quarta-feira, 16 de março de 2016



16 de março de 2016 | N° 18474 
MARTHA MEDEIROS

Mascando cana

Outro dia puxei um Trident da bolsa e ofereci para minha mãe: quer? Ela negou pela milionésima vez. Nunca vi minha mãe mascando chiclete. Jamais alguém viu. Simplesmente porque ela nunca, nunquinha na vida, mascou um chiclete.

Nunca, mãe? Não teve infância? Sempre achei meio nojento, é a resposta dela.

Eu adorava mascar chiclete quando pirralha – indolência sabor tutti frutti. Gostava muito de Ping Pong, de Ploc e um pouco menos daqueles que vinham em caixinhas. Mas curtia mesmo era os chicletes Mini, que se amontoavam dentro de uma embalagem plástica que simulava um sorriso vazado. Os chicletinhos minúsculos ficavam aparentes, feito dezenas de dentinhos estraçalhados. 

Ninguém achava que era antipropaganda, já houve uma época em que havia mais humor. Eu pegava um punhado na mão e mascava todos de uma vez só. Era uma falcatrua, porque o sabor durava um minuto e meio, nada além disso, e logo a gente tinha que se empanturrar com mais e mais para atiçar de novo o gosto. Ah, você certamente lembra, era um clássico e acho até que essa marca ainda existe.

Hoje eu só masco Trident, chiclete pra adultos que, por terem uma agenda cheia, ficam fora de casa por muitas horas e sentem falta de sua escova de dentes. A indolência ficou lá atrás, coisa de criança.

Mas não para Monica Moura, que foi presa ao lado do marido, o marqueteiro João Santana. A cena em que ela sai do camburão e entra na sede da Polícia Federal foi reprisada exaustivamente pelos telejornais. E, a cada reprise, eu não conseguia tirar os olhos do chiclete da mulher. Ela não estava no recreio do colégio. Tampouco parecia ser um caso de substituição da escova de dentes – não acredito que um hálito fresco ajudaria alguma coisa na hora de prestar depoimento. Aquilo era pura indolência juvenil. Sua descompostura mandava um recado: “Olhem como estou preocupada com este circo”.

Vi até um sorrisinho sarcástico no canto da boca. Conheço aquele sorriso. James Dean sorria do mesmo jeito a bordo de sua moto e de sua jaqueta de couro.

Pode ser que o casal seja inocente como uma criança no dia da primeira comunhão. O julgamento aqui não é político, mas social. Uma questão de etiqueta (na ausência da coluna da Celia Ribeiro, que provavelmente concordaria comigo). Não fica bem uma senhora ficar abrindo e fechando a boca com displicência enquanto joga um pedaço de goma para um lado e para o outro, como um ruminante qualquer. No mínimo, pode soar como arrogância. Como se quisesse demonstrar que o dinheiro fala mais alto do que a lei.

Minha mãe tem razão, é meio nojento. A gente deveria manter a elegância até mesmo quando está indo em cana.

sábado, 12 de março de 2016



12 de março de 2016 | N° 18471 
MARTHA MEDEIROS

Se você estivesse sozinho

Quem é você em meio a tantos? A camuflagem autoriza o despertar da besta-fera

Faz muito tempo. Um grupo de teatro local apresentava uma peça. Era um texto para paladares exigentes, só que a única coisa que a plateia queria era gargalhar e voltar cedo para casa, ou seja, não estava sendo atendida. A peça era dramática e com um texto infinito – e meio chato. Alguém na terceira fila tossiu porque precisou tossir. 

Alguém na quinta fila tossiu também, porque o primeiro tossiu: é contagioso. Alguém na última fila tossiu de sacanagem. E aconteceu. A plateia inteira começou a tossir. Era um novo tipo de vaia. Cerca de 40, 50, 60 pessoas tossindo de propósito e ao mesmo tempo. Ninguém mais conseguia escutar o que estava sendo dito no palco. Os atores foram linchados sem derramamento de sangue.

Estar em grupo é um conforto, mas também é um perigo. Podemos cantar juntos durante um show, rezar juntos durante uma missa, mas também podemos odiar juntos, ser vulgares juntos, fazer besteira juntos. Deixamos de ser um indivíduo responsável pelos próprios atos para nos transfigurar numa massa espessa sem identidade – “todos” e “nenhum” se confundem.

Quem é você em meio a tantos? A camuflagem autoriza o despertar da besta-fera.

Antes de se deixar levar pela horda, valeria a pena se perguntar: se eu estivesse sozinho, faria o mesmo?

Se você estivesse sozinho, teria praticado bullying contra a gordinha do colégio?

Se você estivesse sozinho, teria experimentado aquela droga pesada?

Se você estivesse sozinho, teria partido para cima do torcedor do time rival?

Se você estivesse sozinho, teria saqueado o caminhão tombado no meio da estrada?

Se você estivesse sozinho, teria tacado fogo no ônibus?

Se você estivesse sozinho, teria humilhado o calouro da universidade com aquele trote?

Se você estivesse sozinho, teria amarrado aquele cachorro no cano de descarga de um carro?

Diversão é um conceito muito elástico. Para arrancar algumas risadas, nos tornamos idiotas. Para ser aceito no grupo, somos capazes de infringir leis. Para demonstrar que não temos medo, desafiamos perigos e corremos riscos tolamente, misturando-se a ogros sem consciência. Corajoso é quem interrompe a onda destrutiva, não faz quórum para as estupidezes alheias e continua agindo como agiria se estivesse sozinho, sem o respaldo da massa.

Ninguém é mais criança. Um adulto que se mete em encrenca para depois poder alegar “foi ele que começou” está apenas se escondendo atrás do slogan dos covardes.



12 de março de 2016 | N° 18471 
CARPINEJAR

Bodas de prata


Fazer de conta que nada aconteceu é o melhor jeito de não se separar. E o mais irritante. Não ceder aos encantos da fúria vigora como a estratégia perfeita para a imortalidade dos laços.

Não revidar a briga com ofensas nem devolver as cobranças com atitudes passionais costuma neutralizar o ódio. A separação é uma urgência momentânea, uma raiva da hora. Alterando o estado de espírito, perde a validade. Longe do consenso, é apenas uma crise. O amor perdura pelas sobrevidas da tolerância.

Meu amigo já foi despejado pela mulher dezenas de vezes, já foi convidado a ir embora semestralmente. Ela discute a relação sozinha, diz que não aguenta mais, manda o sujeito aprontar as malas, alegando que ele jamais escuta as suas reclamações, o que é uma verdade.

O marido concorda com a cabeça e se tranca na cozinha. Em 20 minutos, chama a mulher:

– O jantar está pronto, arruma a mesa?

– Mas eu lhe mandei embora!

– Vamos comer primeiro, depois pensamos nisso. Fiz a massa pesto que adora.

No dia seguinte, ainda estão juntos e ela se envergonha de insistir com o fim da relação, já que ele foi imensamente carinhoso e impregnado de gentilezas.

Transcorridos alguns meses, ela volta a explodir pela falta de empatia e cumplicidade, pois não aceita a mornidão e o tédio da rotina. Os ressentimentos retornam à superfície. Então, xinga e amaldiçoa a falta de iniciativa do seu par, assinala o término, esbraveja que não dá mais e ordena que arrume as suas coisas.

Alheio ao apocalipse, ele senta na frente da televisão com os pés estirados no sofá. Não parece preocupado. Não parece abalado. – O que pensa que está fazendo? Acabou tudo! Não vai se mexer?

– A dor não tem pressa, amor. Estou assistindo o último capítulo da novela, deita aqui comigo, é imperdível – explica, doce, com voz mansa de quem saiu do banho.

Ela aceita a trégua, engole a insatisfação, deita um pouquinho em seu colo e cochila sem querer. Logo ao amanhecer, ele prepara o café, traz uma bandeja de suco e croissant na cama, e ela novamente não tem forças para insistir com a ruptura. Brigar é excessivamente cansativo, exige mais do que se manter casado.

Assim, com a surdez de um e a compaixão do outro, o casal completa bodas de prata neste domingo.



12 de março de 2016 | N° 18471 
DAVID COIMBRA

AS DUAS JUSTIÇAS DO BRASIL

Nós jornalistas adoramos entrevistar cientista político. Faz parte da nossa ânsia de encontrar objetividade no que é essencialmente subjetivo.

Vã ilusão. Um cientista político é uma contradição em si mesmo, porque política não é ciência.

Não existe nenhum cálculo ou experimento capaz de comprovar uma teoria política de forma irrefutável. A política é uma atividade puramente humana. Depende de humores, coincidências, vontades e desejos vis.

Pascal dizia que a História do mundo seria outra se o nariz de Cleópatra fosse maior.

Marx dizia que a História se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Boa frase. Mas nem sempre verdadeira. No caso do Brasil, por exemplo, a História não cessa de se repetir como farsa.

Não é por acaso que cientistas e filósofos tentam explicar o mundo a partir da matemática. Porque a matemática é exata e demonstrável. Seria um alívio se conseguíssemos transformar cada fato da vida em uma fórmula matemática. Estaríamos salvos. Nossos problemas teriam solução lógica, e os psicanalistas iriam à falência.

Só que não é assim que funciona.

A mais científica das áreas humanas, a medicina, é inquietantemente inexata, porque lida com organismos vivos, que volta e meia se tornam imprevisíveis.

O jornalismo, a sociologia, a política, a filosofia, há muito que estudar nessas áreas, mas elas não são científicas.

O Direito também não é.

O ideal seria um Direito técnico e impessoal. Tudo teria de funcionar com precisão de máquina:

1. O povo elege seus representantes.

2. Os representantes fazem as leis de acordo com a vontade de seus eleitores.

3. O governo cumpre a lei feita pelo Legislativo.

4. O Judiciário, uma vez solicitado, dirime pendências e pune, ou não, de acordo com a lei.

E essa lei, centro de toda a democracia, baliza para todas as ações, reguladora de todas as relações, essa lei seria de tal forma clara e criteriosa, que o juiz seria apenas um conhecedor da letra fria, quase que um técnico do Direito.

Mas a realidade estraga miseravelmente esse plano tão bom.

A prova é o Brasil de hoje, onde, mais do que febris paixões políticas, discute-se, quase que de forma clandestina, um tema mais importante: a Nova Justiça.

Existem duas Justiças, no Brasil do século 21. Vou defini-las, grosseiramente, como a Justiça de Marco Aurélio Mello e a Justiça de Sergio Moro.

A Justiça de Sergio Moro, a Nova Justiça a que me referi, é uma Justiça de estilo norte-americano: ágil, rápida, punitiva, focada na defesa da sociedade.

A Justiça de Marco Aurélio Mello, a Velha Justiça, é vagarosa, ponderada, tolerante e focada nos direitos do indivíduo.

O que torna Sergio Moro diferente de Marco Aurélio não é o conhecimento: é a idade. Sergio Moro não foi traumatizado pelo regime militar. Sergio Moro não se sente um repressor quando se guia friamente pela letra da lei e impõe uma condenação grave a quem cometeu grave crime.

Sergio Moro é o que há de mais próximo da tecnicidade da Justiça. Marco Aurélio, ao contrário, é um juiz político.

Isso não significa que Marco Aurélio seja um juiz partidário. Ele é político porque interpreta a lei de acordo com a circunstância e os protagonistas envolvidos.

No caso Lula, Moro foi quase impessoal. Deu algumas prerrogativas ao ex-presidente, como a proibição de filmá-lo. Mas, no geral, considerou-o um brasileiro como qualquer outro.

Marco Aurélio criticou. Fez considerações. Chegou a se espantar:

– Então, eu seria levado sob vara? 

Um juiz americano responderia: – Por que não?

Alguns intelectuais brasileiros argumentaram que Lula não poderia ser conduzido a depor por sua “biografia”? Biografia? Estou vendo Sergio Moro se questionar:

– Onde está escrito isso de biografia na lei? Qual biografia pode? Qual não pode? Só vale biografia de político? Empresário vale também? Então é só o trabalhador, sem “biografia”, que pode ser alcançado pela lei?

Desse caldo efervescente do Brasil de hoje, o que menos me preocupa é o destino do governo. Preocupa-me mais o destino da Justiça.

Que Justiça quer o Brasil? A Justiça de Mello ou a Justiça de Moro? A Justiça que teme reprimir o indivíduo ou a Justiça que não teme proteger a sociedade? As respostas a essas perguntas dirão como será o novo Brasil.


12 de março de 2016 | N° 18471 
PAULO GERMANO

A rua da amargura


Tem gente que debocha do vereador João Carlos Nedel (PP), conhecido por batizar ruas, avenidas, praças, travessas, becos, acessos, alamedas, passagens, viadutos e qualquer coisa por onde circule gente em Porto Alegre. Uma ruela sem nome? Nedel fica louco, dizem que sente até comichão. Em cinco mandatos na Câmara, já apresentou mais de 400 projetos nomeando logradouros do Sarandi ao Lami.

Tem uma vila na Zona Leste onde as ruas se chamam Pintassilgo, Siriema, Andorinha, Gaivota, Bem Te Vi, João de Barro, Beija-Flor, Albatroz e Gralha Azul. Tudo coisa do Nedel. Uma vez, ele conversava com a comunidade sobre qual seria o nome ideal para uma viela, aí o traficante do morro soube da visita e enxotou o vereador aos berros, porque, se a rua tivesse nome, seria mais fácil descobri-lo. Deve ter sido chato.

Confesso que sempre achei uma tolice essa fixação do vereador. Até que um dia, ao encontrá-lo na porta do plenário, questionei-o duramente: que orgulho ele poderia sentir, após quase 20 anos de Câmara, ao ostentar como marca de sua trajetória um amontoado de alcunhas viárias?

– Muito orgulho, sim! – endureceu ele, e eu ergui a sobrancelha. – Você não sabe o que é viver sem um endereço. As pessoas sofrem para pagar suas contas, porque a correspondência nunca chega. O Samu não consegue encontrá-las. Parentes que vêm de fora não conseguem achá-las. Se precisam da CEEE, ninguém aparece. Se precisam do Dmae, é a mesma coisa. Nem uma pizza podem pedir, meu amigo! O cara diz que mora na Rua 2, por exemplo, mas só na Restinga tem 40 ruas 2. Uma pessoa sem endereço, acredite, é uma pessoa sem dignidade.

E eu calei a minha boca. O vereador tinha toda a razão: uma rua batizada é mais do que importante, é uma prerrogativa para exercer direitos.

Lembrei do Nedel nas últimas semanas, quando sua colega Mônica Leal, também do PP, apresentou um projeto para a Avenida da Legalidade voltar a se chamar Castelo Branco. Tenho me perguntado que interesse público pode haver nisso. A controvérsia começou há dois anos, quando os vereadores Pedro Ruas (hoje deputado estadual) e Fernanda Melchionna, ambos do PSOL, propuseram que a avenida trocasse de nome porque homenageava um ditador.

Não sou contrário às revisões históricas, desde que cumpram critérios claros. Se o critério é erradicar menções a ditadores em equipamentos públicos da cidade, tudo bem, Castelo Branco foi mesmo um déspota, mas o governo de Getúlio Vargas, por exemplo, matou, perseguiu, torturou e censurou muito mais do que nos três anos de Castelo como presidente. E a Avenida Getúlio Vargas segue lá, tranquilona.

Deus me livre defender os anos de chumbo. O que quero dizer é que, quando não há critérios claros guiando discussões candentes, abre-se espaço para uma picuinha ideológica que pouco importa à população. E a perda de tempo ganha tal proporção que, veja só, Mônica Leal continua, dois anos depois, gastando energia nessa bobagem.

Trocar o nome da Avenida Castelo Branco nunca foi uma bandeira que o povo ergueu – era uma bandeira de Pedro Ruas e Melchionna. E derrubar o novo nome, Avenida da Legalidade, tampouco interessa ao grande público: interessa a Mônica Leal.

De todas as funções de um vereador, nenhuma é mais nobre do que se imiscuir entre as pessoas, recolher suas queixas e lutar para resolvê-las. Nesse sentido, as recônditas ruas Pintassilgo e Gralha Azul – nomes que os próprios moradores sugeriram, eis o critério – representam muito mais do que a ilustre avenida cujo nome nenhum de nós escolherá.


Como assim, Paulo Pimenta?
Deputado federal do PT e amigo de Lula

A Lava-Jato já teve 117 conduções coercitivas. Por que só agora, quando Lula foi atingido, o PT se revoltou contra esse instrumento? Lula merecia tratamento diferente dos outros 116?

Estamos há muito tempo denunciando o caráter autoritário das conduções, das delações premiadas e das prisões sem julgamento. Do ponto de vista de direitos, não acho que Lula merecia um tratamento diferente, mas em qualquer lugar do mundo, quando a Justiça ouve alguém com certo nível de projeção, percebe-se um respeito. E o que fizeram foi para humilhar o ex-presidente. Está muito claro que uma parcela do MP, da PF e do Judiciário atua em um projeto político-partidário com o objetivo de atingir o governo Dilma e impedir que Lula seja um candidato competitivo em 2018.

12 de março de 2016 | N° 18471
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

JUÍZO E PERDÃO


A intransigência, que se tornou a marca registrada da civilização contemporânea, talvez tenha existido sempre, apenas não nos dávamos conta porque era muito difícil saber a opinião dos que não faziam parte do nosso restrito círculo de convivência.

Com as redes sociais, tudo o que acontece é jogado no mundo dos abutres da razão desnaturada que têm uma necessidade visceral de opinar, sem nenhum pudor, mesmo que o assunto não lhes diga respeito. Como calar a boca passou a ser interpretado não como um sinal de prudência e recato, mas, sim, de alienação, as pessoas se manifestam. E ainda mais esbravejantes se o tema tem alguma remota relação com uma opinião pré-formada ou no mínimo com a timidez assumida de um “ouvi dizer”. Isso lhe garantirá pelo menos um “curtir”.

Se o tema for técnico, era de se esperar que os acreditados no assunto se manifestassem primeiro, para depois, examinando prós e contras da argumentação, dar o seu pitaco em cima do exposto. Mas não, a premência de se fazer presente naquele fórum improvisado impõe que se exteriorize o que pensam sobre um assunto no qual nunca pensaram.

Como toda a bobagem pode ser sofisticada, o requinte fica por conta duma tendência moderna de se expressar por analogias, e então se chega à consagração da estultice quando o que foi usado como comparação não passa nem perto do comparado.

Mas o que mais impressiona não é apenas a necessidade de opinar, mas a compulsão e urgência por julgar. Ninguém se conforma com a função de promotor e se arvora logo à condição de juiz, e com uma intolerância implacável, característica de espíritos humilhados ou reprimidos. Uma sociedade constantemente fraudada e desprotegida explica, por exemplo, o sucesso de histórias que tratem de vingança, atribuível à nossa necessidade de retaliação, mesmo que nunca tenhamos sido agredidos. Uma espécie de vingança preventiva.

Por trás desse comportamento intransigente, está a nossa ausência completa de senso crítico que outorga-nos o direito de julgar os outros com modelos de perfeição que nos condenariam se tivéssemos a isenção de aplicá-los às nossas vidas.

Albert Schweitzer, o grande médico, filósofo e pensador, uma das maiores autoridades mundiais no estudo da ética, Prêmio Nobel da Paz, confessou que só se sentiu em condições de emitir julgamento sobre condutas quando assumiu seus próprios pecados e passou a ensinar que a condição mínima de um juiz é que ele seja capaz de condenar a si mesmo.

Aos 70 anos, mantinha viva a recordação de que, aos três ou quatro anos de idade, depois de sofrer uma picada de abelha numa das mãos, desabara num choro convulsivo que atraiu toda a família para consolá-lo, o que fez com que ele, encantado com o poder que esta cena lhe proporcionara, seguisse chorando por um longo tempo, depois que a dor há muito já passara. Na sua opinião, a consciência assumida dessa atitude como a sua primeira fraude, contribuiu para o aperfeiçoamento de sua capacidade crítica de julgamento, que deve caracterizar as pessoas equilibradas, generosas e puras. Essas criaturas imperfeitas que, por se reconhecerem assim, têm dificuldade de julgar seus semelhantes.

quarta-feira, 9 de março de 2016



09 de março de 2016 | N° 18468 
MARTHA MEDEIROS

Antes do caldo entornar


Violência doméstica é assunto sério. Muitas mulheres são reprimidas, ameaçadas, até estupradas pelos próprios companheiros, e ainda se sentem inibidas de ir a uma delegacia para denunciá-los. É provável que a vítima pense que, se o homem é um troglodita, mais irado ficará quando souber que a polícia está em seu calcanhar. Irá descontar em quem? Nela, evidente. Pois é, só que se ela não denunciar, a agressão poderá chegar a um nível perigosamente letal.

Tudo por causa de um troço chamado amor. Mulheres amam advogados, traficantes, motoristas, estelionatários, empresários, bandidos, arquitetos, sequestradores. O amor não pede comprovante de bons antecedentes, é puro instinto e desejo. Casais se unem por motivos nobres e por motivos absurdos. Pouco se dá ouvido à sensatez.

Então lá está dona Maria sofrendo as mais diversas formas de abuso em seus tantos anos de convívio com um homem estúpido que a maltrata, dá uns sopapos e avisa que, se ela chiar, aí é que o pau vai comer – e não há nada de erótico nessa ameaça. Dona Maria, então, assiste a programas de TV que debatem o assunto, lê matérias em revistas femininas, entra nas redes sociais, conversa com as amigas e cria coragem para dar um basta na situação. Bravo, dona Maria. Meu total apoio. Só há um culpado na história, e é ele. Mas essa trabalheira poderia ter sido evitada.

Dona Maria geralmente tem 30 anos. 40 anos. 50 anos.

Mas você, Maria de 17, não precisa passar por essa via-crúcis. Na maioria das vezes, o homem violento não espera muito tempo para deixar cair a máscara. Ele tirou você para dançar, beijou você, cumpriu todo o ritual do príncipe encantado, mas quanto tempo levou para apertar seu braço com força, para puxar seu cabelo de um jeito brusco ou agarrá-la pela mandíbula para forçar você a olhar para ele? No primeiro mês de namoro, aposto. São os sinais inequívocos de que o príncipe vai perder a majestade logo ali na frente.

Se você considera o ciúme dele romântico, aguarde o primeiro tapa para breve. Você aguardará o segundo e o terceiro para ter certeza?

Você pode resolver a questão mais cedo e sem tanto desgaste. Simplesmente pegue sua bolsa e dê as costas assim que o príncipe levantar a mão. Assim quê. Antes de morar junto, antes de ter filhos, antes de depender dele financeira ou emocionalmente. O agressivo costuma mostrar que é agressivo em poucas semanas. Em poucas semanas você não está tão inexoravelmente envolvida.

Eu sei, não anda fácil arranjar um amor. Às vezes, fazemos vista grossa, achamos que o cara está num momento ruim, que tudo vai passar. Não vai. É um ogro. Você, sendo pobre, rica, negra, branca, menor de idade, maior de idade, caia fora já. Empoderamento também é isso: perceber a encrenca a tempo.

terça-feira, 8 de março de 2016



08 de março de 2016 | N° 18467 
CARPINEJAR

Caixinha de música


Nunca invejei as bonecas das meninas e o mundo em miniatura feito de casinha cor-de-rosa e armarinho com roupas esportivas, sociais e de gala.

Fui menino de futebol, de aventura, de molecagens, de fazer incursões no porão com lanterna, de desbravar terrenos baldios, de subir telhados e esfolar os joelhos, de chegar suado à sala de aula.

Mas morria de ciúme da caixinha da bailarina de minha irmã. Era um teatro de graça: levantava-se a tampa, girava a corda e a bailarina dançava Debussy em cima de um espelho. Não sei o que acontecia direito, eu me maravilhava, o cenário mudava a sequência das batidas do coração. O coração de pé no meu peito se ajoelhava de repente diante dos deslizamentos de cá para lá da coreografia.

Brinquedo lindo que repousava ao lado da cama e sempre me despertava uma vontade imensa de roubá-lo. Eu queria para mim. Tentei as vias legais, pedir no aniversário e no Natal, trocar pela minha coleção de playmobil, só que o pai ria do pedido extravagante:

– Não é coisa de guri. É um porta-joias, Fabrício! Não tem sentido. Você não usa bijuteria.

O pai preocupava-se com uma possível afeminação de minha parte, não compreendia que foi o meu primeiro impulso claramente masculino e heterossexual: eu me apaixonei pela bailarina. Perdidamente. Lembro de seu pequeno rosto de avelã, o nariz arrebitado, os olhinhos brilhantes e o coque perfeito pronto para se desmanchar em nossa noite de núpcias. 

Eu desejava fugir de casa com a bailarina, casar e ter filhos. Estava imerso numa paixão pura, extrema, com a vontade de passar o resto da vida com alguém. Não importava que ela fosse pequena, do tamanho de minha mão, daria um jeito. A gente se apaixona primeiro, depois é que pensa se é possível ou não. O desejo cria realidades paralelas.

Sem a compreensão da família, eu precisava contar com a generosidade da irmã em me ceder apresentações. Antes de dormir, ia nas pontas dos pés ao seu quarto e implorava para que me mostrasse a música. Aquelas sessões de rodopios e voltas da bailarina provocavam suspiros. Não permitia acabar, como um livro que não se aceita o final.

– Mais uma vez, mais uma vez – gritava para a irmã, desesperado, após a décima repetição, procurando manter a chama rosa bailando o máximo possível na concha dos meus olhos.

Eu ainda hoje caminho pelas ruas de Porto Alegre com a esperança de ouvir Clair de Lune e ser reconhecido pela bailarina que tanto amei na infância. Juro que abandono tudo por ela.

sábado, 5 de março de 2016



06 de março de 2016 | N° 18465 
CARPINEJAR

Não é simples se apaixonar


Paixão não é banal. Paixão não acontece com frequência. Tenho um amigo que se apaixona semanalmente. Ele está se enganando. Não é paixão, mas flerte, interesse, atração, carência, desespero para se casar.

Paixão acontece poucas vezes na vida. Devo ter me apaixonado somente seis vezes em quarenta anos.

A paixão é a nossa chance de chegar ao amor, jamais uma certeza. Pois a paixão é conquista, já o amor depende da convivência. A paixão é sempre à primeira vista, o amor vem em parcelas.

Se me apaixonei meia dúzia de vezes, amei apenas duas vezes ao longo de meus romances. De amar mesmo, a ponto de desistir de meus preconceitos e de minhas exigências e doar espaço para o tempo de alguém. A paixão é rara. De sua raridade, surgirá o amor, mais único ainda.

O que posso garantir é que a paixão é uma devastação. Não tem como não notar. Você esquece quem você era e aonde ia. Você esquece o que fazia e o que queria.

Seus contatos do celular e das redes sociais desaparecem. Nada mais interessa. É um apagão, a sua memória morre – persistem a imaginação e a fantasia.

A paixão é um blecaute da personalidade. Um redemoinho passa pela cidade de seus olhos, levando a civilização de pretendentes. Um furacão destrói a importância de seus pertences e a sua forma de se relacionar com o mundo.

Você que é cético passa a ter fé, confiar em magia, adotar hábitos de supersticioso. Você que é avarento estará disposto a filantropias improváveis. Você que é tímido é capaz de cantar num microfone em praça pública.

Você que é cafajeste torna-se fiel como uma rolha de vinho. As defesas e restrições estão postas abaixo. É um dia perfeito que interrompe o calendário, o envelhecimento, as mágoas, as cismas.

É um beijo melhor que todas as palavras que procurava antes. Não há como confundir o diagnóstico. Não existem dúvidas do encanto que se abateu.

A paixão traz uma força inacreditável. O sangue bebe energético do ar. As pernas levitam. Experimenta um superpoder: enxerga as auras além dos rostos, adivinha os pensamentos além do som, entende as piadas além do gesto.

Não precisa comer, não precisa dormir, não precisa trabalhar, não precisa arrumar a casa, não precisa atender telefone, não precisa responder mensagens.

Desfruta da imunidade do otimismo. Aguenta emendar noites e permanece disposto. Não consegue parar de transar e não reclama do cansaço. Vira um bicho do instinto. O olfato é a sua realeza.

Emagrece, mas não perde o brilho.

Adoece, mas não perde a saúde.

Com a falta de alimentação e de cuidados, qualquer pessoa ficaria desidratada e baixaria o hospital, menos o apaixonado. O apaixonado encontra a inexistência perfeita, ser cada vez menos para ser o outro.



06 de março de 2016 | N° 18465 
MARTHA MEDEIROS

Amy


Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar

Em 2013, visitei a exposição que o irmão de Amy Winehouse organizou no Museu Judaico de Londres. Ele queria revelar quem era Amy antes de estourar como uma das vozes mais prestigiadas da soul music e de virar figurinha fácil dos tabloides por sua performance nada sublime com álcool e drogas. 

Lembro de ter saído de lá comovida com a normalidade daquela menina britânica que escutava Carole King e Dinah Washington, que curtia Snoopy, que tirava fotos com as amigas, que tinha uma caligrafia infantil. Era este o acervo da mostra: seus livros, discos, fotos, bilhetes, vídeos do colégio. Uma exposição para homenagear a primeira parte de uma vida muito parecida com a minha e a sua, mas que, apesar de ter durado tão pouco (27 anos), foi subitamente repartida em duas.

O mundo só conhece a segunda parte, a recheada de prêmios e vexames. O documentário Amy, que ganhou o Oscar no último domingo (disponível no Net Now e na Netflix), interliga ambas as fases e deixa claro que o turning point se deu com a entrada em cena de um sujeito chamado Blake.

Dizer que a paixão pode destruir uma pessoa é um clichê, mas parece que foi mesmo o caso de Amy. Ela não apenas amava o namorado: queria fundir sua vida na dele, desejava que fossem um só – e levou esse romantismo ao extremo. Repetia tudo o que ele fazia, consumia tudo o que ele consumia, chegando ao absurdo de se machucar de propósito quando ele se machucava. 

Ela queria sentir a dor dele na carne dela, uma imolação que foi um filé mignon para a imprensa. Até que ele foi preso e ela se tornou uma compositora e intérprete ainda mais fenomenal, cantando com o nervo exposto. Porém, quando Blake foi libertado, ele a esnobou, ela entrou em parafuso, e dali por diante não surtiram efeito suas várias tentativas de rehab.

É a história de uma mocinha e de um vilão? Não é tão simples. É a história de uma mocinha, do divórcio de seus pais, de uma bulimia, de um talento sem medida, de um sucesso para o qual não estava preparada e de um cara que pareceu ser uma rota de fuga para tudo isto, mas que ajudou a cavar o buraco e empurrá-la para dentro.

Nunca se sabe o que é deixado de fora na hora de se editar um documentário, mas acredito na boa intenção do diretor Asif Kapadia, que fez a artista falar por si mesma: não há depoimentos de amigos, apenas. A grande depoente é a própria Amy, que se estrutura e se desestrutura diante de nossos olhos, fazendo com que a gente desça com ela até o subsolo da sua vulnerabilidade. Difícil evitar o nó na garganta e a profunda sensação de desperdício. 

Sabemos que basta dobrar uma esquina errada para que a pessoa se desoriente e vá parar no lado oposto da história que tinha para viver. Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar. O documentário ajuda a entender como ela se perdeu – e o que nós perdemos também.

quarta-feira, 2 de março de 2016



02 de março de 2016 | N° 18462 
MARTHA MEDEIROS

Joviais para sempre

Alguns homens têm mentido a idade, têm aplicado botox e têm sonhado em encontrar a alma gêmea. Nunca pensei que a igualdade entre os gêneros chegasse a esse ponto. Pelo visto, eles também andam procurando rejuvenescer através da aparência e da paixão.

A juventude anda cada vez mais cobiçada, inclusive por quem ainda é jovem. Garotas de 20 anos fazem plásticas e já estão injetando silicone onde podem: até parece que nascemos todos decrépitos.

É bem verdade que começamos a envelhecer no minuto após o parto, mas alto lá com a pressa. Vamos deixar para nos preocupar com isso quando tivermos, sei lá, 60, 70. Mais?

Melhor nunca. Preocupação enruga.

Mais vale aceitar que é impossível retardar o envelhecimento. Não há quem tenha permanecido jovem, nem mesmo Keith Richards. No entanto, ele se mantém vigoroso, contrariando todas as apostas. Diz ele: “Não estou envelhecendo, e sim evoluindo”. Eis um sujeito com foco. O guitarrista dos Rolling Stones diz também (no ótimo documentário Under the Influence, disponível no Netflix) que só se fica maduro ao ser enterrado. Do lado de fora, ninguém amadurece. 

A mim não pareceu um elogio à infantilização, e sim um elogio ao movimento. Enquanto respirarmos, seguiremos atentos e vorazes. Vividos, sim, mas no ponto para a colheita, jamais. A morte sempre nos pegará em processo.

Não podemos ser jovens para sempre, mas podemos ser joviais para sempre, e me parece suficiente, o resto é tentativa alucinada de parar o tempo na marra. Nossa pele ficará mais flácida, nossos joelhos irão ranger e nossos olhos serão trocados por lentes bifocais, mas nem por isso precisamos vestir e pensar como matusaléns, nem faremos papel ridículo se nos mantivermos esportivos em vez de clássicos.

Podemos escutar música vibrante em vez de som ambiente, podemos atualizar nosso vocabulário e nossas ideias, podemos usar a camisa para fora das calças em vez de blazer com três botões e optar por botinas em vez de sapato com cadarço. Podemos tomar longos banhos de sol (de biquíni!), praticar um esporte que não arrebente nossas articulações e afinar o humor, já que sem humor não existe juventude nem que se tenha nascido depois do ano 2000.

Podemos parar de criticar quem é diferente de nós, podemos ser menos reacionários, podemos nos manter bem informados sobre o que acontece no mundo e podemos continuar andando de bicicleta, que é uma coisa que, dizem, ninguém esquece como se faz. Podemos inclusive continuar praticando aquela outra coisa que também ninguém esquece como se faz.

Quem for ao show dos Stones hoje à noite receberá uma injeção muito mais eficiente do que botox e sairá de lá convencido de que ser jovial é o único procedimento anti-idade com chance de sucesso.

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