sábado, 30 de setembro de 2017



30 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

A felicidade de cada um

Somos, entre tantas coisas - animais predadores, meio obtusos, às vezes gloriosos -, uns eternos buscadores. Deve ser uma das molas de nossa vida, mais até do que sexo e poder. Essa busca meio indeterminada que nos faz sair da cama, tomar café, ver notícias no jornal e na TV (porque nos julgamos de ferro), ir para o trabalho ou a escola ou simplesmente ficar em casa. Buscamos eternamente, eu sei, essa estranhíssima coisa chamada felicidade: tão diferente em diferentes fases e até diversos lugares.

Quando menina, felicidade era segurança amorosa: os pais ali perto, o irmãozinho, as funcionárias que cuidavam de nós, o jardineiro conversando com plantas, a chuva na vidraça, o vento nas árvores, a lareira ou a perspectiva da praia, um dia de feriado para não ter de ir à escola (não, não fui boa aluna...). Sobretudo, estar ali em nossa casa, no meu quarto, a cama embutida em prateleiras cheias dos meus melhores amigos. Décadas depois, alguém me contou que, ao visitar meu pai, em seu escritório em casa, e admirar as prateleiras de livros forrando as paredes, meu pai fez um gesto simples e disse: "Esses são os meus amigos".

No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo, como certa vez quando, falando com jornalistas antes de uma palestra em São Paulo, um deles, muito jovem, disparou a pergunta que nunca tinham me feito: "Qual é o seu sonho de consumo?". Parei, sorri, surpreendida, e sem precisar pensar respondi: "Meu sonho de consumo? Ficar quieta". Era uma longa fase de muitas viagens para palestras e lançamentos. Era bom curtir o afeto dos leitores, era bom promover um livro.

No avião, voltando para casa, fui monologando coisas como: "Ora, se eu quero mesmo ficar mais quieta, por que não faço isso? Por que não diminuo esse giro de viagens e encontros e não curto mais o sossego que me falta?". Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar - nada fácil. Os convites mais simpáticos (quase todos são assim) tiveram de ser reduzidos, e como fazer essa seleção? Sempre havia uma razão verdadeira: estar preparando um novo livro, atender alguma coisa na família ou simplesmente estar cansada. "E se um dia não te convidarem para mais nada?". Bom, aí eu também não vou gostar nada! O jeito é dosar.

Fiquei bem mais feliz assim. Certa vez, perguntaram para minha filha onde seria mais fácil encontrar a mãe, e ela respondeu: "Em casa". Há quem estranhe: "Você quase não tem vida social, não frequenta os mais novos restaurantes, nem clubes, nem grupos...". Nada contra, mas para mim foi uma conquista. Uma obediência ao meu mais antigo e honrado desejo. 

Quando estou nessa falsa vagabundagem lírica, talvez de livro na mão até sem ler nem pensar nada especial, é que as coisas "se fazem" dentro de mim: futuros personagens, tramas, poemas, ou só encantamentos fugazes. Pode ser que nesta fase da vida eu mereça estar assim, com família, amigos, cachorrinhas, paisagem linda, o refúgio na Serra, música, livros, e tantos ótimos programas que - apesar dos protestos - a boa televisão oferece: agora, um concerto de Mozart para piano, tocado na TV por um Barenboim jovem.

(E ainda por cima, neste momento, começa a chover mansinho.)

lya.luft@zerohora.com.br


30 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Minha primeira TATTOO

Existe um argumento clássico contra tatuagens: é definitivo demais. Como saber se, daqui a três meses, três anos ou três décadas, o desenho escolhido ainda terá um significado especial? Como pode alguém entregar-se de mão beijada à possibilidade de um arrependimento? E quando a pele começar a ficar flácida e enrugada, nosso visual não parecerá um filme de terror? E quando... Tá, já entendemos.

Quem se faz tantas perguntas deve passar longe de um estúdio de tattoo. E longe de uma maternidade também, pois ainda não inventaram nada mais definitivo do que filho. Talvez sejam as únicas coisas perenes que restaram no mundo: nossas crias e as marcas que o tempo impõe ao nosso corpo - e as que nos autoimpomos. 

De resto, nada mais é durável. Tudo é provisório, descartável, tendência de mercado. Vale para a altura do cós das suas calças e o comprimento das mangas da sua blusa. Vale para a cor das paredes onde você mora, o tipo de lugar onde você mora e até com quem você mora: amigos, namorados, maridos e esposas. Estamos todos de passagem, e a aventura se renova, se transforma. Como estará sua vida daqui a um ano? Tem certeza?

Sendo desse jeito, eis a reviravolta: o argumento clássico contra as tatuagens tornou-se, agora, um argumento a favor. Finalmente, algo que dura. Que não vai desaparecer da sua vida quando o verão terminar, que nunca estará sujeito a modismos, que irá com você até o fim - nisso uma tatuagem é ainda mais fiel que filhos, esses andarilhos que somem no mundo e só mandam notícia por Skype. 

A tatuagem gruda em você, esteja você passando por dificuldades financeiras, esteja você bebendo mais do que deveria, esteja você confundindo palavras, tropeçando nos próprios óculos e fazendo todo tipo de besteira. Pensa: tatuagem é praticamente um cachorro, sendo que este, às vezes, foge.

A razão desta crônica: neste exato dia em que escrevo, que não é o mesmo em que você me lê, estou com uma hora marcada num estúdio para fazer minha primeira tatuagem, aproveitando essa onda possante de empoderamento, de juventude esticada, de valorização da experiência e demais movimentos modernos de autoafirmação em que me jogo inteira (mas, neste caso, com as pernas bambas - não tenho nenhum fetiche por agulhas).

Enquanto você me lê, a data que agendei já passou. Eu fui? Eu fiz? Serei hoje uma mulher marcada a ferro e fogo com um pequeno sol nas costas, bem pertinho da nuca? Ou desmarquei inventando qualquer desculpa e voltei para o buraco onde as ratazanas se refugiam de seus próprios medos?

Acho que fui, em homenagem à permanência, essa raridade.

MARTHA MEDEIROS



30 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR
A prepotência do mentiroso


É muito fácil desmascarar o mentiroso. Quando pego em contradição, fica possesso e indignado. Ataca para não se ver atacado. Distrai a atenção com o escândalo.

Todo mentiroso é um canastrão, gesticula sem necessidade, abraça o ar até sufocá-lo, tem as bochechas vermelhas de ódio, transforma companheiros de longa data em inimigos, delata os afetos para adquirir imunidade.

Todo mentiroso esperneia e se movimenta de modo frenético. Em vez de ter humildade e desfazer tranquilamente o engano, fica mais prepotente e não deseja dar satisfações. Sai de cena bufando, volta à cena aos gritos. Bate à porta, empurra a cadeira, os objetos sofrem à sua volta.

Todo mentiroso ameaça, como um profeta de rua. Antecipa o apocalipse por tê-lo posto à prova. Já começa a inventar castigos e reprimendas como o fim da amizade e o término da relação. Prefere acabar a confessar.

Todo mentiroso não se desculpa. Pelo contrário, imagina o acusador pedindo perdão de joelhos pelo mal-entendido.

Todo mentiroso se projeta numa vaga de emprego, não parando de se elogiar, destacando os seus pontos positivos, sublinhando a sua honradez e ética na tomada de decisões.

Todo mentiroso nega e nega e nega: vai soletrando não antes mesmo de ser questionado.

Todo mentiroso conversa sozinho: não escuta nada, pergunta e responde, num júri imaginário. Ocupa, simultaneamente, os papéis de advogado de defesa, promotor e juiz.

Seu primeiro movimento é desqualificar a pessoa que o colocou em dúvida. Poderia desmontar a mentira, mas leva para o lado pessoal e ofende o outro, insinuando uma perseguição.

Não apresenta argumentos, muito menos detalha o ocorrido. Diz inicialmente que é um absurdo a falta de confiança. Tenta entrar no jogo psicológico dos atenuantes, lembrando que se conhecem há tempo e não merecia tamanha desconsideração. Implicará com a lealdade, falando que jamais esperava ser agredido com um golpe baixo. Desmerece a curiosidade e a caracteriza como prova de mais alta traição.

Todo mentiroso não quer perder tempo conversando, mas tampouco cala a boca. Como não convence com fatos, depois age como um psiquiatra. Cria diagnósticos, despeja receitas, acumula distorções, estabelece sintomas de paranoia. Fará de tudo para provar que tudo é uma loucura e que todos estão doidos, menos ele.

Todo mentiroso é igual. Abomina a lógica e recusa as provas. Não entende que a inocência não se prova.

Os sinais são evidentes. Quem não tem razão se sente cheio de razão. Quem tem razão não se sente intimidado com o erro. A verdade é calma e curta. A mentira é penosa e aflitiva.

A verdade é um atalho. A mentira é o caminho mais longo e sempre passa pelo ataque de nervos.

CARPINEJAR


30 DE SETEMBRO DE 2017
PIANGERS

Última moda


Nunca fui o que se pode chamar de pessoa estilosa ou arrumada, culpa da convenção social que determinou que calças largas de moleton e camisas com perfurações de traças não são vestimentas très chic. Jamais usei gravata fora de festas de casamento e, mesmo em festas de casamento, sempre fui o primeiro a afrouxar o nó e, eventualmente, deixar a gravata dobrada em cima da mesa enquanto devorava o bufê. Minha gravata já foi meu guardanapo, confesso. O pessoal da Spirito Santo deve estar indignado comigo.

Minha mãe sempre achou um terror o jeito que o filho se vestia, mas sempre me considerei um trend setter: usava calças largas com a cueca aparecendo antes dos rappers, camisas velhas de flanela herdadas do vô antes dos grunges, casacos de lã de brechó antes dos hipsters. Meu estilo hoje é a passarela de amanhã. Quer dizer, não bem amanhã, pode ser que demore anos até que finalmente minhas roupas surradas apareçam na Vogue, mas um dia aparecem. Pode ter certeza que aparecem.

Uma espécie de artista visual, uso meus trapos como forma de me expressar. Minha família é contra. Minhas camisetas favoritas viraram pano de chão quando viajei mês passado. Meu casaco favorito foi doado aos pobres no último inverno. Não sou eu que decido essas coisas, é minha mulher. Doou todas as minhas camisetas promocionais que eu usava como pijama e minhas calças de sarja, hit dos anos 1990. Eu gostava tanto daquela calça que virava bermuda que minha esposa sem coração dispensou.

Vida que segue, comprei meias coloridas que envergonham minhas filhas. Estávamos caminhando para o colégio, e eu falei pra evitarmos determinada esquina. "Tem um mendigo maluco naquela esquina", falei. Minha filha de 12 anos disse: "Sei. Aquele mendigo de barba ruiva levando as filhas pra escola?". Demorei pra entender a piada: ela estava se referindo a mim. Muito engraçado. Vai engolir suas palavras quando meu modelito aparecer em capas de revistas como a última moda.

PIANGERS

sexta-feira, 29 de setembro de 2017



Jaime Cimenti

Caminhando pela Redenção 

Saio da redação do glorioso Jornal do Comércio, o jovem octogenário de blazer azul em plena forma, sigo pela avenida João Pessoa e vou para a Redenção, ou Parque Farroupilha, se o leitor gaudério prefere assim.

Chegando lá, tarde de sol de início de primavera, começo a caminhada. Cinco e meia, pessoas tomam chimarrão, namorados namoram, algumas pessoas correm, outras caminham, crianças jogam bola ou andam de bicicleta e eu sigo nas aleias ensaibradas, evitando os matinhos e espaços despovoados, com medo de algum assaltante vespertino. Nos bolsos levo apenas uns trocados e a vontade de flanar.

O Adão me orientou a não levar o celular e as chaves do carro. Obedeci, claro, que não sou tão bobo, e o Adão é esperto. Imagino que aquele grande espaço, no meio do parque, onde está o chafariz, é Paris, a Champs Élysées, o Central Park nova-iorquino ou o Hyde Park londrino e contemplo os gramados, as árvores, os arbustos, as folhagens e as flores, enquanto os sabiás de setembro fornecem a trilha sonora adequada para minhas viagens mentais.

Descanso um pouco do tenebroso noticiário político-econômico-policial e dos escândalos das organizações criminosas municipais, estaduais e federais e respiro o ar do relaxamento possível. Está difícil ficar no Brasil e complicado sair. A coisa tá osca. Melhor seguir rezando para Nossa Senhora Aparecida descolar a economia da política e ir tocando o barco do que jeito que dá, enquanto uma bala perdida não nos alcança e o dia amanhece mais uma vez.

Melhor buscar um pouco de refúgio no passado, sem saudosismo, e pensar que a Redenção é o pátio de nossas melhores memórias, que por ali circulam nossas várias infâncias e idades, que aquelas árvores testemunharam, testemunham e vão testemunhar nossos pensamentos e ações. A Redenção é a eternidade porto-alegrense, o campo da lembrança, do presente e do futuro infinitos, mesmo sem os bichos do zoológico e mesmo sem os monumentos e placas remanescentes em melhores condições.

No meio do gramado o gaúcho de pé, em bronze eterno, mira o pedaço de pampa fake do parque e a modernidade urbana dos prédios da Ufrgs e parece dizer que a vida continua, que os sonhos foram, são e serão o essencial dos dias. Parece dizer que, mesmo sendo um gaúcho a pé, não deixa de ser um bagual que não se entrega assim no mais, como na linda canção clássica de Antonio Augusto Ferreira e Ewerton Ferreira, imortalizada pela interpretação de Leopoldo Rassier e merecidamente vencedora da Califórnia da Canção Nativa.

A temperatura vai caindo, o sol vai se despedindo e a caminhada vai dando os últimos passos. Os pedalinhos aguardam, perfilados, pelas filas dos feriados e dos fins de semana e o trenzinho está a postos para as próximas viagens. Bem que o aluguel de bicicletas poderia voltar e o café do lago já poderia estar funcionando, como esteve. E não seria possível charretes circulando pelo parque, ocupando os cavalos e carroceiros que a municipalidade quer desempregar? Cartas para a redação.

a propósito...

Podemos cuidar melhor da Redenção, ou Parque Farroupilha. Ela é o coração verde, amarelo e vermelho da Capital. Precisamos falar sobre cercamento, ao menos de parte, do local. Aluguel de bicicletas, charretes, café do lago, recuperação e manutenção de placas e monumentos e outras ideias tornarão ainda melhor esse espaço sagrado.

Quem caminhou, caminha e caminhará por ali sabe que não se deve nem pensar em apagar as memórias passadas, presentes e futuras do lugar que já se chamou Campos da Redenção em homenagem à precoce abolição da escravatura em Porto Alegre, em 1884, e que foi chamado Parque Farroupilha em 1935, na comemoração dos cem anos da Guerra dos Farrapos. O que é o estudo, hein? - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/09/colunas/livros/587521-jose-gallo-o-melhor-ceo-do-brasil.html)


José Galló, o melhor CEO do Brasil 

Detalhe da capa do livro EDITORA PLANETA/DIVULGAÇÃO/JC José Galló, graduado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, diretor-presidente da Renner, membro do Conselho de Administração da Localiza Rent a Car, do Itaú Unibanco Holding e do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), mais de 30 anos de experiência em varejo, foi eleito, em 2016, O Melhor CEO do Brasil pela Época Negócios. Em cinco edições do Executivo de Valor do Valor Econômico foi premiado. 

Nas últimas quatro edições do Latin America Executive Team Ranking, da Institucional Investor, recebeu o título de Melhor CEO do setor de varejo e consumo. O poder do encantamento (Planeta Estratégia, 272 páginas), de Galló, traz sua vida desde a infância até hoje e, especialmente, trata da bem-sucedida trajetória, de fatos e de lições do executivo que, partindo de oito lojas, transformou a Renner em uma empresa que valia menos do que um milhão de dólares em uma corporação de US$ 6 bilhões. 

Na obra, cujo prefácio é de Fabio Barbosa, Galló fala de seu nascimento em Galópolis, da família de origem italiana que teve grandes negócios por lá e de sua formação na FGV em SP. O início na Copersucar, os desafios com a Imcosul, a ModaCasa, a Eletroshop e a consultoria para o Grupo Joaquim Oliveira estão no volume, em meio a revelações sobre o aprendizado do empresário, que sempre valorizou a simplicidade, a disciplina, a inquietação criativa, o trabalho contínuo, a comunicação eficaz, o encantamento, a liderança, a valorização das pessoas e o foco no cliente. 

Da entrada na Renner em 1991 até sua transformação em primeira corporação do Brasil, em 1998, passando pela saída da J.C.Penney do Brasil no emblemático 2005 e, chegando a 2012 com a grande expansão, os ciclos de sete anos mencionados por Galló mostram seu caminho confundido com o da empresa. Corporação que não tem um claro acionista, controlada por profissionais escolhidos por um Conselho de Administração. 

Alguns duvidaram da fórmula. Hoje é parte boa e vitoriosa de nossa cultura empresarial. Depoimentos de empresários e líderes do porte de Jorge Gerdau Johannpeter, Roberto Setubal, Luiza Helena Trajano, Adelino Colombo, Nelson Sirotsky, Oswaldo Schirmer e Salim Mattar revelam aspectos pessoais e profissionais de José Galló, executivo focado na consistência estratégica, na austeridade, na confiança, na eficiência operacional e sempre de olho vivo no cliente e na concorrência. 

lançamentos 

Voos Pátrios (Editora Insular, 224 páginas), do executivo e empresário chinês Peter Ho Peng, que viveu no Brasil entre 1951 e 1973 e, atualmente, vive na Flórida, traz artigos sobre México, Califórnia, Brasil, política, futebol, médicos cubanos e outros tópicos relevantes. 

Fala de seu sequestro pelo Doi-Codi e de sua expulsão do Brasil, para onde retornou nos anos 2000. Em 2013, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça reparou seus danos. 

O Lagarto na Taipa-1936 (AMZ Editora, 368 páginas) é o romance de estreia do professor João Celeste Agostini, que lecionou muitos anos Língua e Literatura Brasileira e Portuguesa. 

É estreia literária madura, e resgata os valores e a história dos bravos imigrantes italianos, através de envolvente e bem narrada trama envolvendo famílias de imigrantes entre 1883-1936, em uma colônia imaginária. Alma humana, comportamento e lembranças doloridas dos Alpes estão na obra. 

Um psiquiatra na Coreia do Norte (Editora Buqui, 112 páginas), do médico e doutor em Psicologia Nelson Asnis, autor de Homem Bomba, o sacrifício das pulsões (2013) e Do divã ao aeroporto (2015), publicados pela Buqui, é o relato da viagem do autor, sozinho, à Coreia do Norte. 

O país não oferece irreverência ou boemia e apenas cinco brasileiros por ano enfrentam a nação totalitária. Asnis nos mostra o que está escondido aos olhos do mundo. - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/09/colunas/livros/587521-jose-gallo-o-melhor-ceo-do-brasil.html)

29 DE SETEMBRO DE 2017
JORNADA DO CONHECIMENTO

Atriz lança livros e portal de "mindfulness"


SESSÃO DE AUTÓGRAFOS e evento sobre qualidade de vida fazem parte da programação de Bruna Lombardi em Porto Alegre

Atriz, roteirista de cinema, apresentadora, escritora, Bruna Lombardi vem a Porto Alegre neste fim de semana para mostrar mais duas facetas de seu multifacetado trabalho. Ela lança, hoje, dois novos livros, Clímax, seu primeiro volume de poemas inéditos em mais de 30 anos, e Poesia Reunida, que, como explica o título, agrega os três volumes que publicou anteriormente. Amanhã, Bruna será a anfitriã e mestre de cerimônia da Jornada do Conhecimento, evento no Teatro do Bourbon Country que terá como convidados os escritores Eduardo Bueno, Letícia Wierzschowski, o historiador e professor Leandro Karnal e o ator Caetano OMaihlan.

Clímax, o novo livro, reúne poemas que alternam o ponto de vista do erotismo como uma experiência espiritual e da espiritualidade como uma experiência erótica. É o primeiro livro de poemas da autora desde O Perigo do Dragão (1984).

Já a Jornada do Conhecimento se constitui em um misto de encontro intelectual e sarau artístico centrado nos desafios para uma vida com qualidade. Eventos semelhantes já foram realizados por Bruna em outras capitais como São Paulo, Rio e Salvador (veja a entrevista ao lado) e servem para apresentar o portal que a atriz e escritora lançou em agosto, a Rede Felicidade (redefelicidade.com.br), fórum sobre temas como arte e cultura, espiritualidade, saúde, viagens e vida natural. Além de reunir textos e vídeos de convidados, a Rede Felicidade também reúne um blog no qual Bruna escreve e responde a questionamentos dos leitores cadastrados.

Nas jornadas, Bruna discute muitos dos mesmos temas com seus convidados. A ideia, segundo ela própria, é ter sempre nessas presenças diferentes visões e formações.

- Falamos muito de escolhas, de "mindfulness", ou seja, de atenção plena, da felicidade como escopo da vida, mas mostrando todas as facetas desses temas. Quero mostrar todos os ângulos de um tema, e mostrar também que todas as pessoas que estiverem dispostas, cada uma pelo seu ângulo, podem achar um jeito de dividir uma experiência para a criação de um mundo melhor - diz Bruna, em entrevista por telefone a ZH.


29 DE SETEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA


Foi o Grêmio que rebaixou o Inter

Ontem, o Wendell Ferreira, do Esporte da Zero, me pediu um texto no qual deveria responder como o Inter se sairia na Primeira Divisão se jogasse com esse time de hoje.

É claro que se sairia bem. O Inter tem time, sim, para jogar na Primeira Divisão, inclusive desde que caiu para a Segunda.

Mas caiu. Por que caiu? Por causa do Grêmio.

Foi o Grêmio quem rebaixou o Inter.

Antes que os colorados comecem a xingar minha mãezinha, dona Diva, explico. O time do Inter, no ano passado, não era tão ruim a ponto de ficar 14 partidas sem vencer, como ficou, nem era tão ruim a ponto de remanchar nas últimas colocações por mais de dois terços do campeonato, como remanchou. Além disso, não havia sinais explícitos de revolta no grupo de jogadores: os salários estavam em dia e, se existiam problemas financeiros, nenhum deles era tão grave a ponto de se infiltrar no vestiário.

Mas um time, qualquer time, para vencer, precisa de um ingrediente mais do que de todos os outros: concentração.

Olhe para o Grêmio hoje. Não foi apenas a venda de Pedro Rocha que fez o time despencar de rendimento. Foi a desconcentração. De repente, pequenas questões começaram a desviar o Grêmio do rumo seguro que seguia: a dúvida sobre como tratar o Campeonato Brasileiro, o acúmulo de competições, a derrota para o Corinthians, os pênaltis perdidos, a demora da renovação de Luan... Foi esse conjunto de contingências que distraiu o grupo do Grêmio, e ninguém ganha quando está distraído, nem no futebol, nem no tênis, nem no boxe, nem no xadrez, nem na vida.

Já o Inter de 2016 tinha um só foco: não cair para a Segunda Divisão. O problema é que o objetivo de não fracassar é muitíssimo mais pesado do que o de ter sucesso, sobretudo se o fracasso é mais do que um fracasso: é uma desgraça.

Pois foi assim que o Inter encarou a possibilidade de rebaixamento: como a maior desgraça que poderia ocorrer com o clube. E, por Inter, que digo, é a instituição inteira: dirigentes, torcida, funcionários e jogadores.

É claro que a ameaça da Segunda Divisão é aterradora para todos os clubes grandes, mas, no caso do Inter, havia um elemento mais perturbador: a queda significaria a perda de um argumento importante no debate com os gremistas.

Grêmio e Inter, já disse e repito, vivem um para o outro, existem um para o outro, espelham-se um no outro. Quando D?Alessandro estava para ser contratado, Fernando Carvalho viajou para Buenos Aires, sentou-se em frente a ele e explicou:

- É o seguinte: lá, nós temos que ganhar do Grêmio. O importante é ganhar do Grêmio.

Certíssimo. D?Alessandro compreendeu essa realidade e, desta forma, transformou-se em uma lenda no Rio Grande do Sul.

É assim, sempre foi assim: quando o colorado brande D?Alessandro, o gremista responde com Renato Portaluppi. Cada conquista de um clube serviu para que, com ela, o torcedor espezinhasse o torcedor do outro clube. Os dois foram crescendo nessa emulação. De repente, tornaram-se campeões do Estado, do Brasil, da América e do mundo. Eram iguais nos triunfos, mas diferentes no malogro: o Grêmio havia caído para a Série B, e o Inter, não.

Então, a queda do Inter representava a perda de um galardão. Era insuportável. Imagine, agora, os jogadores ouvindo a todo momento, de todo mundo, que o Inter NÃO PODIA cair.

Foi essa angústia que contaminou o vestiário e cimentou as chuteiras ao solo. Foi essa angústia que roubou a concentração dos jogadores do Inter. Não tenho nenhuma dúvida: é o tamanho da rivalidade que eleva a dupla Gre-Nal aos píncaros. Mas, quando um deles cai de tal altura, a dor é muito maior.

DAVID COIMBRA

sábado, 23 de setembro de 2017



23 DE SETEMBRO DE 2017
SEXO

(Re)acenda esta chama

Sete passos para fugir da rotina na cama e fora dela em relacionamentos longos

Brindes, troca de presentes, declarações de amor Cada jantar de aniversário de namoro ou casamento merece uma comemoração à altura, mas também uma atenção redobrada com a rotina à medida que os anos passam. Ainda que virar muitas páginas do calendário possa significar que vocês estejam fazendo as coisas certas, relacionamentos de uma década ou mais podem entrar em um processo de escassez de diálogo e de sexo e, via de regra, uma coisa está relacionada à outra.

A falta de comunicação e de compreensão é uma queixa maior do que a falta de sexo, de acordo com a sexóloga Priscila Junqueira. Já a especialista em sexualidade feminina Cátia Damasceno afirma que a dificuldade de falar com o outro - especialmente sobre a vida íntima - é tanta que, muitas vezes, quando o casal decide procurar um terapeuta, o relacionamento já está em um estágio tão avançado de desgaste que a reconciliação é difícil ou improvável.

- O sexo, quando é bom, tem uma pequena importância dentro do relacionamento, de 30% a 40%. Mas, quando é ruim, ocupa um percentual muito alto de relevância. E pode levar à separação, porque as pessoas preferem terminar a falar sobre isso com o parceiro. Precisamos nos conscientizar de que o sexo tem que ser conversado - explica Cátia.

A seguir, as sexólogas Cátia e Priscila dão sete dicas sobre o que pode funcionar para manter a chama acesa em relações longas, tanto na cama quanto no dia a dia.

2 MANTENHA A INDEPENDÊNCIA DOS FILHOS

O fato de ter crianças em casa não pode ser usado como desculpa para o casal não cuidar um ao outro. Priscila destaca que as crianças - mesmos os bebês - são dependentes, mas não necessariamente apenas dos pais. Assim, de tempos em tempos, um familiar ou uma babá de confiança pode entrar em cena para ajudar o casal a sair da rotina e encontrar amigos, ir ao cinema ou apenas ficar a sós um com o outro.

- Esses momentos de estar com os amigos ou a sós, os dois, tornam qualquer rotina mais prazerosa. Se estão bem cuidados, os filhos vão ficar bem algumas horas ou um fim de semana sem os pais - afirma Priscila, mãe de um menino de dois anos.

Assim como Priscila, Cátia tem crianças pequenas em casa. E afirma, por experiência própria, que os filhos não são limitadores dos momentos íntimos do casal.

- Não dá para justificar uma ausência do comportamento de marido e mulher por causa dos filhos. Mas há, sim, muitos homens que passam a enxergar a mulher apenas como mãe depois de ela dar à luz, ignorando que ela continua tendo desejo. Se é essa a situação, precisa ser conversada - sugere a especialista.

3 RETORNE ÀS ORIGENS

Lembra quais programas vocês curtiam quando começaram a namorar? Resgatar velhos hábitos costuma render momentos prazerosos para recordar, uma vez mais, por que vocês estão juntos. Que tal colocar em movimento aquela bicicleta parada na garagem ou retomar caminhadas no parque que eram tão frequentes quando vocês se conheceram?

Cátia sugere que o casal liste, em uma folha, tanto os programas do começo do namoro que ficaram para trás quanto coisas que acabaram virando rotina. Spoiler: nesse último quesito, andar desleixados em casa casa, sem se cuidar um para o outro, costuma ser um item frequente.

- Depois de identificar isso, recomendo não apenas voltar a fazer o que se fazia no início de namoro, mas deixar de lado esses costumes que abraçamos por causa da rotina. Veja como isso pode melhorar qualquer relacionamento - diz Cátia.

4 COLOQUE O SEXO NA AGENDA

Se está difícil encontrar tempo para transar, talvez seja o momento de estabelecer isso como prioridade, com compromisso na agenda e tudo. Planejar momentos íntimos como nos velhos tempos, quando o clima de conquista ainda estava no ar, pode trazer boas memórias e até reacender o tesão.

- No início do namoro, os hormônios nos deixam muito alegres. Depois de anos de relacionamento, para manter essa mesma sensação, é preciso agir de forma racional. Planeje um momento íntimo, uma viagem, um final de semana sem os filhos. Pensem em tudo o que vocês vão fazer quando tiverem esse tempo livre para vocês. Só não vale ficar cada um pendurado no seu celular - diz Cátia.

O recurso do sexo na agenda, porém, deve ser usado por tempo limitado, de acordo com Priscila:

- É uma solução de emergência. Se você tiver de recorrer sempre à agenda para transar, perde a naturalidade e provavelmente vai virar mais um compromisso chato.

1 TENHA MOMENTOS A SÓS

O passar dos anos tende a levar muitos casais a se isolar em sua própria rotina a dois ou com os filhos. É como se tivessem se transformado em uma única pessoa, sem nenhum cuidado com a individualidade de cada um. Fazer programas com os amigos ou a sós, com respeito e compreensão do que é importante para o outro, é fundamental para manter a vitalidade na vida a dois. Priscila recomenda escolher pelo menos uma atividade semanal, como um hobby, para cada um fazer sozinho.

- Colocar na agenda espaço para um esporte ou uma atividade que lhe faça bem pode dar um respiro à relação, porque as pessoas começam a funcionar só como casal e esquecem de si - afirma a sexóloga.

Manter uma agenda de compromissos sem seu par é um exercício de liberdade natural quando há segurança no relacionamento, explica Cátia:

- Não é para fazer nada escondido. É tudo com respeito e confiança no outro a ponto de que, se ele quiser sair para uma aula de dança, você não vai ver problema nisso. É preciso confiança e liberdade para chegar nesse estágio.

6 TIRE FÉRIAS DE FINAL DE SEMANA

Quando perguntados sobre os momentos bons na vida a dois, muitos casais costumam lembrar das férias, aquele momento programado em que se esquece das contas a pagar e dos problemas do cotidiano. A dica das especialistas é dividir momentos de ócio ao longo do calendário, sem necessariamente precisar esperar por longos períodos de folga. Use a criatividade e experimente mudar de ambiente, visitando alguma parte da cidade que vocês não costumam frequentar ou fazer viagens curtas em um final de semana ou feriadão, curtindo um ao outro como se estivessem de férias.

- O que não dá é esperar o ano inteiro para passar bem em um mês de férias - afirma Cátia.

5 CONVERSE SOBRE SEXO

A diminuição do tesão parece inevitável ao longo dos anos. E um dos caminhos para contorná-la é conversar para entender o porquê de isso estar acontecendo. E, se for necessário, buscar a ajuda de um especialista. Na maior parte dos casos, a falta de libido tem causas associadas.

- As mulheres que têm queda no desejo muitas vezes estão com um problema com o parceiro, mas também entrando na menopausa. E isso deve ser conversado com ele, contando com a compreensão e ajuda do par nesse momento - diz Priscila.

Como dar a volta por cima? Em muitos casos, a solução pode ser simples, explorando possibilidades até então inéditas para o casal. As sexólogas estão de acordo em afirmar que é possível descobrir novidades no sexo mesmo com uma década - ou mais - de relacionamento, respeitando e estimulando a própria transformação e a do outro. A dica é conversar abertamente sobre o que você não gosta mais de fazer e as coisas novas que gostaria de tentar. E, claro, estar aberto a escutar os desejos de seu par.

- Muitas pessoas passam anos e anos tendo um mau relacionamento porque têm vergonha de falar sobre esse assunto, porque acham que o outro vai ficar chateado. Não cometa esse erro - indica Cátia.

7 TOME A INICIATIVA

Ficar insatisfeita esperando que o outro tome uma atitude para melhorar tanto o dia a dia quanto o sexo não leva a lugar nenhum - provavelmente, seu par tem o mesmo pensamento em relação a você. Dá para começar planejando um jantar romântico, com uma trilha sonora especial, culminando em uma noite diferente na cama. Depois de tomar a iniciativa algumas vezes, já é permitido cobrar que o outro também pense em programinhas para fugir da rotina.

- Dá para cobrar de uma maneira positiva: "No mês passado, eu fiz isso e isso. Que tal esse mês você produzir uma surpresinha para nós dois?" - sugere Cátia.

A especialista acredita que um programa diferente por mês é o mínimo para um casal que está junto há muitos anos manter a harmonia da relação.

- Não dá para esperar o aniversário de namoro ou casamento para comemorar. Faça uma gracinha diferente, esteja presente para o outro naquele momento. Mande uma mensagem sugerindo alguma coisa bacana. Se a pessoa não gostar, você pergunta: "E o que você sugere que a gente faça juntos?" - propõe Cátia.

ROSSANA SILVA, ESPECIAL

23 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

LÍNGUA no canto da boca

O homem tem a incômoda língua para fora quando se esforça. É carregar algo ou gostar de uma situação que ele põe a tramela no canto da boca.

De repente, não mais do que de repente, prepara um wrap dobrando a sua língua.

Parece um louquinho com camisa de força. Uma criança fazendo careta. Um cachorro com sede. Não traz seriedade, não inspira confiança.

A língua para fora sugere problemas motores incontornáveis. Assusta aqueles com quem dividimos intimidade, ameaça quem nem conhecemos.

Nenhuma mulher gosta, com a devida razão. Pois estraga a maior parte das selfies e das cenas amorosas. Isso que pode surgir no meio do sexo, com os espelhos do motel apontados para o corpo, provocando inevitáveis desdobramentos broxantes.

É um ataque epilético manso que acomete todo macho. Acontecerá jogando sinuca, levando as compras do mercado, batendo um pênalti, numa brincadeira no sofá, dançando em uma balada, levantando peso na academia.

Não há como apagar aquela porção de Coringa em nosso rosto, acalmar o Jim Carrey de nossas expressões. O contorcionismo poderia ser cômico se houvesse controle. Mas não tem como programá-lo ou desprogramá-lo. É um bug no sistema operacional masculino. Ainda corremos o risco de babar.

Trata-se de um movimento intuitivo, do princípio da linguagem, evocação da transição de gestos bucais nas cavernas, que emerge sem percebermos nas tarefas que exigem grande concentração. Só identificamos quando alguém chama atenção, mas já não existe desculpa convincente e reparo sociável imediato.

Às vezes, quando a esposa coloca a mão em meus lábios, não é para me silenciar, é para devolver o monstro ao seu lugar. Outras vezes quando ela me surpreende com um beijo não significa arrebatamento, é apenas uma mordaça, um selinho constrangido, destinado a interromper a vergonha de qualquer jeito.

CARPINEJAR



23 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Ler mesmo

Muito tempo atrás, escrevi um texto em que eu diferenciava o querer do querer mesmo o verbo acompanhado do advérbio de afirmação. Ou seria advérbio de intensidade? Acho que de intensidade.

Querer, a gente quer muita coisa, mas quase sempre é um querer preguiçoso, que não nos impulsiona a agir. Querer mesmo significa abrir mão de uma série de confortos, tomar muito chá de banco e ver inúmeras ideias darem errado antes de darem certo - se é que darão certo. Querer mesmo escalar uma montanha, surfar uma onda gigante, filmar um documentário, trabalhar no Exterior e outras aventuras supostamente inatingíveis.

Anos depois, escrevi uma crônica chamada Escritor Mesmo, reconhecendo a distância que havia entre mim e aqueles que colecionam prêmios, têm alto padrão intelectual, são catedráticos, virtuoses da língua e candidatos fortíssimos à Academia Brasileira de Letras. Eu? Sou nada disso.

Agora faço uso novamente do advérbio para diferenciar não os escritores, mas os leitores. Há aqueles que leem, e aqueles que leem mesmo - e a crônica de jornal é um bom balizador desta diferença. Na correria cotidiana, muitas vezes o leitor apenas passa os olhos pelo o que está escrito. Tudo bem. Passar os olhos, hoje em dia, já é digno de nota, mas o apressado corre o risco de se confundir. Por exemplo, domingo passado recebi uma dezena de cumprimentos pela passagem do meu aniversário, o que foi uma delicadeza, só que nasci em agosto. 

O que aconteceu? Aconteceu que publiquei aqui neste espaço uma crônica fictícia - um pequeno conto - com o título Algum dia, em que o personagem (masculino) sonhava em realizar vários projetos mirabolantes, porém sem jamais levantar da cama e sem perceber a passagem do tempo. A leitura do texto induzia a pensar que eram planos de um adolescente, até que, ao final, o personagem comentava que no dia seguinte completaria 58 anos.

Talvez por eu não ser uma escritora mesmo, muitos não perceberam que era um homem falando. Acharam que eu falava de mim. Que eu havia trocado de sexo, que eu tinha a intenção de morar numa praia com uma gata, que eu desejava fotografar as aves do Mato Grosso, que eu sonhava em ser guitarrista de uma banda em Berlim e que faria 58 anos no dia seguinte (a propósito, tenho 56 - não minto a idade, mas aumentá-la, isso não).

Há os que querem, e os que querem mesmo. Há os escritores, e os escritores mesmo. Há os que leem, e os que leem mesmo (pode incrementar a lista: há os que amam, e os que amam mesmo; os amigos do Face, e os amigos mesmo...). Tudo anda tão da boca pra fora, tão volátil, descartável, escorregadio, que a intensidade tornou-se um diferencial a ser comemorado.

MARTHA MEDEIROS


23 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

Dona Wally, minha mãe

Minha mãe, dona Wally, foi uma mulher linda, alegre, otimista. Lembro de seu passo enérgico no corredor, a voz cantando no jardim quando mexia nas suas rosas, a risada clara conversando com meu pai. Adorava viajar, adorava suas tardes com amigas (e primas) jogando cartas, adorava jogar tênis, e adorava acima de tudo meu pai, meu irmão e esta que aqui escreve - que, eu acho, nunca correspondeu direito ao que ela imaginava ser uma menina, jovem ou mulher contente, normalzinha. 

Nunca aprendi a jogar cartas, a jogar tênis, a arrumar o quarto (a empregada fazia isso muito melhor do que eu, era o meu argumento). Na cadeira, empilhavam-se minhas roupas, o armário era uma confusão, até ela jogar tudo no chão para eu arrumar do jeito que era bonito. "Tem meninas que empilham calcinhas e pijamas conforme a cor, e amarram com fitas lindas". Eu achava aquilo uma perda de tempo lastimável. Queria ler, sonhar, ser feliz, quieta e em paz. Queria entender o mundo.

Tivemos uma relação tumultuada. Nada dramático, apenas as diferenças entre uma mãe ansiosa e controladora e uma filha rebelde e amante da liberdade. Ainda que fosse a liberdade boba de andar descalça no pátio, acender o abajur do lado da cama e ler madrugada adentro, rir alto demais, rir fora de hora, e ter uma quase absoluta incompetência e desgosto pelas coisas domésticas. Isso, e ler demais, segundo minha mãe e seu bando de primas e amigas, me impediria de conseguir marido: coisa gravíssima, aliás.

Minha mãe era ansiosa em parte porque a gente nasce assim ou assado, mas também - aprendi quando tive meus filhos - porque o primeiro bebê tinha morrido e ela talvez nunca se recuperasse dessa angústia. Seja como for, fui muito cuidada, vigiada, controlada, e detestava isso embora dissessem que era "para o meu bem". 

Uma prenda doméstica que tentei dominar foi bordado. Lembro encantada de tardes que passávamos juntas na grande sala, cada uma com seu bordado, conversando animadas, ela falando da infância, da família, de como conheceu meu pai. Naturalmente, os bordados dela eram perfeitos, e os meus, uma confusão de fios tortos, encardidos, o lado avesso cheio de grandes nós. Eu era um desastre nisso e em outras coisas, como cozinha.

"As filhas de minhas amigas e primas sabem cozinhar, fazer bolo, arrumar a mesa lindamente. Pra outras coisas, você é tão inteligente, por que não aprende?". Eu não me interessava, e pela vida afora, sem interesse ou entusiasmo, em geral faço tudo malfeito. Brigamos incrivelmente, pelas coisas mais bobas, ligadas a esses meus defeitos. Mas ela curtia imensamente sua casa, os netos e a neta. Era ótima parceira nos assuntos que eu deveria cultivar: comprar roupas bonitas, me vestir melhor, gostar de festas. Às vezes me olhava como quem diz "Que pessoa é essa que eu pari e não entendo?" - nada original em muitas mães.

Nos últimos 10 anos de vida, até os 90, foi prisioneira na clausura do Alzheimer. Cuidei dela até o fim: já não me reconhecia, enrolada no xale da sua ausência. Guardei algumas mágoas infantis, mas agora, tantos anos depois, quando me dói não ter mais a quem chamar de "mãe", sei que fizemos as pazes. Acreditem, é uma sensação maravilhosa. Onde quer que você esteja, dona Wally: você me faz muita falta.

lya.luft@zerohora.com.br
LYA LUFT

sábado, 16 de setembro de 2017



16 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

Os pacíficos e os ferozes


Tenho comentado como andamos esquisitos: nervosos, assustados, furiosos e ferozes, ou acuados espiando pelo buraco da fechadura. O que há lá fora? Quem quer nos fazer mal, isto é, a quem devemos atacar? Ou estamos deprimidos, mal-humorados, chatíssimos. O universo virou um Fla-Flu ou Gre-Nal, ou se é preto ou branco, ou direita ou esquerda, ou autoritário ou molenga, ou no Olimpo ou relegado às trevas exteriores. Precisamos de ideias, defender ideias, ah, as ideias.

Poucas vezes nesta vida já longa recordo tamanha hostilidade, tanto gasto de energia, tempo e palavras em insultos, mágoas e ironias, exposição de falsa cultura ou ignorância expressa, dedo apontado para acusar. Um punhalzinho nas costas também vai? Imagino que seja em boa parte porque somos bastante desinformados, mas arrogantes: gostamos de falar, falar, falar, sobre coisas que não entendemos direito nem digerimos bem. A desinformação é mãe de muita coisa negativa neste mundo, dizia meu velho e sábio pai.

Aquele político é um herói? Um mártir? Um bandido? Aquele artista é uma fraude ou um gênio? Aquele amigo nos trai ou é boa gente? Em lugar de debates racionais ou trocas de ideias, parecemos moleques jogando pedrinhas uns nos outros, ou meninas botando a língua na esquina de casa. Brigamos feio, ofendemos duramente, nem pensamos direito em tudo isso. E pela internet, melhor ainda: estamos protegidos de um soco, tiro ou facada: insultos bastam.

Talvez seja hora de curtir mais calma, mais lucidez, mais informação, menos precipitação, sobretudo se for em nome de cultura e arte: as duas já têm sido muito castigadas, eventualmente na maior boa vontade, pensando salvar a honra do que não precisa ser salvo porque se impõe por si, por sua qualidade, quando a tem. Política, então, quanta inteligência jogada fora. Tanta coisa útil a fazer, tanto estudante a estimular, tanto filho a abraçar, tanta família a reunir, tanta saúde a cuidar, tantos amigos a reunir, tanta humildade a aprender, tanto universo a discernir, tanta injustiça a corrigir, tanta maldade a evitar... Mas nos perdemos em duelos que extrapolam o verdadeiro tema, fustigamos a torto e a direito, muitas vezes sem sequer saber mais por que estamos lutando.

A vida anda complicada. O país está difícil. Ansiedade e desesperança nos oprimem. Pagar as contas, temer o desemprego e a violência, ter nossos jovens sob ameaça de bebida, droga, acidente e assalto, será que fomos bons pais, será que instruímos o suficiente, será que se sentem amados, será que... E por aí vai. Pessoalmente, sou boa com palavras, é o mínimo, mas não tenho prazer em debater quando não acredito numa causa. Facilmente me canso, a paciência não é uma virtude minha.

Então, parar para pensar, coisa tão temida, pode ser útil. Ouvir o bom senso é aconselhável. Cultivar algum bom humor, apesar de tudo ser um pouquinho generoso, informado e flexível pode reduzir essas guerrilhas que pouco ajudam, muito perturbam, instigam o preconceito, inventam monstros e nos fazem, em vez de criaturas construtivas e pacíficas, uma matilha feroz - enquanto o tempo e a vida estão passando e nós inutilmente nos desperdiçamos.

LYA LUFT



16 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Algum dia

Algum dia, eu vou ser um produtor de documentários reconhecido em todo o país, tenho preparo, cultura, experiência, uma boa rede de contatos, conheço a fundo esse meio. Enquanto isso não acontece, vou tocar adiante uma ação inédita na área da gastronomia, tive uma ideia genial para lançar no Nordeste, conheço as pessoas certas para me ajudar a fazer deste projeto um divisor de águas nos hábitos alimentares do povo brasileiro, é só conseguir patrocínio. 

Para não ficar ocioso antes disso, estou pensando em passar um mês no interior do Mato Grosso fazendo fotos de pássaros, foram catalogadas mais de 200 espécies de aves num parque ecológico, farei uma sequência espetacular de registros do gavião-real e depois posso montar uma exposição que percorrerá todo o Brasil e a América do Sul e ainda lançar um livro arrasador. 

Aliás, dois livros, porque um dia vou escrever sobre a história dos açorianos que fundaram Porto Alegre e sobre a contribuição deles para a religiosidade local, um assunto ainda pouco abordado, mas que dará um livro incrível, é só começar a escrever, já está tudo na minha cabeça.

Algum dia, eu vou escrever também um poema de amor bem dilacerante e vou enviar para uma gata que vai querer casar comigo antes mesmo de chegar ao último verso, e a gente irá morar numa casinha rústica numa praia linda que ainda não tenha sido invadida por turistas e eu vou pescar e ela fará doces que venderá no armazém da vila e dormiremos em redes e terei então a vida que sonhei, só amor e simplicidade, bem longe desses abutres que sugam nossa energia. 

Eu poderia inclusive musicar esse poema que vou escrever pra minha futura mulher e montar uma banda, um dia vou aprender a tocar guitarra e então vou fazer um som de verdade, eclético, moderno e não esses embustes que tocam em FM e que viram jingle de refrigerante, e irei me apresentar nos clubes fechados de Berlim onde encontrarei uma plateia preparada para o vanguardismo da minha proposta. 

É certo que um dia vou morar na Europa, tenho o ouvido bom para idiomas e transito bem na cena artsy, poderia até fazer a curadoria de um festival de cultura latino-americana, os gringos prestigiam esse tipo de iniciativa e pode render uma grana boa, aí aproveito pra pegar um trem até Amsterdã, onde tenho uns amigos que me emprestarão o estúdio deles, eles vivem me chamando, um dia irei, é só fechar antes o contrato com a empresa de calçados para a qual apresentei um plano de vendas revolucionário, os caras são muito lerdos, não têm capacidade de avaliar o potencial de uma ideia que foge do lugar-comum, o mundo é muito careta, as pessoas são muito limitadas, mas logo depois do meu aniversário eu levanto dessa cama (jura, já são três da tarde?) e vou agilizar meu futuro. 

Pois é, faço 58 amanhã.

MARTHA MEDEIROS



16 DE SETEMBRO DE 2017
PIANGERS

Feliz por nada


Queria dizer que eu e minha mãe gostamos da Martha Medeiros. Uma vez troquei e-mails com ela e lembro de ficar nervoso quando ela me respondia. É um nervosismo em duas vezes, primeiro: Ela respondeu!; e depois: Vou ter que responder com um e-mail muito bem escrito! Tragam o dicionário!. Quer dizer, hoje em dia a gente nem usa dicionário, usa o Google. Quando quero escrever uma palavra bonita sempre penso em um palavra comum e busco um sinônimo no Google. Foi assim que descobri o que é doctiloquia. Duvido que a Martha Medeiros procure palavras no Google, ela já sabe tudo de cor.

Sei que a Martha é muito ligada à própria mãe porque, nos poucos e-mails que trocamos, já foi logo citando a mãe. Falou da mãe em duas ou três frases. E, claro, escreve sobre mães como ninguém. As frases da Martha viram aqueles PowerPoints animados que as mães mandam umas para as outras. A forma mais singela de perceber que um escritor é um verdadeiro sucesso.

Assim como a Martha, adoro a minha mãe. Ela é de ferro. Passou por câncer, acidente de carro que vitimou seu namorado, 15 dias de coma na UTI. Ela anda com a perna firme, cheia de cicatrizes, como se fosse um soldadinho de chumbo. Nunca quer ajuda quando estendo a mão para ajudá-la, a não ser quando estamos em público. Quando estamos em público, me dá o braço como se fosse uma anciã endinheirada passeando com seu filho escritor. Seu filho escritor que sonha em ver suas frases em PowerPoints animados.

Assim que conseguiu, minha mãe se aposentou e fugiu pra sua casa de praia. É um condomínio decadente em que as paredes estão sempre descascando. Mas minha mãe não liga. Compra garrafas de vinho branco no supermercado por R$ 9. Não importa se é um bom vinho, por este preço é o melhor vinho que existe. Combina com o jogo semanal de cartas com as amigas. Combina com os filmes da Netflix. Combina com os livros da Martha Medeiros. Combina com as caminhadas no fim de tarde na areia. Combina com a leitura deste jornal.

Ela sempre avalia que meu texto tem muito a melhorar. Sempre diz que a Martha está maravilhosa. Quando colocaram nossas colunas na mesma página, em outro jornal, me mandou foto pelo WhatsApp: "Vocês dois na mesma página!". Naquele dia pensei: cheguei lá. Na boa, não há mais necessidade de colocar minhas frases em PowerPoints animados. Estou feliz com esse alcance. Com esta companhia. Com a alegria da minha mãe. E claro, com esse vinho de R$ 9.

PIANGERS



16 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

SESTA perfeita

Nada substitui o sono na própria cama. Não tem hotel cinco estrelas que rivalize. Não tem pousada de madeira na Serra que traga o mesmo conforto.

Mas sesta, no início da tarde, não combina com o quarto. Traz culpa e pesadelo, ansiedade e alarme de extravio.

Sesta não se faz com o consentimento. É um dos raros prazeres roubados da vida.

Para a cabeça funcionar e jamais ficar perdida depois, sesta depende de um lugar provisório, como se fôssemos adormecer por descuido, ouvindo - até desaparecer progressivamente - os barulhos da casa.

Sesta perfeita é no sofá, sem travesseiro e lençol, sem ninho e fortaleza, com as almofadas grandes reviradas, exposto ao trânsito da família.

Ela somente prospera contra o relógio, não a favor do tempo.

A imperfeição é parte do plano do cochilo. A graça vem em vencer a resistência. Não pode haver facilidades, como o escuro, o blecaute das janelas, a quietude, a porta fechada.

Deve-se ceder à preguiça integral: deitar logo após comer, não escovar os dentes, não realizar nenhum esforço de concentração, não mexer no celular, não convocar os neurônios a movimentos bruscos.

Sesta é queda livre. É fingir que vai ver um pouquinho de televisão e se esparramar de repente no vazio terapêutico da sala.

A mais saborosa sesta é aquela que é interrompida, mas jamais nos entregamos. Abrimos um canto do olho e não desistimos dos sonhos.

Sono fora de hora renuncia pré-requisitos. Que venha de qualquer jeito, longe do luxo. Que seja por rápidos 30 minutos, que seja uma vingança por despertar cedo no dia, que seja amontoado, dobrado e amassado, que seja deitado de roupa e cinto, com os sapatos de cabeça para baixo no chão, também roncando.

Sesta planejada somente nos piora. Sesta que nos melhora é caprichoso acidente da rotina.

CARPINEJAR

sábado, 9 de setembro de 2017


09 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

De primeira necessidade


Às vezes, paro para pensar - na verdade, faço isso com muita frequência, minha mãe já reclamava, "essa menina sempre no mundo da lua". Naquele tempo, eram sonhos. Hoje ainda são, mas dali resultam trabalhos: poema, artigo, romance. Conto.

Tenho pensado em como simplificar mais a vida, nesta fase que tantos temem, ah, a terrível passagem do tempo - mas por enquanto me agrada. Simplificar a roupa foi fácil, até porque nunca fui modelo de capa de Vogue. Calça comprida, camiseta preta, suéter ou um tipo quimono. Sapato idem, pois sou pesada e com um chatíssimo problema inato na coluna, ótimo é calçado rasinho.

Com o tempo, a maturidade, a experiência e alguma ousadia, fui simplificando várias coisas. Com algumas é difícil, exemplo: as relações pessoais. Não é fácil afastar sem ferir, sem despertar desconfianças, o bom sujeito que liga fora de hora para contar seu drama avisando que devemos escrever sobre isso ou exigindo um artigo de jornal contra algo que lhe desagrada. Aquela pessoa tão legal, que nos últimos tempos só fala de doenças, remédios, rancor contra tudo e todos: sombras de que ninguém precisa a mais na vida. Simplificar as saídas: sou realmente um bicho da minha toca, uma mulher da sua caverna. Minha casa sempre foi minha zona de conforto, por várias razões, inclusive fobias.

Quero poucas pessoas, assim me aflijo menos, eu que sou aflita: parceiro, família, amizades especiais, as fiéis funcionárias que me ajudam na enorme incompetência para o doméstico, e que eu quero bem. Os leitores que me dão tanta alegria com seu carinho. Sou feliz com as horas no computador, na poltrona com livro, ou olhando a paisagem, de onde me vem muita informação: aquela frase, aquela palavra, aquele personagem... ou simplesmente beleza. Os verdes mudando de nuance conforme o dia passa; os nevoeiros que deixam tudo mágico, do jeito que eu gosto. No Rio, até hoje meus amigos se espantam: "Essa gaúcha maluca gosta de dia com nevoeiro ou chuva!".

Também preciso simplificar o que ofereço à minha alma: reduzir o número de noticiosos a que assisto, fissurada desde sempre pelas loucuras (às vezes maravilhas) do mundo. Levar menos a sério algumas novidades médicas amadoríssimas ou prenúncios de mais desgraças, me interessar menos (de momento) pelas intrigas brasilienses e desastres do Congresso, que haveriam de me tirar o sono se os hospedasse por mais tempo e com mais atenção. A gente sempre pode se ajudar, se corrigir, se pegar no colo e se agradar um pouco, para não cultivar aquela extrema chatice que só resmunga, só se lamenta, só faz previsões das mais sombrias e, se desse, espantaria até a si mesmo do convívio cotidiano.

Mas eu lhes digo: não é fácil. Parece que a estrada está lamacenta demais, não se avança sem sujar o calçado. A irresponsabilidade geral está enorme, corrói a fímbria da alma; país e planeta andam adoentados, e é coisa feia. Nós, agarrados à casca desta terra, pobres cracas, precisamos nos dividir numa necessária esquizofrenia: metade atenta à chamada realidade, metade curtindo sonho, amores e beleza, que afinal ainda existem - e são produtos de extrema necessidade.

lya.luft@zerohora.com.br


09 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Descansou em paz

Durante alguns anos, convivi com uma senhora que trabalhou a vida inteira numa casa de família. Praticamente criou os filhos dessa família, que depois cresceram e seguiram amparando-a. Era uma mulher de alma boa, mas com uma vida desértica. Não sabia ler nem escrever. Não sabia identificar os números. Falava um português sofrível. Nasceu e viveu no interior do Rio Grande do Sul. Conheceu Porto Alegre, mas na Capital não conseguia pegar um ônibus ou fazer compras sozinha. Não teve filhos. 

Não se tem notícia de algum namorado, é bem possível que nunca tenha amado um homem. Colecionava bonecas mesmo depois de adulta. Era de uma ingenuidade assombrosa. Assistia televisão, mas entendia muito pouco do que via. Era uma mulher inocente que desconhecia a maldade, o sarcasmo, as segundas intenções. Cozinhava bem, seu grande dom. Fora isso, ter seis ou 60 anos não fazia a menor diferença, a não ser no aspecto físico. Nunca deixou de ser uma criança.

Soube que ela faleceu esta semana. Eu não a via há muitos anos e, quando soube da notícia, senti a melancolia natural de quem passa a recordar de alguém que já não habita esse mundo. Que eu saiba, não aconteceu nada de genial na vida dela, nada de minimamente empolgante, e isto me soou como um desperdício. Que graça tem viver a repetição sistemática dos dias, qual o sentido de existir sem arte, sem conhecimento, sem paixão, sem questionamentos? Me perguntei se ela teria sido feliz.

Imediatamente caí em mim: se bem a conhecia, ela nem sonhava com a possibilidade de haver outra opção que não a de ser feliz. Dava a impressão de que não reconhecia a existência de alternativas: ou isso ou aquilo. Só conhecia "isso": a vida dela, do jeito que era, sem desejos ou frustrações. Agradar às pessoas ao redor parecia ser a única coisa que queria fazer. Talvez tenha sido carrancuda algumas vezes, ou egoísta, ou desaforada: certamente foi, não era uma planta, e sim um ser humano. 

Mas nenhuma dessas reações vinha acompanhada de alguma consciência filosófica, de algum embasamento teórico. Ela não conectava suas emoções aos porquês. Impossível uma criatura dessas não ser feliz - ou perceber que é infeliz. Simplesmente, ela não racionalizava sobre seu estado de espírito. Não tinha recursos intelectuais para tal. Assim como ela, quantas outras vivem dessa maneira? Um mundaréu de gente, todos ignorantes de si próprios, mas nem por isso insatisfeitos.

Certa vez escrevi uma crônica chamada Minha Felicidade Não É a Sua, inspirada em um livro de Carlos Moraes. Lembrei dessa crônica ao pensar nessa senhora. O que sabemos nós sobre aquele que parece radiante ou sobre aquele outro que parece à beira do suicídio? Eles podem parecer o que for e seguiremos sem saber de nada, sem saber de onde eles extraem prazer e dor. É um atrevimento nos outorgar o direito de reconhecer, apenas pelas aparências, quem sofre e quem não.

Essa senhora que nunca leu, nunca viajou, nunca amou, nunca fez sexo, ou seja, que nunca experimentou os requintes e dissabores da vida adulta, parece ter desperdiçado sua vida. Mas estar no mundo apenas por estar, vá saber, pode ser uma forma sofisticadíssima de paz.

MARTHA MEDEIROS

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