sábado, 27 de janeiro de 2018



27 DE JANEIRO DE 2018
LYA LUFT
As virgens loucas


As virgens loucas do Novo Testamento - não preciso verificar e citar ao pé da letra porque aqui só me interessa a metáfora - não cuidaram do azeite de suas lamparinas e sofreram algum castigo (talvez o noivo que escolheria uma delas se perdesse na escuridão, deixando-as mais loucas ainda).

Mas gosto da expressão, da loucura, do quanto reflete a nossa condição atual, o tsunami de confusões, ameaças, protestos, coisas honradas e outras distorcidas, nem tantas tão dignas.

O chamado povo brasileiro, que alguns qualificam de preguiçoso, desatento, conformado, eu o vejo como heroico, honrado, sacrificado, em parte desinformado e por isso iludido. É o meu povo. Há cinco ou seis gerações, minha família vive aqui, ajudou com sacrifício a construir esse gigante de momento tão atrapalhado.

Quem somos? O que sabemos? O que queremos? Oscilamos entre os pregadores da esculhambação, os oradores complicados que ninguém entende, os gritalhões adolescentes eternos e irresponsáveis. Mas, de repente, vejam só: num tribunal de desembargadores aqui, em Porto Alegre, minha amadíssima cidade adotiva (Gramado é a outra, sendo Santa Cruz meu berço), magistrados relativamente jovens, preparadíssimos mas não metidos a eruditos, sem rasgados falsos elogios mútuos, começam a botar as coisas em seus devidos lugares e a apresentar a verdade - devidos, porque é justo, porque é questão de justiça. 

Não há política nem politicagem, não há exibicionismo de erudição jurídica, não há nada palavroso nem olhares fulminantes ou peitos estufados. Apenas, com a simplicidade de quem de verdade sabe e sabe que está com a verdade, fizeram uma faxina moral e conceitual nas nossas cabeças. Isto é, de quem quis ou soube escutar.

Um velho professor com quem muitíssimo aprendi sempre me dizia: "Só quem sabe o mais consegue dizer com clareza e verdade o menos". De modo que, assim, aprendi então que o caminho da sabedoria é também o da simplicidade, sobre as calçadas da verdade.

Difícil, sim. Na vida pessoal, mais ainda na vida pública. Não quero nenhum imitador de Cristo populista, não quero incitação à desobediência, não quero irresponsabilidade nem borbulhas de champanhe francês atrás dos bastidores enquanto nós, o povo brasileiro, trabalhamos até o fim para pagar contas e impostos, morremos nas filas, no chão dos hospitais, na pobreza e falta de higiene nos nossos barracos, porque nem esgoto decente nos deram, muito menos escola boa, e próxima.

Quero, sobretudo, paz. Decência. Honradez. Alguma liderança de cara e mãos limpas, que nos dê esperança de não estarmos nos últimos lugares em quase todas as avaliações globais: infraestrutura, educação, saúde, Previdência, orgulho natural disto que somos.

Deus nos ajude.

LYA LUFT

27 DE JANEIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O fim da mulher discreta


Diretores de empresas, cineastas, fotógrafos, senadores, deputados, médicos, dentistas, advogados, jornalistas, professores, treinadores, executivos em geral: posso imaginar alguns deles colocando a cabeça no travesseiro à noite e se perguntando quais as chances de, na manhã seguinte, serem despertados por uma denúncia de assédio que porventura tenham cometido anos atrás. 

Rastreando a memória, talvez eles encontrem cenas esparsas de um carinho mal-intencionado numa estagiária, de uma proposta constrangedora a uma funcionária recém-contratada, de uma apalpada indevida numa paciente imobilizada, enfim, alguma situação de abuso de poder que tenha caído no esquecimento, mas quem garante? A mulherada lembra de tudo e resolveu soltar o verbo.

Pois é, rapazes, já não se fazem mais garotas discretas como antigamente.

Todas as pessoas, seja homem ou mulher, têm segredos guardados, e não há do que se envergonhar disso, ao contrário, é sinal de vida bem vivida. Ninguém está interessado na biografia de alguém que não tenha nadinha a esconder. Pequenas derrapadas, aventuras secretas, as deliciosas maluquices que ficaram sem testemunhas, quem nunca? Se você tem propagado por aí que sua vida é um livro aberto, não vejo tanta virtude nessa transparência toda, talvez seja um atestado do quão pouco audaciosa você é. Ora, não há quem não tenha, em sua história pessoal, ao menos um parágrafo punk.

E não precisa contar. Guarde pra você, esta é a graça da coisa: saber que ninguém imagina do que você foi capaz.

Completamente diferente é você ter sido vítima de um crime e silenciar a respeito por ser uma dama sofisticada que não se expõe. Sei bem como é difícil abrir o porão da nossa intimidade, já que foi assim que nos educaram: mulher fina é mulher calada. Graças a essa opressão travestida de etiqueta, guardamos traumas que nos infernizaram por anos. E, para piorar, nós mesmas fazíamos bullying umas com as outras: se alguma vinha a público denunciar um chefe ou um parente, éramos as primeiras a julgá-la como escandalosa, chamativa, vulgar.

Isso foi em outro século. Sabe esse boato de que o mundo está mudando? Procede.

Mulher fina pode e deve falar sobre alguma violência a que tenha sido submetida. É bem verdade que ainda há quem não tenha entendido que assédio está relacionado com poder - não só poder hierárquico, mas físico também. Cantada sem contato corporal e sem uma chantagem subentendida não é crime, pode, no máximo, ser uma grosseria, uma chatice, uma inconveniência, então cuidado para não ser injusta. 

Mas, se o titio justificou o parentesco para obrigá-la a fazer coisas que você não queria ou se o chefe insinuou que sua carreira não iria adiante se você não fosse boazinha com ele, abra o bico. Com um batom arrasador, claro: uma vez elegante, sempre elegante.

De resto (sobre aquilo que ninguém sabe que você fez ano passado), nem um pio.

MARTHA MEDEIROS

27 DE JANEIRO DE 2018
CARPINEJAR

A lição do quero-quero


Eu tenho hábito de escrever em praças. Em Porto Alegre, me isolo no laguinho do Grêmio Náutico União, da sede Petrópolis. Enquanto os outros caminham em círculos, eu ando dentro de mim.

Mas nunca é fácil me aproximar do meu esconderijo entre as árvores. Preciso enfrentar o temperamento agressivo do quero-quero. Ele não gosta de mim. Quando eu me dirijo para a alameda das quadras, ele já se põe em arma. É um duelo de faroeste. Bufa, concentra os olhos, arruma o penacho, levanta poeira com uma de suas patas e corre em minha direção. Sou obrigado a perder o charme do passo a passo e trotear em desespero. É uma vergonha social. Nem ficar quieto traz calmaria, a tática usada com os cachorros bravos não tem serventia.

Farejando o meu medo, ele voa para cutucar as minhas costas e cabeça. É uma invasão de pássaros feita por um único pássaro. Não o compreendo: não fiz nada para que demonstre colossal ódio. Soa como implicância gratuita. Parece que a cisma é somente comigo. Não ataca mais ninguém.

Lá estou, adulto, homem barbudo, fugindo do quero-quero. Logo eu, que não temo cascavel e rato. Uma comédia para os funcionários do clube, que não escondem as risadas da perseguição matinal. Não duvido que a cena seja um dia gravada e surja nas cassetadas de Faustão.

Buscando decifrar o seu comportamento arisco, me dei conta de que ele apenas está protegendo o seu ninho, guardando a casa. Atrás de sua vigília, há dois filhotes ainda sem pêlo e bambas, perto das cercas.

Aquilo me converteu emocionalmente, desmoronou a antipatia. Ele é um exemplo de pai. Eu vi que somos iguais, ou, pelo menos, tento ser. Minha paternidade sonha em lutar pelos filhos como um quero-quero. Com a mesma garra e imposição. Com a mesma fúria e possessão.

Pode me zombar, pode me ofender, mas jamais os meus filhos. Minha vaidade se concentra toda na minha ninhada. Eu perco o discernimento. Levanto voo e afio as asas em revoada. É o ponto fraco e também o ponto forte.

Coisa de gaúcho não temer a batalha para defender a prole.

CARPINEJAR


27 DE JANEIRO DE 2018
PIANGERS

Aurora


Hoje uma senhora passou por mim na praia e gritou: Sou fã da Aurora!. As pessoas são suas fãs, Aurora. Acho que é por causa do seu jeito alegre, sempre sorrindo, da sua simpatia em acenar para todos. Isso vem de quando você era ainda mais nova com um ou dois anos você já acenava para cachorros na rua. Com três anos, você fazia amizade com todos os mendigos do bairro, conversava demoradamente sobre os objetos que eles tinham amontoados em cima do cobertor no chão. Eu queria apressar o papo, meio por receio do que poderia surgir daquela amizade, meio porque chegaria atrasado pra te deixar na creche.

Acho que as pessoas são suas fãs porque você está sempre se divertindo. Acorda dando risada, toma café da manhã com entusiasmo, vamos andando até a escola com alegria. Se eu faço uma piada, você ri alto; se te carrego no colo, você comemora; se encontra uma joaninha no meio do caminho, fica deslumbrada. 

Você, aos cinco anos, ainda acredita nas coisas mais fantásticas. Como aquela vez em que fomos a um parque com dinossauros de plástico gigantes, e você disse que achava que eram dinossauros de verdade que aceitaram trabalhar no parque em troca de comida. Como quando eu esqueci de trocar seu dente que caiu por uma moeda, você acordou e disse: "Olhem só. Eu ganhei o meu próprio dente!". Você é uma menina feliz, Aurora.

Uma vez, me disseram que eu mudei depois que você chegou. Que minha primeira filha era mais séria e racional - como eu -, e, por isso, eu não tinha mudado muito com a chegada dela. Mas que, quando você chegou, eu fiquei mais doce e deslumbrado. Acho que isso aconteceu mesmo. 

Você gosta de cócegas e de andar pela rua saltitando de mão dadas. Você me chama de seu herói, diz que sou a pessoa mais legal do mundo. Não tem como não ficar doce e deslumbrado com essas coisas, Aurora. Você é um sopro de esperança em um mundo duro. Você conversa com todos sem julgamento. Seus olhos brilham com as coisas mais comuns da natureza. Você se diverte com as coisas mais triviais.

Não há nada que deixe um pai mais orgulhoso do que ouvir um elogio aos filhos. Você pode elogiar o pai, e ele ficará contente, mas elogie seus filhos, e ele ficará realizado. Toda vez que alguém diz que gosta do meu trabalho, fico agradecido. Mas, toda vez que alguém diz que gosta das minhas filhas, fico emocionado.

Ontem, você segurou a porta do quarto pra eu não entrar. Disse que tinha uma charada, e eu só entraria se acertasse a resposta: "O que é o que é um ponto amarelo na grama". Respondi: "Um fandangos? Um milho?". E você: "Não. Um flor amarela!". Eu ri tanto. "Já que você não acertou tenho outra: o que é um pontinho preto andando na calçada?" "Uma pessoa?", eu disse. "Sim! E qual o nome da ?pissoa? (sic fofo)?", você perguntou. "Marcos?", respondi. "Acertou", e você me deixou entrar.

Neste verão, estou te contando uma história infinita sobre um lagarto que vimos aqui no terreno da frente do prédio. Ele morava com a família em um buraco e ficou amigo de um sapo. O sapo ganhou uma capa que dava a ele superpoderes. Os dois fizeram corridas, festas de Réveillon, entregaram brinquedos de Natal e organizaram apresentações em zoológicos. No episódio de ontem, eles perderam a voz e tiveram que se apresentar apenas batendo palmas. Sempre que digo "Continua amanhã", você diz que eu contei muito pouco, que quer mais. É uma história que nunca vai terminar, Aurora.

Assim como a nossa.

PIANGERS

27 DE JANEIRO DE 2018
CAUÊ FONSECA (INERINO)

LULA, ENTRE O BRONZE E A CARNE



Chamou atenção o finalzinho da manifestação do procurador regional da República, Maurício Gotardo Gerum, durante o julgamento que tornou Porto Alegre o epicentro político do Brasil na quarta-feira passada. Falando, é claro, do réu Luiz Inácio Lula da Silva, o procurador citou Crime e Castigo, a crise de consciência em forma de romance escrita por Fiódor Dostoiévski. No trecho, enquanto pensa na velha agiota que assassinara, o protagonista Raskólhnikov devaneia sobre Napoleão:

- O verdadeiro soberano, a quem tudo é permitido, esmaga Toulon, faz uma carnificina em Paris, esquece um exército no Egito, sacrifica meio milhão de homens na campanha da Rússia e se safa com um calembur em Vilna. E ao morrer é transformado em ídolo. Logo, tudo lhe é permitido. Não, pelo visto esses homens não são de carne. São de bronze.

Gerum então se apruma para fechar sua participação com uma frase de efeito:

- Em uma República, excelências, todos os homens são de carne.

Carne, pensei cá com meus botões, por alguns muito bem protegida pelas armaduras da imunidade parlamentar ou do foro privilegiado. Mas tudo bem, o que achei curioso mesmo foi a citação ao bronze. Porque Lula há muito não está lutando com unhas e dentes pelo direito de voltar a ser presidente da República. Político experiente que é, duvido que ele mesmo se enxergue subindo a rampa do Palácio do Planalto em 1° de janeiro de 2019 e tomando a faixa verde-amarela de Michel Temer. Lula está lutando justamente pela sua versão em bronze. Pelo que será lembrado.

Me pergunto se Lula, ao olhar para o espelho e enxergar aquele misto de cansaço e fúria das capas de jornal da última semana, já se perguntou quais foram os seus grandes erros desde 2010, quando deixou o poder como o preferido de líderes de Estado como o francês Nicolas Sarkozy e o português José Sócrates para ser secretário-geral da ONU. Aquele para quem Barack Obama apontou em 2009 e disse: "Esse é o cara!". Desconfio que esses erros não têm nada a ver com triplex. As primeiras fissuras na figura de Lula se deram a partir de escolhas políticas infelizes.

Falando em Obama, faltou a Lula a grandeza de se afastar do poder como fazem os presidentes norte-americanos tão logo abandonam a Casa Branca. De se exilar da vida política após a sua contribuição de quatro ou oito anos. E Lula não deveria fazê-lo apesar de ser extremamente popular, mas justamente por sê-lo. Sua popularidade desobrigou o PT e a esquerda como um todo de procurar um sucessor natural, alguém com capacidade própria de liderar políticos em torno de um projeto de governo e de país. Esse candidato, perdesse ou ganhasse a eleição, tiraria o foco de Lula. Traçaria seu próprio caminho.

Em vez disso, Lula optou por moldar a figura de Dilma Rousseff e se manter presente. Teve carisma para eleger e reeleger a sucessora, e esse foi outro erro. Dilma pode ter sido eleita por Lula, mas ainda era a presidente, e uma presidente pode ser apeada - especialmente uma, diferentemente de Lula, sem características de liderança tão necessárias para o cargo e aliada a partidos infiéis. Somando a esse cenário a incompetência da oposição de superar Lula ou o legado de Lula, deu-se o impeachment e a derrocada do seu partido, hoje um triste agrupamento de cabeças brancas amarguradas.

Fora da política, sobre apartamentos, sítios e afins, não sou procurador, advogado de defesa e muito menos juiz para sentenciar, mas me consternou, à época, uma fala de Lula repetida à exaustão em um daqueles discursos inflamados após a condução coercitiva em março de 2016. Lula se referia aos pedalinhos com os nomes dos netos em Atibaia:

- Só eu não posso?!

Exatamente, Lula. Só você é o primeiro presidente de origem popular. E, como tal, teria de ter especial cuidado com a coisa pública para evitar que qualquer problema na Justiça desse vazão ao preconceito social em forma de protesto contra a corrupção. Seu dever - o de todos, mas seu em especial - era o de ter uma índole inatacável. Pela simbologia que representa. Os processos vêm mostrando, infelizmente, que está longe disso.

A batalha de Lula, agora, é pela caneta da História. Se ficar de fora da eleição, Lula tentará emplacar a versão de um herói, de um perseguido político por ser um candidato imbatível. Para isso, grita forte para que não emplaque a outra versão, a de que ele é apenas mais um político cooptado pela corrupção que terminou na cadeia. Uma batalha entre o bronze e a carne. Ou entre o bronze e o plástico, em forma de boneco inflável flutuando no Guaíba em trajes listrados. Lembra do tal calembur (um trocadilho, um jogo de palavras) citado na fala do procurador, proferido por Napoleão ao abandonar suas tropas aos frangalhos sob a neve de Vilna: do sublime ao ridículo, é só um passo.

CAUÊ FONSECA (INERINO)

terça-feira, 23 de janeiro de 2018



23 DE JANEIRO DE 2018

CARPINEJAR


O concurso do amor


Em dicas de vestibular e concursos, recebi a clara recomendação de descartar as questões mais simples para depois resolver as mais difíceis.

Nunca deu certo. Assim que começava uma prova, as mais fáceis pareciam também difíceis. Batia um pânico na porta de meus olhos. Não conseguia eliminar nenhuma das perguntas simples para ganhar preciosos minutos e enfrentar as soluções dispendiosas. Eu me debatia pela quebra do planejamento. Mordia a caneta, mastigava o lápis, tirava nacos da borracha.

Há quem, diferentemente dos conselhos dos professores, segue a ordem cronológica da prova para não enlouquecer com o que vem pela frente.

Comigo apenas funcionou a receita de iniciar pelas perguntas mais espinhosas e depois resolver as mais básicas. Encaro o que não sei para em seguida desenrolar o que entendo. Aproveito a tranquilidade do cronômetro para refletir demoradamente em uma saída para as charadas e ciladas.

Na vida pessoal, segui idêntico processo. Eu me preocupei bem mais em ter sucesso no amor do que na profissão. Mesmo que isso significasse ser reprovado pela soma dos pontos.

Eu me lancei na missão de achar a minha cara-metade. Não tive nenhuma outra prioridade. Mantive a consciência de que me quebraria, de que erraria, de que choraria, de que superaria vexames e desilusões, de que me arrependeria das certezas e me enervaria com as dúvidas.

O que entendi desde sempre: é preciso estudar para amar. Não é algo que se nasce conhecendo. Você experimentará pessoas, fórmulas e crises para definir o seu repouso. Passará madrugadas lendo os pensamentos e avaliando o instinto. Não se acertará de primeira. Dependerá de rascunhos e recomeços.

Ser amado e amar é a operação mais complexa da existência, a mais assustadora. Não é tarefa superficial localizar alguém para casar nesse mundão, compatível, com cumplicidade para atravessar as tormentas e generosidade para transformar a banalidade da rotina em alegria. Exige a nossa maior concentração. Há grandes chances de não encontrar ou se desencontrar do grande amor de sua biografia. Ou de deixar a folha em branco aguardando uma melhor hora.

Após responder à questão amorosa, todas as demais se tornam mais singelas e desembaraçadas. O êxito na carreira vem como consequência, os filhos serão resultado da convivência harmoniosa.

Quando Beatriz disse que ficava feliz não fazendo nada ao meu lado, eu poderia finalmente ser tudo. Não existe declaração de felicidade mais imponente para se ouvir.

O tempo agora está a meu favor para seguir com o exame.

CARPINEJAR

sábado, 20 de janeiro de 2018


20 DE JANEIRO DE 2018
LYA LUFT

As vítimas, os monstros... e o resto

Nesses últimos meses, semanas e dias, o acúmulo de denúncias dolorosas e horrorosas de abuso sexual contra crianças e adolescentes (e também jovens adultos) no mundo está crescendo de forma espantosa. Não sei se os casos aumentaram, mas certamente aumentou a coragem de denunciar. Um tsunami de pavor, e os questionamentos que ele traz consigo.

Mesmo que haja alguns delírios ou injustiças, a multidão de casos reais é tão assustadora, que me pergunto: que gente somos? Que pessoas eram e são essas, aquelas? Quem faria isso com uma criança, uma adolescente, um adolescente? Repetidamente, às vezes anos a fio?

E que espírito humilhado, dilacerado, apavorado, levou as vítimas a suportar tais horrores às vezes longo tempo, sem se queixar nem aos pais, aos professores, a algum irmão mais velho ou melhor amigo? O que há conosco, com nossos filhos, netos, conhecidos e mesmo desconhecidos mundo afora - vítimas e criminosos enrolados em laços tão malignos, que nas vítimas abrem feridas muitas vezes incuráveis?

Padres, pastores, diretores, chefes de equipes esportivas, treinadores, professores, ou parentes, inclusive pais ou tios... Que seres pouco humanos têm esse acesso às vítimas e conseguem manter esse terror por anos e anos?

Mais do que isso: sabe-se que alguns superiores ou chefes foram alertados pelas vítimas ou pelos seus pais: mesmo assim, pouquíssima coisa transpirou, nada de punições exemplares e clamor público. Minha compreensão é pequena demais para entender que todas as crianças não sejam alertadas em casa, desde sempre, para correr, gritar, fazer escândalo, a qualquer sinal de algo indevido da parte de outras pessoas, sobretudo adultos. Professor, sacerdote, parente, treinador... tanto faz. Autopreservação é a palavra de ordem. E confiança de que alguém virá ajudar. Melhor chamar a atenção para um engano do que se submeter a tal horror.

As vítimas, muitas das quais choram décadas depois do ocorrido ao falar nele, sofreram por ingenuidade, medo, ou falta de ajuda e colo e escuta em casa. Por uma cruel e cômoda omissão do resto, dos outros, de nós, a sociedade e a família?

Essa cumplicidade velha e sólida dos grupos responsáveis construiu essa torre de opróbrio no alto da qual, agora, os culpados deveriam ser expostos e - perdoem os mais compassivos - castrados, ainda que quimicamente. Prisão é pouco. É fácil demais escapar, sobretudo por aqui.

Gente famosa, respeitada, admirada, é objeto de acusações dramáticas, de quem, quando o crime aconteceu, era apenas criança. Foi só uma vez? Dez? Durante alguns anos ou um ano só? Uma hora que seja, meia hora? O estrago na alma, na psique, na confiança, no recato, no respeito por si e pelos outros foi fundamente escavado nessas vítimas. Que sociedades, que famílias, que igrejas, escolas, academias, equipes esportivas foram e são as que abrigam, ou mesmo ajudam pelo silêncio vergonhoso, esses crimes?

Não sei. Sempre, desde que me conheço, escrevi contra qualquer discriminação, e pela dignidade de crianças, adultos, qualquer raça e condição social. Mas neste assunto, confesso, até eu me atrapalho com as palavras: para esses violadores da natureza humana, quero castigo e eterna discriminação.

LYA LUFT



20 DE JANEIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

A MATRIZ


Recebi um vídeo em que o filósofo Mario Sergio Cortella diz que todos os nossos valores de conduta deveriam ser submetidos a uma pergunta simples: O que minha mãe diria se soubesse que eu...?. Se ela compreendesse, se considerasse coisa de pouca gravidade, você estaria absolvido. Mas, se a reação dela fosse fechar as janelas da casa e retirar suas fotos dos porta-retratos, não haveria dúvida: você teria sido reprovado no mais implacável teste de dignidade. Uma mãe envergonhada de um filho é o fundo do poço, não há como descer mais.

Fiquei pensando se alguma vez envergonhei minha mãe, e a resposta, claro, foi um redondo sim, ou não seria uma criatura normal. Mas nada que justificasse retirar minhas fotos dos porta-retratos. Eu era um bicho do mato quando menina, nenhuma articulação para conversar com parentes, e o gosto para me vestir era mais que duvidoso. 

Sabe aquela bonitinha de maria-chiquinha que todos apertam a bochecha? Esquece, não era eu. Depois, virei uma moça que, para os padrões da época, talvez parecesse meio selvagem: fui morar sozinha, tinha uns namorados estranhos, não casei na igreja. Mas nunca repeti o ano, jamais tiveram que me buscar numa delegacia e venderia fácil meu carro usado.

Então, virei uma jovem senhora, e a maturidade fez seu dever de casa: minha mãe e eu viramos a melhor amiga uma da outra.

O sorriso permanente que ela traz no rosto só saiu dali por breves minutos de sua vida inteira. Minha mãe assiste a todos os bons filmes que estão em cartaz e a todos os clássicos que reprisam no Telecine. É formada em Letras e já lia Dostoievski com 12 anos de idade. E, garanto, teria sido a mais divertida comentarista de televisão: quem pensa que o jornalismo ganhou algo comigo não pode imaginar o que ele perdeu por não tê-la descoberto primeiro.

É mãe excelente, mas quem dera tivesse sido minha avó. Para entender isso melhor, perguntem a quatro sortudos: Julia, Laura, João Pedro e Rafael. Eles sabem o que é ter a Disney a 15 minutos de casa. Basta que ela abra uma caixa de pulseiras, uma gaveta de fantasias ou um baralho encantado, e ninguém mais quer saber de TV, computador, smartphone. Quantos adultos sabem brincar pra valer?

Minha brincadeira preferida é conversar, e ela domina essa arte também. Não há ninguém que me entenda tanto quanto ela, que me faça sentir tão à vontade para falar sobre qualquer assunto. É uma interlocutora antenada: não é chata nem careta, nem pirada. Teria direito, hoje, de ser um pouco de cada, mas chegou aos 80 anos preservando sua independência, sem fazer chantagens emocionais e com a lucidez diabólica de quem amou muito, leu muito e valorizou cada segundo respirado.

Isabel é o nome da aniversariante de hoje, a quem espero não estar envergonhando com essa megaexposição: que minhas fotos permaneçam no lugar.

MARTHA MEDEIROS


20 DE JANEIRO DE 2018
FABRICIOCARPINEJAR

O iluminado


Com a mudança de endereço, fica-se desalmado, frio, indiferente. É empacotar 60 caixas e desempacotar depois todas, uma por uma. Não existe modo de suavizar a raiva e enganar o ressentimento. E só você pode realizar a empreitada, só você conhece o conteúdo e reconhece a importância de cada item - dificilmente conseguirá delegar a tarefa para um estranho, ainda que pagando.

É o apocalipse do casamento. O inferno deve ser exatamente a condenação demoníaca de realizar uma mudança diária e jamais pôr fim à transferência. Não consigo imaginar castigo mais severo: mendigar eternamente por papelão nos supermercados, colocar os pecados dentro, adesivar, carregá-los por cinco andares de escada e reabrir para ser avisado no término que você não mora ali e se enganou de destino.

Não há como manter a paciência no carreto. A vontade é jogar tudo fora e residir num hotel. Talvez comprar tudo de novo para não ter que decidir o que presta e o que não presta, o que combina com a decoração e o que é fundamental ainda conservar para o futuro, na repescagem do alto dos armários.

Aquilo que foi guardado com esmero e dedicação durante décadas, de repente, no final do cansaço, é posto no lixo sem nenhuma piedade. Nunca faria isso se estivesse descansado. Cartões de amor são rasgados, fotos raras da família são picotadas, presentes simbólicos são destruídos, toalhas e lençóis levemente amarfanhados são descartados, relógios antigos são depenados, com os seus ponteiros insanamente arrancados.

A operação atinge o nível máximo do f... Ou não há mais lugar nos cômodos ou teria que remanejar a ordem da prateleira que levou horas ou simplesmente não aguenta enxergar mais nada pela frente e o mero ato de levantar o braço. O gesto inofensivo de abrir uma caixa já lhe irrita, gera fastio por ter vivido.

A minha esposa me tocou no ombro durante o nosso vaivém de tralhas, e eu virei o rosto furioso, gritando:

- O que foi?

Ela jura com os dedos cruzados que eu estava com um olhar de psicopata e que parecia fora de mim, pronto para o desatino. Saiu de perto para não ser também descartada.

Não duvido. Mudar-se é também mudar a personalidade por completo. Quem era doce acaba amargo, quem era educado acaba rude, quem era saudosista acaba curado.

FABRICIOCARPINEJAR


20 DE JANEIRO DE 2018
PIANGERS

Não é uma tragédia

Essas coisas acontecem. Um jovem adoece no verão. Um senhor é atropelado por um táxi. A biópsia aponta que o tumor é maligno. Essas coisas acontecem todo dia. E todos os dias saímos de casa achando que jamais acontecerá conosco. Uma doença leva embora um pai. O médico comunica um exame preocupante. Uma moto atravessa um sinal fechado. Todos os dias isso acontece. E todos os dias nossos planos são os mesmos. Trabalho, almoço; trabalho, jantar.

Não acho que seja uma tragédia quando essas coisas acontecem com a gente. Dizemos: "Que tragédia, morreu tão cedo". Não acho que seja uma tragédia. Acho que a vida é um amontoado de caos e coincidência. Acho que hoje estamos aqui e amanhã não estamos mais. Uma tragédia é não agradecer por esse tempinho que estamos aqui. Uma tragédia é não valorizar. Uma tragédia é trocar o sorriso do nosso filho pelo celular. Um passeio em família pelas preocupações do trabalho.

Uma tragédia é não abraçar as pessoas hoje. Uma tragédia é passar a vida em branco. Uma tragédia é achar que um dia vamos ser felizes, não hoje. Uma tragédia é achar que não vai acontecer com a gente. E a vida vai ficando pra depois. Um dia, eu mudo de emprego. Um dia, eu digo que gosto dela. Um dia, eu faço uma viagem. Um dia eu vou ser voluntário nesse projeto.

Não acho que seja uma tragédia uma jovem cheia de planos descobrir um câncer. Acho uma tragédia quando aprendemos a valorizar o que temos só depois de perder. Acho uma tragédia não termos ido ainda para aquela viagem dos nossos sonhos. Acho uma tragédia o pedido de casamento não feito. Acho uma tragédia ter se formado em uma profissão que você não ama. Acho uma tragédia trabalhar em algo que você odeia. Acho uma tragédia você passar a vida brigado com alguém.

A morte não é uma tragédia. Tragédia é quando a gente não viveu.

PIANGERS

sábado, 13 de janeiro de 2018



13 DE JANEIRO DE 2018
LYA LUFT

Assédio, que cansaço


Periodicamente, surgem os temas do momento, da moda ou da neura, as obsessões ou as catarses. Às vezes, movimentos mais do que justos.

Nestas semanas, fala-se obsessivamente de assédio: aqui, na Europa, nos Estados Unidos sobretudo, numa erupção vulcânica, às vezes cheirando a enxofre, de acusações justas, invenções cruéis, atitudes ridículas. Moralismo é farisaísmo e hipocrisia numa bela mistura. Prefiro falar em decência natural, e respeito óbvio.

Na Inglaterra, a senhora jornalista de meia-idade de repente lembra: "O ministro tal botou a mão no meu joelho há trinta anos". Vai a público, denuncia. Imediatamente, o ministro, importantíssimo aliás, declara que, sim, vagamente recorda, é culpado, e... se demite. Nos Estados Unidos, mais fanáticos nesses assuntos, um já idoso figurão do cinema e da televisão é acusado por uma das candidatas a emprego, que aceitou entrar com ele no quarto de hotel, e ficou revoltadíssima quando a digna figura lhe exigiu carinhos em troca de aumento ou emprego, ou seja o que for. 

Somos mesmo tão ingênuas assim, neste mundo, nesse meio? Não duvido da veracidade de muitas dessas acusações. Nem todas: dificilmente, uma mocinha linda imagina que encontrar-se a sós com um possível chefe - nesse meio - seja um piquenique com Coca-Cola zero e sanduíche de atum. O que, evidentemente, não justifica a suinice do troglodita.

No caso, o big boss era um suíno rematado, parece que dezenas, centenas de mocinhas tinham passado por isso, mas só então, numa abertura de comportas da memória, aos magotes, o crivaram de acusações parecidas. Coisas de cinco, dez, vinte anos atrás. Ninguém tinha presenciado, mas era tudo verdade. Pelo jeito, ele merecia tudo isso e mais.

Num instante, uma quantidade surpreendente de figuras conhecidas na política ou no entretenimento, celebridades em geral, foi objeto de acusações de assédio. Isso sem termos ainda definido bem o que seja assédio: grosseria, ofensa, forçação de barra, estupro? Lembrem que mão no joelho ainda não é considerado, que eu saiba, estupro. Logo, logo, será.

Um raivoso movimento de mulheres brandindo dedos, braços, documentos e acusações afirma que os homens, em princípio, não prestam. Então, nada mais de paqueras, elogios, beijinho na face na hora do encontro, gentilezas no jantar, elogio simpático no elevador. Nada de nada. Psiquiatra só pode atender as pacientes com um guarda ao lado. Não há mais falas às vezes difíceis, talvez doloridas, entre médico e paciente no consultório dele, antes ou depois dos exames. Nada de confiança. Professor ou professora a sós com criança ou adolescente, nem pensar. Portas abertas, e olhe lá. E os tios? Os primos crescidos? O dentista, imagine só?

Enfim, tudo isso mistura o trágico, o real, e o idiota: não confiamos em mais ninguém, esquecendo que assédio real não ocorre só contra meninas ou mocinhas, mas meninos e rapazes. Quem sabe adultos, belos, em cujo pescoço suspeitas virgens se atiram?

Não me crucifiquem, não interpretem mal, aliás nem me interpretem: sou contra qualquer violência, física ou verbal, e não só de homens contra mulheres. Também sou contra mal-entendidos irresponsáveis que podem ter consequências graves. Tenho medo de movimentos nem sempre lúcidos e limpos, reivindicando aos berros uma reforma vaga ou absurda, exigindo um acusado, um tribunal, ou, como disse Oprah, vendo com entusiasmo "uma luz surgindo no horizonte". Todo mundo alerta: a desconfiança se espalha feito chikungunya ou dengue.

LYA LUFT


13 DE JANEIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Quem diria que viver ia dar nisso

Eu não fazia ideia de que entrar na intimidade de uma pessoa equivale a uma viagem. Que se relacionar amorosamente é como ganhar um passaporte para explorar uma terra estrangeira. Por meio de uma paixão, você descobre outros cenários, outros cheiros, outros hábitos, outras maneiras de falar, de pensar e de existir. Cada homem ou mulher que passa a fazer parte da sua vida, mesmo que depois vá embora, está ofertando não apenas um corpo, e sim um universo, e esse desbravamento mútuo é que é excitante.

Eu nem supunha que as minhas fantasias infantis poderiam, um dia, furar a bolha da ilusão e virem parar aqui, neste cotidiano maduro, realizando-se não exatamente como foram idealizadas, mas, ainda assim, proporcionando extremo prazer: viver é melhor que sonhar, mesmo. Quando olho para trás, fico perplexa com a minha incredulidade, me considerava o azarão de todas as apostas.

Jamais supus que teria condições de ir tão longe geograficamente, de conhecer tantos lugares, sendo que o mais surpreendente é que, além do privilégio de ter tido amores e amigos como parceiros de estrada, tive a mim mesma como a melhor colega de quarto, a mim mesma como a mais tranquila parceira de voo, a mim mesma como a mais entusiasmada das companhias, e foi essa confiança e coragem que permitiu que eu desfrutasse plenamente (e não parcialmente) da minha liberdade, item número 1 da minha bagagem de mão.

Achei que nunca seria mãe, já que me sentia meio deslocada e inábil para os ritos de passagem que todos cumprem de forma natural, mas recebi também o meu quinhão, e ele me veio em forma de duas meninas, hoje duas mulheres, que me fazem ter certeza de que a maternidade não é um prato feito, não é uma rota segura, não é repeteco da história dos outros, mas uma aventura que potencializa as nossas emoções de forma avassaladora e ininterrupta.

Custei a acreditar que poderia fazer diferença na vida de alguém, que teria saúde para tantos movimentos, que teria criatividade para tantos projetos, que teria coração para tantos sentimentos, que teria uma voz, uma imagem, um endereço, um nome, um passado, um destino. Não conseguia dimensionar a quantidade de amizades valiosas, de momentos sublimes, de tristezas profundas, de tanta coisa boa e louca que encontraria pelo caminho, e como essa salada mista me faria bem e me manteria ereta. Se me dissessem que um dia eu seria uma mulher de poucos medos, até acreditaria, mas ainda não saberia o que fazer com essa vantagem.

Ontem deparei com uma foto de quando eu era criança, um retrato já meio amarelado pelos anos em que ficou esquecido numa caixa de papelão. Nele estou olhando fixo para a câmera como se, por trás das lentes, estivesse o meu futuro. Uma menininha de pouca idade (quatro, cinco anos) com muita vontade de crescer, mas que apesar de seu olhar curioso e desafiador, jamais, jamais, jamais imaginaria que viver daria nisso tudo.

MARTHA MEDEIROS

13 DE JANEIRO DE 2018
PIANGERS

Que sejam felizes


"E o que você faria se seu filho fosse homossexual?", nos perguntam. "E o que você faria se descobrisse que ele está fumando?" Os mais machistas sempre perguntam "E quando aparecerem os primeiros namorados das suas filhas?". Os mais pragmáticos se preocupam com a carreira profissional: "E se decidirem fazer Filosofia? E se quiserem ser sociólogos?". Ao que os pais, os mais tranquilos e bem-resolvidos, para todas essas perguntas, costumam responder: "Quero apenas que sejam felizes".

Pensei muito a respeito do que quero para as minhas filhas e acredito que desejar apenas que sejam felizes não é satisfatório. Fico bem calmo com relação às escolhas que elas farão na vida. Faço o meu melhor em apontar os caminhos mais fáceis da vida, que estudem, escolham profissões promissoras, andem com pessoas que fazem o bem e não se deixem influenciar pela opinião dos outros. Sei que irão tomar algumas decisões ousadas, decisões que me deixarão inseguro. E, nesses momentos, repetirei o mantra: "Quero apenas que sejam felizes".

Mas, no fundo, quero mais do que isso. Me parece uma declaração egoísta. Me parece injusto que elas sejam felizes enquanto outras pessoas não forem, ao redor delas. "Quero apenas que meus filhos sejam felizes" me soa um pouco vil e autocentrado. Não quero que sejam apenas felizes, mas que tornem outras pessoas felizes. Quero que tenham forças para lutar pela sua própria felicidade mas, acima de tudo, pela felicidade de outras pessoas. Que pensem nos outros.

Ficarei realmente orgulhoso quando forem luz para os outros. Que sejam claridade altruísta, que possam curar com palavras, que seus atos sejam nobres. Me emociona imaginar como poderão ser bondosas. Que entendam que ser gentil é melhor do que estar certo. Que entendam que ser educado é melhor do que ser sincero. Que falar o que pensa muitas vezes é só agressividade. Que todo mundo está lutando suas próprias batalhas, e nossa única obrigação é ajudar os outros, sempre que possível. Que só existe uma regra: você tem que ser gentil.

E desejo que, fazendo isso, sejam felizes.

PIANGERS

terça-feira, 9 de janeiro de 2018


09 DE JANEIRO DE 2018
CARPINEJAR

Quando dei banho em minha mãe


Não subestime a criança. Não deixe de contar para ela o que está sentindo. Não espere que ela fique adulta para esclarecer as sombras do passado - pode ser tarde demais, pode custar terapias e confusões inacreditáveis. É preferível que a criança enfrente a verdade do que os monstros de sua imaginação. 

Se você está chorando e o filho pequeno se aproxima perguntando o que foi, não diga que não é nada, estabeleça claramente que não está num dia bom e narre as suas preocupações. Se fingir, a criança aprenderá a mentir e a esconder os próprios sentimentos vida afora. Demonstrará que não confia nela. E ela tampouco abrirá o seu coração quando precisar. Na adolescência, fechará a porta do quarto e de seus segredos afirmando também que não é nada.

Filho é filho, não importa a idade - terá condições de absorver do seu jeito. É um telepata das emoções. Uma esponja das crises. Criança entende mais rápido o que vem acontecendo do que você imagina - entende e resolve com um abraço, entende e resolve com um beijo, entende e resolve com um cartão, entende e resolve melhor que muito marmanjo, oferecendo ternura em vez de palavras ásperas de ordem, restrição e sermão.

Quando eu tinha sete anos, minha mãe não camuflou a sua dor. Desabou em lágrimas na minha frente expondo que o casamento com o meu pai havia terminado. Eu era um toco de gente e ela me pediu ajuda. Não me assustei. O desespero infantiliza o outro, e de repente a senhora dos meus cuidados tornou-se a minha primeira filha.

Eu peguei a minha mãe pela mão e falei:

- Vou lhe cuidar.

Acendi algumas velas e as depositei no canto da banheira, preparei um banho bem quente, despejei um pote de xampu na água, para criar espuma, e esfreguei as suas costas lentamente, enquanto ela expulsava os soluços. O escuro com as chamas tremeluzindo lhe deu alguma esperança de igreja e promessa. Escoltei a sua saída para pisar no tapete, entreguei uma toalha e ela dormiu mais cedo naquela noite. Vigiei o seu sono até que a respiração voltasse ao normal.

Nunca mais nos separamos por dentro, nunca mais nos omitimos descobertas e aflições.

O mundo continuou sendo o nosso ventre.

CARPINEJAR

09 DE JANEIRO DE 2018
ARTIGO

MAIS CIGARRA DO QUE FORMIGA

Aproposta do mercado é clara. Algumas escolas acreditam que o futuro começa no presente. O presente oferece do bom e do melhor em novas tecnologias, instalações de excelência com a promessa de colocação profissional do futuro adulto. Professores poliglotas. As mensalidades são salgadas, mas há um furo como em qualquer coisa viva, como previra o compositor Tom Jobim, que, provavelmente, não consta no currículo.

O furo é triste. Criança não precisa de novas tecnologias para se desenvolver, e sim do velho apego. Sem pressa, sem pressão nem exigências prévias, tão bem definidas pelo psicanalista Serge Lebovici como um mandato transgeracional ou a expectativa que não leva em consideração o que há de mais sagrado em qualquer ser vivo: relações interpessoais, autonomia.

A intenção é boa de ambas as partes. Os proponentes oferecem o melhor, investem materialmente, garantem o retorno. São empresários, querem lucrar, estão no seu direito. Os clientes, pais preocupados, pensam no futuro dos seus filhos, estão no seu dever. Mas tem o furo do Jobim. A base de uma educação não está na tecnologia, no investimento (material), no multilinguismo. 

Isto é consequên- cia e, entre as causas, candidatam-se a acolhida com olho no olho, o espaço para brincar sem segundas intenções. Resume-se em uma só palavra: vínculo. E, como não há resumos, logo precisa de outra palavra: empatia e, como se vê, já não se pode resumir na máxima de oferecer todas as condições para que o seu filho tenha um belo escore no Enem, entre na melhor universidade e seja um profissional bem-sucedido no Vale do Silício.

Não há resumo possível. Não há economia a ser feita no espaço lúdico que possa promover um encontro de "estar com" como disse outro psicanalista, o Daniel Stern. Estar com para olhar, tocar, brincar, acompanhar sem medo do futuro. Este virá para quem souber cantar no presente. É mais cigarra do que formiga. Com presença, com afeto, outras duas palavras que também se candidatam para um possível resumo.

Psicanalista e escritor celso.gut@terra.com.br - CELSO GUTFREIND

09 DE JANEIRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O Capitão Rodrigo das neves

Elá estava eu, um gaúcho em meio ao frio de 14 abaixo de zero, em busca do mate que, tragicamente, faltara em minha morada. Passara alguns minutos reconfortantes homiziado em um café, mas estava decidido a enfrentar a pé os 15 minutos que me separavam do mercadinho brasileiro que fica em Allston. Então, saí.

E me fui. E me fui e me fui e me fui. Por algum motivo, sentia mais frio agora, depois do aconchego do cappuccino com canela. Seria por ter visto no celular que a sensação térmica era de 25 negativos? Não pensaria nisso. "Sou gaúcho!", disse baixinho. E segui em frente.

Havia, no meio-fio, muretas de metro e pouco de neve. O leito da rua é limpo pela prefeitura, que usa caminhões equipados com pás de escavadeira para empurrar a neve para o lado e dispositivos que espalham sal pelo chão. As calçadas são de responsabilidade dos moradores. Você tem de limpar 60 centímetros a partir da sua porta. Se não fizer isso, leva multa. E, se alguém cair e se machucar, leva processo.

Quase escorreguei na entrada de Allston. Olhei para a loja que devia cuidar da calçada. Era um lugar que vendia bichos. Havia uma cobra na vitrine. Muitos americanos têm cobras como animais de estimação. Vá entender.

Continuei. Minhas mãos doíam de novo, e ainda havia mais 10 minutos de caminhada. Será que teria de entrar em outro café? Acho que é por isso que tem tanto café por aqui.

Não queria fazer mais uma parada. Seria desonroso. Tentei apressar o passo, mas era difícil, por causa do perigo de resvalar e da neve. A neve é igual à areia, só que gelada. Caminhar na areia é sempre difícil. Bem, pelo menos estava fortalecendo as pernas.

Minhas mãos latejavam e meus olhos lacrimejavam e meu nariz fungava. Respirar um ar gelado de 14 abaixo de zero não deve fazer bem a um homem.

Mas me fui. E me fui e me fui e me fui.

Ao chegar ao mercadinho brasileiro, congratulei-me. Encarar aquele frio era uma façanha de modelo a toda terra.

Estar entre todos aqueles produtos brasileiros fez com que me sentisse aquecido. Olhei para um pacote de bolachas Maria e me emocionei. "Isso é o Brasil", murmurei, e coloquei o pacote no cesto, planejando fazer como na infância: molhar a bolacha no café com leite durante o filme da Sessão da Tarde.

Depois, parei diante do aipim. Nem Pelé é mais brasileiro do que aipim. Lembrei da carne de panela com aipim que o Wianey Carlet fazia e coloquei um sacolão de dois quilos no cesto a fim de homenagear meu amigo. O Wianey usava costela minga, mas ali havia uma picanha da Austrália que podia preparar no forno, coberta com sal grosso. É estranho, mas fica muito bom. Então, acrescentei um quilo de picanha e mais dois sacos de sal.

E é claro que tinha de levar o café brasileiro, porque o americano é horrível. Peguei três pacotes de café tradicional. E sabe o que tinha ao lado do café? Cocada! Será que o Bernardo alguma vez comeu cocada na vida? Peguei meia dúzia. Ah, e não podia esquecer do Nescau. O Bernardo prefere Nescau a qualquer achocolatado americano. Nescau tem gosto de festa.

Outra coisa que só existe no Brasil e naquele mercadinho: requeijão. Nunca fui muito de requeijão, mas agora passei a gostar, devido à distância dos requeijões. Colhi dois vidros e botei na cesta. Estava ficando pesada. Para arrematar, apanhei dois litros de guaraná. Corri ao caixa, paguei, falei sobre o tempo com o dono do mercadinho e, então, confesso: chamei um Uber. 

O motorista era um russo que me disse que a temperatura por lá não é diferente da de Boston. Credo. Cheguei em casa e mostrei, vitorioso, as seis sacolas para a Marcinha e o Bernardo. Eles me aplaudiram. Senti-me um herói. O Capitão Rodrigo das neves. A Marcinha foi tirando os produtos da sacola, um a um, e, no fim, ergueu a cabeça, me olhou e, sorrindo, fez a pergunta terrível:

- Cadê o mate?

DAVID COIMBRA

sábado, 6 de janeiro de 2018


06 DE JANEIRO DE 2018
LYA LUFT

Dicionário para crianças


(Esta é mais uma homenagem ao meu amado filho André, menino desta história real, que, já homem de 51 anos, nos deixou há pouco mais de dois meses.)

O menino de uns oito anos chegou até o pai e pediu que explicasse uma palavra. O pai olhou, pensou e disse que agora ele já estava grandinho e podia procurar num dicionário. E deu-lhe um dicionário escolar, o chamado Luftinho, explicando como se fazia. A criança sentou na poltrona, olhou, folheou, leu, sacudiu a cabeça: "Tá difícil, pai, não tem dicionário pra criança?". Hoje deve ter, mas naquele tempo não tinha. Nem computador, nem Google, nada.

O menino então decidiu: "Eu vou escrever um, posso?". Claro que podia. Pegou um arquivo, daqueles bem antigos, pequeno, o alfabeto ele conhecia, escrevia direitinho. Depois de uma semana chuvosa de férias, quando os pais tinham esquecido o assunto, lá chegou ele com o arquivo na mão: "Olha aqui o meu dicionário. Este as crianças vão entender".

Afogado. Afogado é uma pessoa que se afoga. Na praia, eu vi pessoas afogadas e os salva-vidas iam lá e salvavam elas. Os salva-vidas são pessoas que salvam as pessoas. Um homem que se afoga mas fica vivo é porque não tinha se afogado muito. Eu nunca me afoguei.

Alface. Alface é uma verdura. A alface é de comer, mas eu não como alface. Ela é verde na folha e branca no cabo. Minha mãe diz que salada faz bem pra saúde, mas eu só gosto de salada de batata.

Amigo. Amigo é uma pessoa que gosta da outra. Daí é amigo. Eu sou amigo da minha família e da família da nossa empregada. A gente devia ser amigo de todo mundo. Mas às vezes não dá.

Seco. Seco é o contrário de molhado. Por exemplo: quando não chove, fica tudo seco. Quando o sol fica raiando muitos dias, tudo fica seco. Sem sol, nada fica seco. Aí a mãe reclama que está tudo úmido. Úmido é um tipo de molhado. Mas o sol não pode raiar o tempo todo. Porque daí todas as plantas se queimam e então também tem que existir a chuva. Que é molhada.

Xixi. Estou botando essa palavra porque só conheço essa com x. O xixi é um líquido que sai da barriga da gente. O xixi é amarelo. O xixi é importante, porque senão onde íamos botar toda a água que a gente toma?

Zebu. O zebu é um animal. É um tipo de boi com uma bola nas costas. Ele tem uma cabeça, um corpo, quatro pernas, um rabo, dois olhos, uma boca, um nariz, um pé, outro pé. E mais dois pés. Aí uns homens chegam lá e matam ele e tiram a carne dele e comem. Isso eu acho muito triste. Mas, se não fosse assim, como é que a gente ia comer carne?

(Deixei esta para o final, fora da ordem, porque mostra quem ele já era; o sublinhado é meu.)

Bonito. Bonito é uma coisa que se chama de bonito. Por exemplo: uma pessoa que seja o contrário de feia é bonita. Eu, minha mãe, meu pai e meus irmãos somos todos bonitos. Mas o mundo que Deus fez é o mais bonito de tudo.

LYA LUFT



06 DE JANEIRO DE 2018
PAULO GERMANO

O SEGREDO DE ROBERTO JEFFERSON

Roberto Jefferson é um homem gentil. Gentil é pouco, ele é afetivo mesmo, carinhoso, de uma amabilidade contagiante. Roberto Jefferson é um queridão, essa é que é a verdade.

Também é um corrupto confesso, claro, mas isso não me interessa agora. Você diz seu nome a Roberto Jefferson uma única vez, e nunca mais, nem daqui a 15 anos, ele chamará você de outra coisa que não seja seu nome.

Aliás, ele certamente não sabia o nome da repórter que perguntou, durante aquela entrevista a um grupo de jornalistas em frente ao Palácio do Jaburu, por que ele estava chorando. Pouco antes, Michel Temer havia confirmado a filha de Jefferson como a nova ministra do Trabalho.

- É um resgate, sabe, querida? - respondeu ele à repórter, a quem só chamou de querida porque não sabia seu nome, para depois repetir mirando o horizonte: - É um resgate...

Isso tudo com a voz trêmula e os olhos encharcados. Referia-se a um resgate da dignidade de sua família, que padeceu quando Jefferson foi cassado, condenado e preso por causa do mensalão. Hoje, depois desse fundo do poço, o ex-deputado figura de novo entre os homens mais influentes da República. Como ele conseguiu?

Porque é um psicopata? Um dissimulado? Porque tem dinheiro, e dinheiro compra tudo?

Peguemos outro exemplo.

Paulo Maluf, talvez o maior símbolo de corrupção da nossa história recente, dá presente aos funcionários no aniversário e abraça qualquer pessoa que o aborde na rua. Uma vez - eu não estava lá, mas um colega estava -, quando a Justiça aceitou mais uma denúncia contra ele, jornalistas de todos os veículos de São Paulo posicionaram-se em frente à sua cinematográfica mansão nos Jardins. O sol era forte e o pessoal já buscava uma sombra para entrevistar o homem por ali, até que a porta se abriu.

- Entrem, meus amigos, a casa é de vocês! - sorriu Maluf, estendendo a mão para cada um deles.

E, num canto da gigantesca sala de estar, havia uma mesa com biscoitos, sanduíches, refrigerante, café e suco de laranja. Boa parte dos repórteres se atracou na comilança e, na hora da entrevista, o anfitrião sorriu de novo:

- Não esqueçam que só o doutor Paulo (Maluf se refere assim a ele mesmo) é quem dá cafezinho! - e todos gargalharam, desarmados.

José Sarney, quando era presidente do Senado, conseguiu um emprego e liderou uma vaquinha para ajudar um pobre coitado que invadiu a Casa e, equilibrando-se sobre o parapeito da galeria mais alta do plenário, ameaçou se matar porque tinha fome. Minha amiga Kelly Matos, que durante anos cobriu o Congresso em Brasília, sempre se impressionou com a amabilidade de dois controversos senadores: Renan Calheiros e Romero Jucá.

Não é à toa que todos estão no poder há décadas. Talvez um que outro seja, de fato, psicopata, mas não são suas condições psíquicas que os levaram até onde estão. Tampouco foi o dinheiro. Porque o dinheiro pode comprar as pessoas por um curto período, mas o que faz delas aliadas durante uma vida inteira é isso aqui, ó: afeto.

Se você dá afeto, se presta atenção no outro, se sorri para as pessoas e consegue ajudá-las, aí a dívida de gratidão torna-se eterna. No ambiente profissional, isso é comum demais: conheço o chefe de uma faculdade que há anos prejudica o próprio trabalho por conta do alcoolismo, mas durante décadas ele foi tão generoso com os colegas, que ninguém tem coragem de demiti-lo.

As pessoas duram mais em seus cargos, têm mais tempo de sucesso quando são afetuosas. Se meter a mão no dinheiro público faz parte do cargo, dificilmente alguém vai delatar esse larápio - nosso consolo é que Maluf enfim foi preso. Só que aos 86 anos.

Eu aqui, sem refletir muito, consigo pensar em pelo menos 10 profissionais mais talentosos do que eu, mas que, por serem grosseiros, turrões ou geniosos demais, não conseguiram até hoje decolar na carreira. Gosto do capítulo 13 da carta aos coríntios, em que Paulo diz o seguinte: "E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria".

Ninguém chega a lugar algum sem amor. É ele que compra as pessoas. É o que fez Roberto Jefferson se reerguer, é o que leva as pessoas ao poder, é o que traz sucesso e felicidade. Mas a Justiça precisa estar acima de tudo - inclusive do amor.

PAULO GERMANO

06 DE JANEIRO DE 2018
CARPINEJAR

O homem conversa da mesma forma que dirige


O que mais incomoda as mulheres não é o que o homem fala, é o que ele não deixa ser dito.

Faltou na escola no dia em que a professora disse: um de cada vez.

Sempre interrompe, sempre se antecipa e se sobrepõe à mulher no momento em que ela está se explicando. Usa o tom grave de sua voz para abafar as delicadezas e refutar qualquer sinal de contrariedade. Não precisa nem gritar para bloquear o pensamento de sua namorada ou esposa: explora a violência do timbre para calar e intimidar. Ele não quer registrar nada que o ponha em dúvida - só que viver assim, na mais completa tirania, de apenas um lado ter razão, é impossível.

Pergunte a um gago como é irritante alguém completar as palavras por ele.

A maior parte das brigas não surge de uma desavença explícita, vem da injustiça da interrupção, do jeito falhado que se conversa.

É só ausência de educação mesmo, porque não custa esperar o outro finalizar as suas ideias para, então, expor os seus comentários.

Mas o homem conversa como ele dirige: cortando os carros, atropelando os sinais, não dando pisca-alerta para mudar de pista, buzinando, abrindo o vidro para xingar, aproveitando a inexistência de radar para aumentar a velocidade. Alimenta o mesmo padrão agressivo no trânsito do verbo.

Sua indisposição enerva o mais corriqueiro papo. Toda avaliação é vista como crítica, todo apontamento é acolhido como defeito, toda atenção é identificada como ameaça.

Como a mulher não consegue terminar o seu raciocínio, acredita que ele não escutou o que apresentou antes e busca repetir do início. A repetição demanda o dobro de tempo e paciência previstos na discussão de relacionamento. O que era para ser breve vira, forçosamente, uma maratona de soletração.

O machismo é que ele jura que sabe o que a mulher vai falar. Ele passará uma vida desconhecendo quem o acompanha, desperdiçando infinitas chances de aprender o que ela é e o que ela procura em sua vida pois nunca ouviu nenhum desabafo até o fim.

CARPINEJAR

06 DE JANEIRO DE 2018
CLAUDIA TAJES

NUVEM particular


Alguém me contou uma boa notícia relacionada a uma pessoa próxima, pessoa essa que vive sozinha e com muitas dificuldades, sempre às voltas com problemas de dinheiro, de saúde, de calotes, enfim, leva uma existência complicada, a tal pessoa. Falo bastante com ela, se não posso ajudar de perto, ao menos ouço e procuro sugerir algumas saídas. É o que dá para fazer. Fiquei feliz como se a boa nova tivesse a ver comigo. 

Nas horas seguintes, esperei por um telefonema da pessoa, que me liga várias vezes por semana para relatar de uma unha encravada a um pequeno furto, de uma gripe que não cura a um salário que não veio. O teor varia, mas é sempre péssimo. Até que não me aguentei. Achei que a pessoa contar uma vitória, para variar, faria bem a nós duas. Nada como começar o ano com a autoestima melhorzinha e poder dividir isso.

Depois de muitos minutos de conversa, e de um interminável desfile de perrengues, desliguei. A pessoa simplesmente não falou uma palavra sobre a boa nova. Passou batido por uma notícia que, a menos que eu muito me engane, vai fazer com que o 2018 dela seja bem melhor, já que envolve trabalho e remuneração. Ou seja, paz e tranquilidade, se a gente botar na ponta do lápis. Quem passou 2017 se equilibrando para pagar as contas entenderá.

Meus ouvidos passaram o dia inconformados. Então, o papel deles é o de lata de lixo e mais nada? Na hora em que poderiam se alegrar com uma novidade animadora, são esquecidos? Já era noite quando não me aguentei e mandei uma mensagem: mas vem cá, não aconteceu isso e isso para ti? A resposta chegou bem mais tarde, breve como um pesar jamais será: sim!

Sim, um ponto de exclamação e nem mais uma palavra. Nem sequer uma carinha sorrindo.

Fiquei pensando no meu histórico com ela. Quando as coisas estão mal, ou seja, sempre, a criatura narra tudo com riqueza de detalhes e conclui que não há o que fazer, que não há jeito a dar, que não há esperança à vista. 

Nem sempre estive sozinha nessa empreitada. Há dois anos, amigos que conheceram a tal pessoa em situação diferente conseguiram atendimento psicológico para ela. Aconteceu o mais ou menos esperado: ela não foi às consultas. No primeiro dia, o ônibus atrasou; no outro, não tinha guarda-chuva para enfrentar a tempestade, então errou o endereço etc, etc, etc. Muitos desistiram ali.

O pior é que também eu, ainda que em tom de queixa divertida, costumo enumerar infortúnios por aí. Depois desse episódio com a pessoa das minhas relações, essa que gasta o latim se lamentando, mas se economiza para dizer que há luz no fim do túnel, decidi mudar de atitude. Não me queixo mais de nada, juro. Nem para fazer piada. Ou talvez faça uma piadinha de vez em quando, mas sem estender demais. Ou talvez estenda um pouquinho, mas sem deixar a peteca cair. Ou talvez deixe a peteca cair, mas junte rapidinho. Prometo.

O ano já chegou chegando. Se a gente não tirar a nuvem particular de cima da cabeça, aí sim é que ele passa por cima mesmo. Força na peruca e vamos em frente.

Recebi um e-mail curioso na semana passada a respeito da coluna "Mais amor, menos Gilmar". Embora estivesse claro - claríssimo! - que o Gilmar em questão era o Mendes, um leitor, chamado Gilmar, ficou ofendido com o uso do nome. Publico aqui o e-mail dele. Acredito que outros cidadãos chamados Gilmar não ficaram brabos comigo. Mas se, por acaso, algum se sentiu atingido, já sabe: não tinha a ver com o nome, tinha a ver com o homem.

"Sou com muito orgulho Gilmar (meu pai, no ano de 1958, ano em que nasci, deu-me este nome em homenagem a um grande Gylmar). Detesto Gilmar Mendes talvez mais que você. Por mais que teu texto tenha endereço certo, generalizaste, mesmo que talvez não tenhas tido intenção. Mas ficou mal. Um pouquinho mais de sensibilidade ajuda a escrever um texto melhor."

CLAUDIA TAJES

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