem diga que somos especialistas em detectar os desajustes de ofertas? Então, vamos tratar de pesquisar bem e levar coisa melhor pra casa.

“Quando vemos um homem sem mulher, pensamos: é porque ele não quer uma. Quando vemos uma mulher sem homem, pensamos: é porque nenhum deles a quis”



18 de março de 2017 | N° 18796 
CARPINEJAR

A primeira vez

A primeira vez nunca termina em nossa vida. Sempre haverá alguma primeira vez mesmo na velhice.

A primeira vez é de onde vem a coragem para todas as outras vezes. É enfrentar aquilo que não conhecemos. É não deixar de ir e de fazer, apesar dos calafrios e da vergonha. É entrar no primeiro dia de aula numa escola nova com uma turma de 30 alunos lhe encarando e querendo descobrir quem você é.

É engolir a saliva e atravessar a longa fileira de classes até sentar em uma cadeira que será a definitiva naquele ano. É fingir atenção com o batimento acelerado e responder “presente” com a menção de seu nome e ouvir os pescoços se virando em sua direção.

Ou é sair com alguém de quem se gosta, esperando qual a palavra que será interrompida para dar o beijo (será agora que ela está falando do futuro ou agora que está falando de suas preferências ou agora que me elogia?).

É experimentar o receio de perder o momento certo e depois se arrepender do que não aconteceu e sofrer com o que imaginou de bom. E depois do beijo, como será a primeira noite, o dia seguinte? Será que dar as mãos na rua já significa namoro e pertencimento?

E o tremor de se aproximar para ser negado?

E o temor de se abrir para ser rejeitado?  Olha como é espinhosa a rosa dos lábios: temos que conquistar a aceitação pela nossa aparência e depois a aceitação por aquilo que somos dentro.

Ou como é um tremendo nervosismo começar num emprego, não assimilar como funciona o sistema operacional da empresa e ter que escolher alguém para perguntar e pedir ajuda.

Você disse que entendia e não entende coisa alguma. Viu que não entende. E bate o desespero de atrapalhar os colegas concentrados e interromper alguém com o seu analfabetismo funcional. E cresce o receio de ser uma farsa e ser desmascarado.

A vontade é correr para fora dali sem explicação, mas você fica, estranhamente fica e se acostuma com o suor frio e a gagueira da estreia. Sempre onde o medo reina, a coragem vem e vence. 

Ou a primeira vez em que dirigimos um carro: a rua encurta e os veículos parados parecem que vão se mexer a qualquer momento. Ou a primeira vez em que dançamos como um afogado na pista e somos obrigados a aguentar a chacota enquanto tentamos encontrar o ritmo da música.

Ou a primeira vez em que nadamos e imitamos um cachorro atravessando as águas.

Ou a primeira vez em que cozinhamos e a receita não diz exatamente o momento de misturar os ingredientes.

Ou quando mudamos de país, e o idioma em comum é o choro. Ou quando enxergamos os pais adoecendo e não existe como parar o tempo, resta esperar que o abraço seja mais longo para retardar a partida.

Ou naquele instante em que realizamos um sonho adiado, um curso na faculdade ou um salto de paraquedas, e desafiamos a naturalidade dos jovens. A primeira vez não tem fim. Minutos antes de morrer podemos absorver algo inédito, pois a sabedoria é infinita.

Há quem, por exemplo, somente aprende a perdoar nos instantes derradeiros de seu fôlego e consegue salvar, num único gesto, a sua vida e da outra pessoa em dívida.

quarta-feira, 15 de março de 2017


15 de março de 2017 | N° 18793 
MARTHA MEDEIROS

Horário comercial


Faleceu ontem, terça-feira, depois de alguns anos respirando por aparelhos, o digníssimo Horário Comercial. Ironicamente, morreu fora do horário comercial, às 23h42min da noite, quando o telefone tocou na casa de uma família que já estava recolhida em seus aposentos, de luz apagada. 

Ao levantar da cama, onde se encontrava deitado, quase pegando no sono, o sr. Vladimir, que acorda todos os dias às 5h da manhã para pegar um ônibus a fim de chegar às 7h30min ao trabalho, arrastou as chinelas até a cozinha, onde fica o único aparelho fixo da casa, e, ao atender, escutou a voz indiferente de uma moça desconhecida que passou a listar as vantagens que o sr. Vladimir teria caso renovasse a assinatura de duas revistas que ele, curiosamente, nunca assinou. Sr. Vladimir, muito gentil, mandou a moça para aquele lugar – a cama dela – e voltou para a sua resmungando qualquer coisa que dona Adelaide, que também estava sonolenta, entendeu com muito custo. 

“Outro que morreu”, foi o que seu marido sentenciou. Aquele telefonema perto da meia-noite foi a pá de cal no que se convencionou chamar de “horário restrito para assuntos comerciais e profissionais”. Não existe mais.

Era um período variável. Das 8h às 18h. Ou, mais curto, das 9h às 17h. Mais curto ainda, das 10h às 16h. Nunca ficou bem determinado, mas subentendia-se que horário comercial era aquele em que as lojas abriam e fechavam, os bancos abriam e fechavam, os escritórios abriam e fechavam, os consultórios abriam e fechavam, e, dentro deste espaço de tempo, os que prestavam serviço se entendiam com seus potenciais clientes.

Parece cena de filme mudo em preto e branco.

Hoje o mundo é uma emergência de hospital 24/7. Você manda uma piadinha por WhatsApp às duas da manhã para uma amiga porque sua emergência é a insônia. Você telefona às 10 e meia da noite para um hidráulico porque sua emergência é um chuveiro pingando. Você manda um SMS de madrugada para o ex-namorado porque sua emergência é atrapalhar o novo relacionamento dele. Você manda uma mensagem para seu secretário pelo inbox do Face, em pleno domingo, porque sua emergência é o narcisismo: precisa sentir que estão todos a seu dispor.

Horário comercial, hoje, é apenas uma lembrança. Entrou para o obituário dos bons modos.

terça-feira, 14 de março de 2017



14 de março de 2017 | N° 18792 
CARPINEJAR

A nogueira de minha mãe

Chega uma fase em que visualizamos o tempo que nos falta. Percebemos menos vida pela frente do que a vida que já experimentamos. É quando avistamos, ao longe do oceano, um limite, uma ilha, um desembarque. Raciocinamos que faltam 10 ou 15 anos para permanecer ainda, palpáveis e físicos, entre quem amamos. Realizamos um prognóstico amigável com a nossa faixa etária. 

É um palpite, mas dói como profecia. Temos dimensão da longevidade de nossas ações. O medo se mistura à serenidade, até que estar pronto para partir convirja com os familiares estarem prontos para se despedir.

A minha mãe, com 77 anos, experimentou este fluvial vislumbre. Pediu ao meu irmão Rodrigo um pé de nozes no seu aniversário, coisa de quem nasceu no Interior e jamais se cura das plantas e horta.

Só que o jardineiro alertou o Rodrigo de que a árvore demoraria 10 anos para frutificar.

Dez anos?, pensou a mãe com perplexidade. E respondeu para si mesma que achava que não estaria mais viva, que não valeria a pena enraizar a nogueira. Mas logo insistiu na encomenda.

Os filhos aceitaram o engano, naquela covardia de contrariar a esperança de alguém. Não dá para contestar a esperança do outro, é muito pessoal e cultivada no mar mais profundo.

A mãe chamou a família para deitar a muda no jardim, com direito a pá e discurso. Enquanto ela mexia na terra, ríamos de sua vivacidade.

Depois que terminou, ficou admirando o invisível das folhas. Lembrava uma menina vigiando o pé de feijão no algodão da escola, no pote de margarina da infância.

Daí ela disse:

– Não plantei para mim, plantei para os meus netos.

Nem tudo na vida precisa ser visto para ser amado.

sábado, 11 de março de 2017



11 de março de 2017 | N° 18790 
LYA LUFT

Canção das mulheres

(Há vários anos, publiquei, possivelmente aqui mesmo, na minha primeira passagem por esta casa, uma coluna com esse título, e coloquei também num livro, Pensar é Transgredir. Hoje, nesta semana de homenagem às mulheres, decidi republicar aqui, com alguns aditamentos.)

Que o outro saiba quando estou com medo e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amo quando preciso de um pouco de quietude. Que o outro aceite que me preocupo com ele, não se irrite com minha solicitude, e, se ela for excessiva, saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minhas fragilidades e não ria de mim nem se aproveite disso. Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes. Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a ideia da perda e fique um pouquinho mais comigo nesses momentos – em lugar de voltar correndo ao seu cotidiano profissional, como se aquela fosse a sua única vida.

Que se começo a chorar sem motivo porque tive um dia daqueles o outro não se irrite se não consigo explicar direito o que foi, mas tenha um pouco de paciência: um abraço carinhoso resolve muita coisa.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo “Olha que estou tendo muita paciência com você!”, como se estivesse me fazendo um grande favor.

Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a despreze nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que quando levanto de madrugada e ando pela casa o outro não venha logo atrás de mim reclamando: “Mas que chateação essa sua mania, volta pra cama!”.

Que se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não comente logo: “Poxa, mais um? Você não ia cuidar as calorias?”. Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura em público o outro ainda assim me ache linda e me console.

Que se alguma vez eu lhe perguntar se ainda sou importante para ele, e se ainda me ama, ele não responda meio agressivo: “Ué, mas eu não estou aqui?”.

Que o outro – filho, amigo, amante, marido – não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite com naturalidade quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que, embora às vezes eu me esforce, não sou, não quero, nem devo ser um tipo de mulher-maravilha. Sou apenas uma pessoa, vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa, amorosa e independente: uma mulher.


11 de março de 2017 | N° 18790
MARTHA MEDEIROS

Numa época em que valores essenciais caíram em desprestígio, alguém vai se preocupar com critérios éticos e perder a oportunidade de causar?

Mal na foto

Não sou muito fã de selfies porque, como se sabe, de perto ninguém é normal a distância sempre induz a uma avaliação mais favorável. Uns dois metros pra trás resolveriam o problema (o problema da espinha no queixo, da cara de sono, daquela pelancazinha danada no pescoço), mas a ordem é ficarmos todos embolados uns nos outros. Chegue aqui, dê um abraço e olhe pra câmera. Agora sorria.

Pronto. Somos dois enquadrados no mesmo click. O grude é obrigatório. O braço estendido e o celular virado pra você e seu mais novo amigo de infância é uma declaração ao mundo: não sou um desgarrado, não sou um papagaio de pirata, não sou um desconhecido que estava passando – eu e a figura aqui somos assim, ó (os dois dedos indicadores lado a lado se roçando).

Selfie, basicamente, é isso: um testemunho de intimidade – se ela existe, de fato, são outros quinhentos. Confesso que já paguei alguns (poucos!) micos ao lado de artistas que admiro. Quem nunca caiu em tentação, tendo a facilidade de um registro para a posteridade? Hoje em dia, faria uma selfie com o papa Francisco fácil, fácil. E com qualquer um dos Beatles e dos Stones. E com aquele cineasta octogenário, baixinho e de óculos que todos sabem que eu venero. Aliás, com qualquer ganhador do Oscar, incluindo OJ Simpson, o negrão cujo julgamento foi tema do documentário premiado este ano.

Ops. Derrapei no politicamente incorreto? Não deveria ter usado a palavra negrão?

Pra muita gente, a derrapagem teria sido só esta, pois se há quem tire selfie com Eike Batista, com o goleiro Bruno, com o Guilherme de Pádua e outros célebres, uma selfie com um ex-astro do futebol americano (que matou duas pessoas, mas isso é um detalhe bobo) seria mais do que compreensível. Caso não tenha ficado claro: esse último exemplo foi apenas para provocar.

Você é íntimo do seu irmão, e também do seu amigo Zé e, claro, da sua cara-metade, mas você não quer passar a vida postando fotos apenas com eles, e sim com algum homem ou mulher que tenha escapado do anonimato e se tornado “alguém”. Se essa criatura costuma aparecer na tevê e você aparece junto com ela na sua página do Face, está feita a ponte: você também passa a ser um pouquinho especial.

Nunca foi tão fácil romper a barreira da invisibilidade, basta um breve momento de tietagem com um ator famoso, um músico famoso ou um assassino famoso. Numa época em que valores essenciais caíram em desprestígio, alguém vai se preocupar com critérios éticos e perder a oportunidade de causar?

Uns e outros se diferenciam, mas a sociedade, como um todo, está mal na foto.



11 de março de 2017 | N° 18790 
CARPINEJAR
Educado sempre


As redes sociais destruíram com a etiqueta de só falar mal pelas costas. Era uma regra cavalheiresca tão bonita. Você recebia os elogios pela frente e desconhecia o quanto era odiado em segredo. Havia o burburinho e o silêncio constrangedor, mas nada que mexesse diretamente com a sua vaidade. A vida brilhava mais gentil.

A omissão não correspondia à hipocrisia, mas ao entendimento de que a crítica não poderia virar violência. Falar mal de quem não se conhece direito deveria ser um ato privado, um voto secreto, passível de erro e de mudança de conceito. Na hora em que é público, já se torna automaticamente uma execução ou um julgamento definitivo.

Pensava-se muito antes de desqualificar alguém. Conversava-se longamente com os colegas, testando a temperatura das polêmicas, seja nos cafés, seja nas rodas de amigos. Quantas vezes mudei de opinião escutando os argumentos contrários e livrei a minha boca de sérios enganos?

Somos menos politizados e mais levianos atualmente. O Twitter, o Facebook, o Instagram e os sites de notícias foram transformados em arquibancadas de estádios de futebol, onde prosperam desaforos de baixo calão, sem o mínimo tempo respeitoso da dúvida. Privilegiam-se a instantaneidade e a interação raivosa. Não ponderamos que o ódio é mais rápido do que o amor, e mais superficial.

Não colhemos uma segunda ou terceira opinião. Somos desinformados por beber e acreditar numa única fonte. Será sede de saber ou pressa para aparecer?

Gremistas odeiam colorados e vice-versa, petistas odeiam peemedebistas e vice-versa, e as sutilezas da elegância são soterradas na militância da truculência. Uma coisa é fazer piada, com a inteligência da insinuação, outra é escancarar o pulmão em injúrias e difamações. Uma coisa é dizer que não se gosta de algo ou de uma figura, outra coisa é atacar a vida pessoal. Palavras não desaparecem em bolhas de ar, têm a eternidade digital dos feeds.

Esquecemos que personalidades são também pessoas comuns, com filhos e pais que acompanham os comentários. Será que era necessário dizer que ele é um... ou uma...., apenas a partir de impressões do momento ou cores sectárias?

Não creio na grosseria. Prefiro falar mal pelas costas até que se prove o contrário a falar mal na frente e ser obrigado a provar o que não tenho certeza.

A justiça é melhor do que a retratação. Quando recebo grosserias, respondo com a firmeza dos meus bons modos. Jamais abdico dos princípios herdados em família. Não entro na mesma frequência. Não perco a compostura. A minha mãe é que me ensinou esta lição: se o outro não merece a minha educação, eu mereço ser educado sempre.

quarta-feira, 8 de março de 2017



08 de março de 2017 | N° 18787 
MARTHA MEDEIROS

Lugar de mulher


Ou muito me engano, ou as mulheres estão se reproduzindo feito coelhas. Temos irrompido em bando. É muita mulher no mundo. É mulher para tudo que é canto. Uma ocupação epidêmica.

Alguém irá lembrar que não são tantas assim atuando na política, e tem razão – ainda não somos muitas em plenário –, mas tampouco somos maioria apenas em academias de ginástica e salões de beleza. Estamos espalhadas por todos os lugares que interessam, principalmente em ambientes que envolvem arte, cultura, reflexão, conhecimento.

Num espetáculo de teatro, pode reparar: na plateia, só dá mulher. São 10 para cada homem – e acho que estou exagerando na condescendência, talvez sejam 15 para cada um deles.

Dentro de um cinema, a diferença diminui, mas ainda estamos em maior número (outro dia ouvi uma explicação peculiar: é que mulheres vão umas com as outras ao cinema sem nenhum constrangimento, enquanto que um homem não pode convidar um amigo porque pensarão que ele é veado – não é uma sociedade evoluída a nossa?).

Em exposições: mais mulheres, todas absorvendo novidades. Em saraus: mais mulheres, todas escutando poesia. Em palestras de filósofos, escritores, humanistas: mais mulheres, todas de ouvidos atentos.

Em shows: o número tende a se equilibrar, mas ainda mais mulheres. Dentro de livrarias: mulheres lendo, publicando, dilatando o intelecto.

Ganhamos menos do que os homens, e mesmo assim reservamos parte do nosso salário (quando é possível) para atender às demandas da nossa sensibilidade, a fim de termos uma existência mais rica, mais estimulante.

Agora adivinhe quem lota as cadeiras de bares e botecos: mulheres, claro. Depois de ir ao teatro, ao cinema, à palestra, voltar pra casa? Teria graça. Bora conversar umas com as outras sobre tudo o que foi visto, de preferência com um cálice de vinho ou um chope gelado em mãos.

Em substituição ao obsoleto “lugar de mulher é na cozinha”, surgiu o libertário “lugar de mulher é onde ela quiser”. Mas tem que querer mesmo. Ainda há quem se acomode num confinamento providencial (um casamento careta, uma religião limitadora, um martírio inventado, umas dores lombares) a fim de declarar-se impedida de ser livre.

Cada um sabe de si. Ninguém é obrigado a realizar desejos que não tem. Mas pra quem não cansa de expandir-se, a programação é vasta e é proibido bobear. De tudo o que temos aprendido fora de casa, viver com sabedoria tem sido a melhor lição.

sábado, 4 de março de 2017



04 de março de 2017 | N° 18784 
LYA LUFT

Ainda me espanto

Até algum tempo atrás, eu quase me vangloriava de dizer que nada mais me espantava neste mundo. Depois, mais humilde, dizia “pouca coisa me espanta”. Hoje, eu me espanto a toda hora.

Por isso, nestes dias, lembrei divertida episódios de minha avó paterna, fiel luterana, uma das melhores pessoas que conheci, minha avó Olga, quando o namoradinho dos meus quinze anos, na deliciosa cidade onde nasci e vivi até vir fazer faculdade aqui (hoje é uma bela cidade universitária), voltou de férias no Rio vestindo camiseta e meias cor de gema de ovo. Ela murmurou, mãos postas, em alemão: “O mundo vai acabar”. Não acabou, apesar das meias amarelas, nem está acabando, apesar das tragédias ou óperas-bufas que se desenrolam aqui e no mundo (as locais me interessam sobretudo).

Me espantam os trágicos acontecimentos ligados a pré-adolescentes: coma alcoólico em festinhas ou espetáculos, lindas meninas cobertas de vômito, meninos quase em síncope, drogados, bêbados, sem que os pais imaginem o que se passa. Um médico atende uma grávida de treze anos: ela não sabe de quem é o pai, pois aconteceu numa “brincadeirinha em grupo”. Para o psicólogo de uma grande escola, um dos mais difíceis trabalhos é atender adolescentezinhos levados a sua sala por fazerem sexo no banheiro, meninas e meninos de onze, doze anos. “Cadê os pais?”, arregalei os olhos. A resposta foi breve e dura, pode ter sido exagerada e cruel, mas me fez pensar: “Muitos não têm pais em casa como a senhora pensa. Têm um gatão e uma gatinha”.

Terá sido sempre assim? Estarei perdendo a memória de forma seletiva, esquecendo as coisas que décadas atrás também eram assustadoras? Não creio. Meus filhos nessa idade jogavam bola com os meninos da comunidade ali perto, e era raro um desses colegas de futebol usar maconha. A meninada de menos de quinze anos não chegava frequentemente aos festivais já tendo bebido metade de uma garrafa PET onde misturavam vodca com energético. 

Claro que aqui e ali se sabia de uso de drogas, bebedeira, gravidez imprevista e precoce, mas talvez tudo fosse menos: menos gente, menos propaganda fatal, menos angústia, menos ausência de pais, hoje obrigados a trabalhar fora de hora para conseguir pagar o essencial para a família – ou perseguindo ideais fúteis de físico e dinheiro. 

Menos mimos: a gurizada começava a trabalhar cedo. Hoje, para que sobrecarregar os pobrezinhos ensinando-lhes o valor do trabalho e do dinheiro? Serão pobrezinhos? Seremos hoje mais frágeis do que antes ou apenas mais acomodados? Bebida e outras drogas (álcool é droga) eram menos populares, menos disponíveis e “normais” do que hoje. Meninas ao fazer quinze anos pediam, de presente, uma viagem, não silicone nos seios ou uma “lipinho básica” no corpo ainda nem formado. Sexo ultraprecoce era mais raro.

Sim, estou parecendo antiquada e chata com esse espanto. Não só com as aventuras da meninada: algumas figuras públicas envolvidas em denúncias ou investigações por uma corrupção gigantesca, às vezes, não controlam a grosseria e a língua, e se expõem a um ridículo – como o que hoje circula no cyberspace para divertimento geral – espantando, e muito, esta que aqui escreve.


04 de março de 2017 | N° 18784 
MARTHA MEDEIROS

A pessoa certa

Você pensa que encontrou alguém com quem não irá brigar jamais e que vai se encaixar com perfeição na sua ambiciosa procura pela pessoa certa, esta que não existe

Algumas frases se propagam sem que saibamos quem é o verdadeiro autor. É o caso de Enquanto não surge o homem certo, vou me divertindo com os errados, que eu ouvi pela primeira vez num programa da Marília Gabriela ou será que li numa camiseta? Que a frase é espirituosa, nem se discute, mas é uma cilada: acreditar que existe a pessoa certa é a razão dos nossos problemas de relacionamento. Por que a gente insiste em acreditar em lendas?

Essa entidade abstrata – a pessoa certa – é aquela que vai entender todas as suas manias, vai adivinhar quando você quiser ficar em silêncio, terá o corpo e a rosto que você idealizou em seus delírios românticos e a sua mãe – a sua, não dela – vai aprovar sua escolha assim que abrir a porta da sala de visita. Bastará uma rastreada com o olhar e logo ela piscará pra você como quem diz: agora sim.

Agora sim o quê? Agora você pensa que encontrou alguém com quem não irá brigar jamais e que vai se encaixar com perfeição na sua ambiciosa procura pela pessoa certa, esta que (atenção, spoiler) não existe.

A pessoa certa pra você é a errada. Lembra da pessoa errada?

Morava no cafundó do Judas. Ria alto. Não entendia muito os filmes de que você gostava, mas fazia comentários deliciosos a respeito. Era muito mais velha que você. Ou muito mais jovem que você. Não parava em emprego algum e sua coleção de ex era preocupante. Que saudade da pessoa errada.

Nunca acertou um único presente – mas lembrava de todas as datas. Depois de uma hora e meia ao telefone, queria falar um pouco mais e ficava triste se você sugeria que desligassem. Como amava você a pessoa errada.

Não conhecia nenhum de seus amigos. Nem você os dela. Fumava demais. Ou bebia demais. Ou ambos. Mas nunca teve passagem pela polícia. A fissura por previsões astrológicas era meio exagerada, e já estava na hora de aprender a arrumar a bagunça que era seu apartamento, mas nunca deixou de sair do banho perfumada. E molhando o chão do quarto, claro. Era a incorreção mais bem-vinda para aquele seu momento de entressafra, não era?

Até que surgiu a pessoa certa. Toda a família comemorou e os amigos respiraram aliviados: agora sim, você tinha alguém a sua altura, agora sim, você não precisaria mais passar por altos e baixos, agora sim, nunca mais um barraco, nenhuma surpresa. Agora sim, um casal padrão.

Quase posso ver você, daqui a uns meses, usando uma camiseta que diz: “Enquanto não surge a pessoa errada, vou me entediando com as certinhas”.




04 de março de 2017 | N° 18784 
CARPINEJAR

Eclipse caseiro

Quando uma mulher fica incomodada, ela não falará diretamente com você. Começa o jogo do esconde-esconde ou quente-frio. Terá que descobrir sozinho e rapidamente antes do silêncio se converter em mágoa e incriminação.

O beiço é decisivo para notar que algo encrespou dentro da relação. Não sei como conseguem, mas elas se transmudam da água para o vinagre, sem intermediários faciais.

Os sinais são didáticos.

Se a sua mulher se aquieta de repente, para de comentar e de opinar, de sorrir e de beijar, é que enfrentará o eclipse caseiro. Não tem erro. A lua tapou o sol.

Ela viu ou soube de alguma coisa de que não gostou e que coloca a sua reputação em xeque.

Você continua igual, fazendo graça, e não vê a ameaça do fim e do infravermelho apontado em seu peito.

Ou foi uma frase torta de sua parte e nem percebeu ou ela recebeu uma fofoca fresca dos amigos ou mexeu em seus pertences virtuais e saltou um diálogo suspeito.

Neste momento, deve agir com determinação. Se resolver na primeira hora, estará salvo. Depois de longo tempo, as explicações soam como mentiras.

Parece que teve que pensar excessivamente para encontrar uma saída. Você perguntará o que aconteceu. E ela dirá que nada aconteceu.

Não será fácil. Nem com a repetição do questionamento surgirá a verdade.

Ela passará a fugir do contato visual, mudará de lugar, da sala ao banheiro, do banheiro ao quarto.

Inicia um segundo jogo, o do polícia-ladrão ou pega-pega.

Vá atrás, ela deseja que dê importância para o assunto.

Não desista. Nunca elas respondem de primeira.

A solução virá com a insistência. A birra busca mobilizar a sua preocupação e plantar pânico.

Se realmente aprontou, ela quer que mentalize os pecados e desabafe mesmo que erre e sejam outros problemas muito maiores. Quando descobrir, não invente de menosprezar a ocorrência, muito menos suspire de aliviado.

Esclareça objetivamente o mal-entendido e dê um abraço forte.

Não esqueça o abraço, senão ela não irá acreditar.

quarta-feira, 1 de março de 2017



01 de março de 2017 | N° 18781 
MARTHA MEDEIROS

Um pedaço de papel

As festas de entrega do Oscar são cronometradas por softwares avançados. Efeitos especiais já foram utilizados durante as cerimônias para mostrar atores conversando ao vivo com personagens de animação. A tecnologia é aliada do cinema. No entanto, foi um pedaço de papel o causador do mico histórico no último domingo. O analógico deu uma rasteira na fantasia de Hollywood.

Logo após terminar o seu discurso de agradecimento, o produtor de La La Land, Jordan Horowitz, informado sobre o engano, viu-se na difícil tarefa de dirigir-se a seu concorrente e fazer justiça: “Moonlight é o melhor filme do ano. Não é piada”. E então a equipe do alegre musical desceu do palco arrasada e a equipe do drama subiu ao palco sorrindo, numa irônica troca de posições. Sim, foi uma gafe, um papelão, mas não chego a lamentar a falha que humaniza todo script ensaiado.

Justamente quando nada pode dar errado é que o errado subverte as expectativas e desmonta a farsa da perfeição, lembrando que, afinal, a vida é assim mesmo, nem tudo funciona. Claro que, para a indústria cinematográfica, não é tão simples: o filme vencedor fatura milhões, alavanca carreiras, estabelece parcerias comerciais. Mas, para nós, é apenas mais um filme que ganhará um homenzinho dourado no cartaz. Aqueles 10 minutos de improviso é que entrarão para a história.

De repente, ninguém mais tinha texto decorado e o teleprompter não servia pra nada. A orquestra ficou sem ter o que tocar. Um produtor que já havia agradecido à mãe, à esposa, ao pai, aos filhos e ao Espírito Santo foi do céu ao inferno em segundos. Ryan Gosling, com seu ar blasé providencial, não devia estar feliz desde que viu Casey Affleck papar a estatueta de melhor ator. Pois a confusão o favoreceu: sua perda deixou de ser individual para se tornar coletiva. 

Warren Beatty ganhou um protagonismo inesperado, apesar de não ter culpa pela troca de envelopes. Seu vacilo foi não ter dito “tem algo estranho acontecendo aqui” quando percebeu a encrenca. Em vez disso, passou a batata quente pra Faye Dunaway, que fez o que toda mulher faz quando vê um homem enrolando: “Deixa que eu resolvo”. Mal vislumbrou um “La” em letras miúdas e secundárias, bradou ao microfone, confiante, o nome inteiro do filme. Cyborg, que tinha visão supersônica, não seria tão rápido.

Algum problema? Nenhum, apenas pessoas fazendo o que fazem todo dia: se virando. Para os organizadores e auditores do Oscar, foi um vexame planetário, mas para nós, espectadores, compensou. A mais importante noite do cinema, com um enredo que todo ano se repete, desta vez caprichou naquilo que realmente nos empolga: ofertou um final imprevisível.

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