sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513 
CARPINEJAR

Trabalhos de Hércules


Sua aprovação pela família da namorada depende de um demorado estudo de caso. Você pode ser tolerado, mas contar com o apoio é negócio sério. Não é porque troca sorrisos, é chamado para o churrasco de domingo e recebe lembrança nas datas comemorativas que foi aceito. Não cante vitória antes do apito final. Os sogros são craques na arte de misturar cordialidade e fingimento.

O estágio probatório não decorre da quantidade de meses da convivência, é resultado de três experiências cruciais: aniversário, casamento de parente e velório de alguém próximo. Com exceção do primeiro, o mais fácil de se prever, o segundo e o terceiro virão de sortilégios e fatalidades do reduto familiar. É comum não atravessar a trilogia da aceitação, e assim namorados permanecem no limbo do estado civil e jamais são definitivamente aprovados ou negados.

Para ser levado a sério, necessita atravessar os rituais fundamentais da maturidade, caracterizados pela passagem do tempo, pela celebração do amor e pelo respeito ao fim e à morte. Só assim entenderá a gravidade de um compromisso. Reagirá aos extremos dos encontros e das pessoas, onde tudo pode acontecer – tudo mesmo!, desde piadas de mau gosto, passando por provocações carentes, desembocando em escândalos inesquecíveis. A chance de escapar de um constrangimento é mínima. Descerá ao último círculo infernal do contato humano. Prepare-se para a chacota de primos, para indiscrições das tias, para a troca consecutiva de seu nome.

Não haverá melhor curso de noivo do que enfrentar a parentada alheia na alegria e na tristeza.

No aniversário de sua namorada, demonstrará a avareza ou a generosidade, se é capaz de fazer uma festa-surpresa, chamar os amigos e escolher um presente que simbolize que a conhece bem. Representa um momento único de discrição, em que descobrirá se está preparado para desaparecer em nome da visibilidade completa da aniversariante.

No casamento, serão testadas a sua educação e autocontrole. Não deve beber demais ou comer excessivamente, muito menos estragar a reputação na pista de dança descendo até o chão. Evite puxar estranhas para coreografias e convidar vovós a números sensuais. Trata-se da prévia do seu futuro casamento, se é habilitado a suportar o calvário das declarações românticas sem recorrer ao cinismo e ao sarcasmo.

No enterro de um ente querido daquela que ama, terá que encontrar a elegância do terno e da alma escura. Provará o gosto amargo da saudade e das cenas engasgadas da despedida. Conhecerá também a insuficiência das palavras de apoio. Por mais que ofereça colo e conforto, jamais aplacará o sofrimento de sua companhia. Secará as lágrimas do rosto dela com a ponta dos dedos, cuidando para não borrar ainda mais a sua maquiagem, consolará quem você nunca viu na vida, manterá a cabeça erguida e atenta aos gritos e uivos ao redor do caixão.

Se você sair ileso da tríade de situações-limite pode retirar a certidão de nascimento na família da sua namorada.



30 de abril de 2016 | N° 18513 
MARTHA MEDEIROS

Adúlteros

Um adulto de verdade trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus

Todo adulto é um adúltero. Não precisa ser fiel a mais nada.

Se ele continua apegado a antigas convicções, antigas preferências e antigas manias, é um preguiçoso que se acomodou, escolheu viver de forma repetitiva, no piloto automático, cansado para novos entusiasmos. Está aguardando a morte sem aproveitar a liberdade que a maturidade lhe daria, caso tivesse amadurecido. Se ainda está agarrado ao que lhe definia aos 18 anos, então não saiu mesmo dos 18.

Um adulto de verdade, bem acabado, trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus. Tornou-se um condenado à morte com direito a centenas de últimos desejos.

Um adulto é um adúltero que um dia jurou fidelidade eterna aos Beatles e aos Rolling Stones, mas que um belo dia cansou de conservá-los com naftalina e que resolveu confessar que já não consegue escutar Yesterday sem enfrentar náuseas e que se sente ridículo dançando I Can´t Get No Satisfaction. Trocou o rock pelo neo soul, seja lá o que for isso. Escuta coisas que despertam sua atenção aqui e ali, estilos que gosta num dia e dispensa no outro, e segue em busca de novidades sem querer aterrissar em mais nenhuma “banda preferida” que lhe enclausure num perfil. Só não rasga a carteira de identidade porque o juízo se mantém.

Um adulto é um adúltero que adorava o verão quando era um frangote, mas que, ao abandonar as pranchas e ao se aproximar dos livros, acabou criando uma predileção pelo inverno, até que o tempo passou mais um pouco e ele entendeu que a primavera e o outono é que eram cativantes pela ausência de extremismo, e agora, neste instante, voltou a preferir o verão, mas não assina embaixo, não tem mais firma reconhecida em cartório algum.

Um adulto é um adúltero que deixou de ser fiel aos próprios gostos. Deu-se conta disso quando, ao frequentar a casa de amigos, reparava que serviam a ele sempre o mesmo prato preferido: como explicar que virou um cafajeste gastronômico chegado a outros sabores? As conversas igualmente passaram a se repetir, e ele se pegou aceitando convites de estranhos - hoje é chegado a outros amigos também.

Don Juan de si mesmo, já não tem cor que lhe assente, autor que o represente, estilo de vestir que o catalogue, pensamento que o antecipe, sonho que o enquadre, viagem que o carimbe. Só não muda de time porque restou algum caráter.

Quanto ao amor, não é tolo. Sabe que quanto mais ele se abre para o mundo, quanto mais areja e celebra a própria vida, mais seguro estará nos braços de uma única pessoa, preservando a intimidade conquistada. Amor não é cor, música, esporte, estação do ano, ponto no mapa. Ele varia a si mesmo justamente para não precisar se procurar em mais ninguém.

quarta-feira, 27 de abril de 2016


27 de abril de 2016 | N° 18510 
MARTHA MEDEIROS

Dress code


Ela estava em frente à tevê, na sala, assistindo a mais uma excitante edição do Jornal Nacional, que naquele momento mostrava a entrevista feita com o porteiro de um prédio de luxo cujos apartamentos haviam sofrido um arrastão. Nisso, surge o filho vindo do quarto, enfiando a carteira no bolso da calça e se aproximando para dar um beijo de tchau.

– Tchau, mãe.

– Onde é que você vai?

– Vou pegar a Ana e vamos a um bar encontrar uns amigos.

– Você não está pensando em ir pra rua nesse estado.

– Não entendi.

– Com essa roupa, não vou deixar você sair de casa.

– O que tem minha roupa?

– Vão confundir você com um bandido, meu filho. Vai lá dentro se trocar, a Ana espera.

– Bebeu, mãe? Vou trocar nada. O que tem de errado com a roupa? Comprei esta camisa ontem, custou uma nota.

– Pois é.

– E a calça? É a melhor que eu tenho.

– Tô dizendo. Parece um fora da lei.

– Engraçadinha, virou piadista agora. Tchau, não volto tarde.

– João Guilherme, eu não estou brincando. Não criei filho para ser parado em blitz no meio da rua, colocando mão pra cima de capô de viatura. Vai lá dentro e te desarruma um pouco.

– Mãe...

– Tá me olhando com essa cara por quê? Você não viu essa reportagem que acabou de passar? Eram quatro os assaltantes, um mais engomadinho que o outro. E a Aline, a vizinha aqui do 302, você não soube? Trouxe um meliante pra casa achando que tinha encontrado o príncipe encantado. Maior pinta de deputado. Na manhã seguinte, quando acordou, descobriu que o príncipe havia feito a limpa no apartamento. O retrato falado dele poderia estampar a capa do catálogo do Giorgio Armani. E você querendo sair na rua nessa beca.

– Você tem que parar de ver televisão.

– E você tem que parar de ser tão alienado, João Guilherme. Parece que não sabe em que mundo vive.

– Tchau, mãe, quanto mais cedo eu sair, mais cedo eu volto. Tenho reunião amanhã de manhã no banco.

– Não inventa de ir de gravata. Juízo.

sábado, 23 de abril de 2016



23 de abril de 2016 | N° 18507 
CARPINEJAR

Jair e Zé Capitão

Jair tem 80 anos, Zé Capitão tem cara de 90. Não conheço amizade tão bonita entre dois homens. Amizade pura de menino, de sujar as calças da missa subindo em árvores e jogando bolita de gude.

Eles nunca se entristecem, é estar perto que formam um domingo e reencontram a esperança infinita da infância. Sempre arrumam o que fazer, mesmo que seja atirar pedras no rio, buscando o arremesso certo, de faiscar a superfície.

Conversam sem dó sobre qualquer assunto, de política a pintura, de pássaros a aviões. Jair é divorciado, e Zé é casado. A paixão pelas suas mulheres somente alimentou a confidência. Velhos homens hoje, mas com uma velhice dividida que é quase uma juventude.

Eles se veem duas vezes ao mês na fazenda de Zé em Lagoinha de Fora (MG), depois de Lagoa Santa. Jair armou uma placa para avisar todos que passam onde mora o seu melhor amigo: a 2 km o buraco de Zé Capitão. Criou o desenho de um pescador queimado pelo sol.

Zé não anda mais, amputou as duas pernas devido a diabetes. Jair movimenta-se pelos dois para pescar carpas. O filho do Zé ainda corta os cabelos de Jair, apesar do hábito de aparar mal e abrir um caminho de ratos. Jair deixa porque é filho do Zé.

Jair é chamado de Jairo por Zé Capitão – ninguém sabe o motivo. Assim como Zé, quando gosta de algo, diz que é mexicano. “Come esta mexerica? É mexicana!” Ninguém também sabe o motivo. Não é bom perguntar. Há piadas que são só dos dois, segredos de longas risadas.

No entardecer, ambos se juntam para cantar serestas. A Noite do Meu Bem é a preferida do dueto que arranha uma viola caipira. Os cachorros disputam a audiência com ganidos para a lua.

Eles deitam na cama assistindo novela: Jair, Zé e Elza, a jovem esposa de Zé. Engraçado os três estirados. Não falam coisa alguma até vir o comercial. Não existe malícia, não existem segundas intenções. São homens antigos ocupando os espaços do silêncio.

Se não fossem amigos, não seriam Jair nem Zé Capitão.

Já perderam dinheiro, bens, posses, relações, jamais se perderam, jamais serão loucos. Loucura é estar completamente sozinho neste mundo.

Amigos podem ser mais do que irmãos de sangue. Pois inventam os seus próprios pais para cuidar melhor um do outro.



23 de abril de 2016 | N° 18507 
MARTHA MEDEIROS

Sua estupidez não lhe deixa ver


Vá trabalhar. Vá namorar alguém que goste de você pelo que você é e não pelas suas presepadas juvenis. Você que faz rachas na rua.

Se tem menos de 18 anos, é um bobalhão com titica de galinha na cabeça. Na sua infinita idiotice, acredita que seduzirá as meninas caso roube o carro do pai ou – pior! – roube qualquer carro a fim de voar pelas avenidas. Pensa que é assim que irá se transformar em um adulto: desafiando o perigo. Criança, vá estudar. Vá trabalhar. Vá namorar alguém que goste de você pelo que você é e não pelas suas presepadas juvenis. Não dê motivo para seus pais se arrependerem de ter trazido você ao mundo. Vire homem, e não um bandido. Tem gente que pode morrer por sua causa. Sua estupidez não lhe deixa ver.

Se tem mais de 18 anos, também é um bobalhão com titica de galinha na cabeça, igualzinho à criatura do parágrafo acima, incluindo a infantilidade.

E se tem 39 anos, 52 multas, uma carteira de habilitação suspensa, 10 cervejas na corrente sanguínea e um carro possante em mãos, aí não há o que explique. Fazer um racha nessas condições? É bem grandinho para prever as consequências de seu vício em adrenalina. E deveria estar a par de outras atividades que resultam em bastante emoção: saltar de paraquedas, surfar, escalar montanhas, fazer trekking, rafting, rali, mergulho, balonismo, bungee jump. Até jogar truco provoca certa palpitação.

Mas se nada disso interessa, se o sujeito encasquetou com o automobilismo, trago boas notícias: existe um autódromo bem pertinho de Porto Alegre, em Viamão. Chama-se Tarumã, que dias atrás completou 56 anos de existência. A pista tem extensão de mais de três quilômetros, nove curvas e o asfalto foi todo recapado. É o circuito com a maior média de velocidade do Brasil. O site traz toda a programação – de repente você consegue se inscrever em alguma categoria de corrida. Não sai barato, mas posso garantir que gastará bem menos do que com advogados e indenizações por lesões corporais graves.

Ah, lá tem um kartódromo também. Parece que custa R$ 85 por pessoa ou algo assim. Você coloca um capacete, pisa fundo no acelerador e não ameaça a vida de nenhum pedestre e de nenhum outro motorista.

Não serve? Tem que ser roleta-russa? Tem que ser algo bem irresponsável, uma cretinice daquelas? Entendi. A busca é por uma emoção realmente diferenciada, como ir para a cadeia.

Se você é um desses que faz racha pelas ruas da cidade, abra o olho enquanto é tempo. A estupidez está cegando você. Depois não adiantará alegar que não viu nada.

quarta-feira, 20 de abril de 2016


20 de abril de 2016 | N° 18504 
MARTHA MEDEIROS

Cumplicidade


Quem é amigo de quem naquele antro situado no Planalto Central? Temer é aliado de Cunha? Cunha é parceiro de Calheiros? Calheiros está do lado de Jucá? As respostas não importam, uma vez que lealdade nunca foi assunto levado a sério em Brasília. É certo que um dia ainda veremos Dilma e Aécio abraçados, Lula beijando a mão de Janaína Paschoal e todos cortejando a todos, bastando para isso conveniências políticas e um esquecimentozinho básico (e, claro, desde que permaneçam todos soltos, livres da cadeia ou do hospício). Já vi esse filme várias vezes e, mesmo consciente da seriedade do momento, não tenho mais paciência para esse elenco de canastrões.

Vamos trocar de filme?

Cumplicidade é o assunto do excelente Truman, coprodução espanhola e argentina com o ator Ricardo Darín, que conquistou o padrão Fernanda Montenegro de dramaturgia – qualquer coisa que ele faça em frente à câmera é fenomenal, mesmo que apenas respirar. E com o também excelente Javier Cámara, que com um texto mínimo alcança a mesma potência cênica. Olhares, gestos, silêncios e rápidas observações satíricas bastam para compor uma conjuntura de emoções intensas.

Dois amigos de uma vida inteira que se reencontram quando um deles adoece com gravidade. Dois homens que moram em continentes diferentes, mas que nunca deixaram de ser íntimos. Na verdade, três, pois há um cachorro na história (o Truman do título). A amizade verdadeira não precisa de muitas palavras. Quem tem um cão sabe.

Eu esperava uma longa conversa sobre a vida e a morte (e não acharia ruim), mas o filme é absolutamente fiel ao universo masculino: homens não são de muita filosofice, e isso me fez sair do cinema ainda mais encantada pela classe. Não todos, mas muitos homens são daquele jeito mesmo que a gente vê na tela: emotivos, engraçados, econômicos, sensíveis, sem frescuras, avessos ao dramalhão e levemente safados. 

Há, bem perto do final, uma cena que causa certo desconforto, mas que o personagem de Darín resume com duas palavras: “Faz sentido”. E faz. Porque é difícil racionalizar diante da dor, nem todos sabem como externar seu sofrimento, somos todos carentes diante de uma situação-limite, e, às vezes, o que parece gratuito é apenas uma forma de arrancar a fórceps o que está represado dentro. Como explicar? Não tem explicação. É por ser assim, instintivo, que o que aparenta ser errado ganha o selo da pureza.

Cúmplice, em política e na bandidagem, é aquele que comete um crime junto com você. Nas relações de amizade – e no cinema de qualidade, que não apela para o sentimentalismo barato –, cúmplice é aquele que não julga, simplesmente compreende e, sem muitas perguntas, segura tua mão.

terça-feira, 19 de abril de 2016



19 de abril de 2016 | N° 18503 
CARPINEJAR

Lasca inútil

Eu apoiei o braço na mesinha do microondas. E arranquei sem querer a tira de madeira. Busquei colar, mas faltava um pedaço ínfimo, para reconstituir integralmente a peça. A lasquinha inútil, que não enxergava onde estava, era a responsável pela liga. Vasculhei o chão com as mãos, e nada.

Fiquei me encarando no reflexo do microondas, como se procurasse um rosto que não o meu. As relações de amor são assim: perdem-se por uma lasca.

É algo que nenhum dos dois percebeu como importante, mas que fará a maior falta para encaixar as partes das personalidades. É algo desprovido de valor isoladamente, só que conservava intacta a superfície e a promessa de uma vida conjunta.

As duas extremidades apresentam uma fissura irremediável. Quem diria que uma lasca fosse quebrar o móvel? Uma lasquinha boba, uma lasquinha de ralos centímetros.

A lasca é a construção da destruição, é a fabricação do vazio. Lasca é um erro que não existia no começo do romance, é um atrito, um desgaste, uma falha da soberba dos movimentos. É pensar que conquistou a pessoa e, desse jeito, perdê-la definitivamente – esquece que ela ainda aguarda alguma surpresa e que a mesinha não é de ferro. 

É acreditar que ela sempre estará ali segurando o microondas ou as expectativas. É o que deixou de ser dito por achar que haveria tempo de sobra. É o que deixou de ser sentido por achar que poderia ser feito no dia seguinte. A paciência é maravilhosa na solidão, e perversa na vida a dois.

A lasca é o tarde demais: a fissura, a falta de uma sobra. É a roldana de um poço fechado, é a maçaneta que cai ao abrir a porta, é a aldrava que não gira quando a janela pede vento.

O amor engasga, a fé engasga, a esperança engasga. É a separação por confiar que nada seria capaz de separar o casal.

A lasca é o egoísmo de querer cuidar somente de si e realizar os próprios sonhos enquanto o outro espera. Não há maior egoísmo do que fazer o outro esperar resolvermos os nossos problemas ou ambições. Ou se resolve junto, ou a ruptura virá impiedosamente.

A maior parte dos casais confunde o eterno com o imutável. Imutável é a surdez do tédio, a monotonia de não sair do lugar. Eterno é viver mudando para nunca cansar de amar.

Não visualizava a lasca porque ela havia entrado na pele de minha mão. A lasca é uma farpa que entra na carne dos relacionamentos. E machuca com a violência do vidro partido e jamais refeito.

quarta-feira, 13 de abril de 2016



13 de abril de 2016 | N° 18498 
MARTHA MEDEIROS

Sua majestade, o dinheiro

Diante dos fatos, a vergonha. Vergonha pelas alianças sem critério, pelos acertos por baixo dos panos, pelos conchavos, pela desfaçatez com a qual ninguém se constrange mais. Governantes cometem indecências para garantir sua boquinha e a corrupção, que é a verdadeira inimiga de todos nós, segue pouco discutida.

Como e quando a corrupção irá acabar?

Se a Lava-Jato fosse uma operação permanente de combate à impunidade, a corrupção talvez diminuísse um pouco, pois sempre tem um ou outro que amarela quando cogita ir para a cadeia. Mas o mais provável é que surjam novos e sofisticados métodos de roubalheira – o ser humano é criativo. Será que não existe um jeito de cortar a corrupção pela raiz?

O primeiro passo é lembrar qual é a raiz da corrupção: o dinheiro.

O segundo passo é acreditar em conto de fadas. O empresário Ricardo Semler deu uma ótima entrevista para a Globonews, em que declarou que só há uma maneira de acabar com a corrupção no Brasil e no mundo: modificando nossa relação com o dinheiro.

Talvez ele também acredite em príncipes e princesas, mas por mais idealista que seja, não há como discordar. Por que as pessoas corrompem e são corrompidas? Para obterem vantagens – quase todas envolvendo dinheiro ou poder.

Em um mundo ideal (portanto, irreal), as pessoas receberiam pelo seu trabalho um valor justo para garantir suas necessidades e estaria ótimo assim. Se seu trabalho rendesse mais do que elas precisam, beleza – elas teriam acesso a supérfluos, o que não é pecado, desde que esteja tudo dentro da lei, sem precisar burlar contratos ou molhar a mão alheia. Se valorizássemos as principais qualidades humanas, ninguém precisaria fazer besteira para parecer mais importante do que é.

Como se mede a importância de alguém? Pela ética. Pela compaixão. Pela honestidade. Pela competência.

Isso no reino da fantasia, pois aqui, neste mundo pirado e competitivo, as pessoas medem a importância uma das outras por metro quadrado, por cavalos no motor, por dólares no Exterior, por técnicas farsescas de sedução, pelo que está escrito no cartão.

Não basta ter reais suficientes. Queremos realeza.

Mas em vez de nos sentirmos soberanos através do número de amigos que fizemos, através da credibilidade conquistada, através de nossas vitórias profissionais e emocionais, queremos é sentir o gostinho de estacionar onde bem entender, de voar pelas estradas sem ninguém nos alcançar, de receber tratamento VIP, de sermos vistos como diferenciados, criaturas acima do bem e do mal. Para que esperar merecermos coisas boas da vida se podemos comprar as extraordinárias?

A corrupção só terminará quando o dinheiro deixar de ser usado para mascarar nossa miséria existencial.

sábado, 9 de abril de 2016



09 de abril de 2016 | N° 18495 
CARPINEJAR

Santinho do amor


Todos podem copiar imagens das redes sociais ou baixar álbuns inteiros em segundos, mas o amor ainda permanece artesanato.

A facilidade digital não mudou os símbolos do romance, que seguem os mesmos de nossos bisavós. A rosa continua como a favorita do buquê, o bilhete continua escrito à mão, a dedicatória no primeiro livro emociona mais que o conteúdo da obra, a letra de uma canção repassada ao papel revela momentos a dois.

Se alguém pedir para ver como é a minha namorada, não mostrarei foto nenhuma de meu celular.

Para a surpresa dos outros, abrirei lentamente a carteira e retirarei uma fotinho 3x4 que recebi dela.

A tradição é transgressora no campo emocional. Não há maior demonstração de compromisso do que guardar uma foto 3x4 na carteira dentro daquele envelopinho azul de plástico. Nada aplaca a materialidade desta declaração antiga e sempre atual.

A foto 3x4 é o santinho da intimidade do casal, é o RG da paixão, é o CPF da lealdade.

Supera em importância o status de relacionamento no Facebook. Ultrapassa o valor de uma aliança no dedo.

Os pares que trocam as pequenas fotos não vão se separar sem resistência. Tiveram o trabalho de visitar um estúdio, sentar na cadeira alta e atender às ordens de seriedade do fotógrafo. Reservaram uma das cópias para a sua companhia predileta. Não é pouca coisa em tempos tão líquidos, quando o desprendimento vem sendo desculpa da preguiça.

Quando a minha namorada me presenteou com a sua fotinho, estava simbolicamente afirmando que confiava em mim, recomendando para que cuidasse de nossos laços e lembrasse de onde venho e para quem eu volto. Logo tornou-se um talismã da ternura, um escapulário de bolso.

Representa o atestado de nascimento de nossa relação que valerá enquanto não nos casamos, assim como a certidão de nascimento é o documento provisório antes da identidade.

E o mais bonito da foto é que ela não está rindo, ninguém ri em foto 3x4 – é o amor que gargalha de orgulho em meus dedos sempre que digo que somos apaixonados.



09 de abril de 2016 | N° 18495 
MÁRIO CORSO

Eu, o vidiota


Poucas coisas me deixam mais abobado do que estar em frente a uma TV. Logo eu, que quase não a assisto. Nada ideológico, planejado, apenas sempre tenho outra coisa para fazer. A passividade que ela pede é demais para minha inquietude. Coisa de maluco, não tomem como uma virtude.

Mas então, por que eu fico um débil mental quando estou em bares, em restaurantes, na casa de amigos e surge uma tela ligada? E o detalhe escabroso, eu fico fascinado com os comerciais, nunca com os programas. É o mundo rápido e colorido da propaganda que me hipnotiza.

Poderia ser pela novidade, pois essas propagandas que vos enchem o saco, para mim, são todas novas. Imagine um canal em que todos os comerciais são originais, serão vistos uma vez e depois desaparecerão no abismo dos comerciais esquecidos. Assim é para mim. Mas a explicação pela novidade não me basta.

Descobri que o que me captura é a promessa. Neste mundo partido, sofrido, sem ideologia, sem sonhos, a propaganda converteu-se no último refúgio da utopia. Só lá somos amigos do rei. Só lá podemos encontrar as três mulheres do sabonete Araxá.

O mundo da propaganda é o mundo perfeito, é o mundo que sonhamos. A praia tem sol, está limpa e só tem gente bonita. A cerveja é gelada, o atendimento é rápido, a garçonete não só atende ao chamado como já te traz a birita, e é ainda mais bonita do que os figurantes.

Nosso carro de 220 cavalos roda sozinho de janela aberta numa cidade também limpa – a higiene é um quesito importante nesse mundo –, pois não existe engarrafamento. Existem muitas vagas para estacionar. Ninguém buzina, nem está estressado, tampouco fazem alusões ao passado da nossa mãe.

A comida vem congelada num saco plástico. Mas, tirando dali, em segundos, apenas com o uso de um forno, ela se autoenfeita e pode ser servida para a Rainha da Inglaterra. Todos vão elogiar o sabor local, o terroir, daquela gostosura. A receita é da nona que renasce para lhe dar um beijo.

Esse xampu que você compra não é para limpar seu cabelo. É algo mais, ele protege o seu couro cabeludo, desembaraça, dá brilho, dá volume, restaura, alimenta, previne a caspa, a queda e o baixo-astral. Pois amiga, você vai ficar com um cabelo de parar o trânsito. O do comercial, bem entendido, o outro já é parado.

Tudo isso tem um custo, é claro, mas a conta só chega em propaganda de cartão. E a vantagem é que você paga com o cartão, mas não aparece pagando o cartão. E você já viu pessoas mais cool e viajadas do que as que usam o cartão diamante negro plus? Estão sempre subindo e descendo de jatinhos em pistas privadas. A gente precisa de um cartão assim.

Pois a propaganda é mais do que o primeiro mundo. Só lá a perfeição encontra uma forma. Meu olhos querem voltar a ter esperança, por isso são capturados pelo mundo mágico dos produtos maravilhosos. Mas eu não quero os objetos, eu quero o mundo onde eles estão. Por isso, espio pela única fresta disponível, a propaganda. A utopia que nos sobrou.


09 de abril de 2016 | N° 18495 
MARTHA MEDEIROS

Um pouco de doçura


São a Leila e a Cris que seguram o leitor nas mãos: fisgado e rendido, ele ficará preso até a última linha, quando então retornará à vida acreditando novamente na espécie humana

Que a vida anda truculenta não é novidade. Milhares de pessoas têm recorrido à meditação, yoga, ayurveda e tudo o que ajude a purificar a mente, o corpo e o espírito. Pois recomendo incluir um livro na receita. Prescrevo Leila Ferreira e Cris Guerra para detox.

Doçura, inteligência, graça, suavidade – lembra? Também imaginei que estivessem em extinção, mas descobri que seguem vivos nas páginas de Que Ninguém Nos Ouça, escrito a quatro mãos pelas duas escritoras mineiras acima mencionadas. Não que seja uma literatura para mocinhas inocentes: o assunto muitas vezes é barra. Nem Leila, nem Cris saltaram de um conto de fadas. Leila foi criada apenas pela mãe e passou por uma infância de provações. 

Cris ficou viúva quando estava com sete meses de gravidez. Porém, mesmo quando confidenciam a parte trash de suas trajetórias (pequenas e grandes tragédias cotidianas que deixam cicatrizes), a delicadeza continua mantendo o tom. Amargas? Nem que quisessem. Nem que tentassem. É o único talento que elas não têm.

São confessionais sem seres histriônicas. Verdadeiras sem serem rudes. Honestas sem serem simplórias. Nesses tempos em que está tudo polarizado (ou é isso ou aquilo, cada extremo defendendo-se aos gritos), como não ficar comovido por quem é tão hábil em encontrar o equilíbrio saudável entre as diferenças?

Leila, 62 anos, é jornalista tarimbada, com 1.600 entrevistas no currículo, feitas no tempo em que trabalhava na tevê. Cris, 45, é uma blogueira antenada e está vivendo o auge da profissão. Duas mulheres e seus amores felizes e infelizes, suas dores inevitáveis e seus prazeres escolhidos, suas visões sobre o envelhecimento, sobre o papel da moda, sobre dietas estúpidas, sobre os efeitos colaterais da agressividade, sobre o poder das amizades, sobre suas vidas em princípio tão particulares, mas que encontram ressonância na minha e certamente encontrarão na sua também. Um livro feminino, mas digestível para qualquer sexo. É doce, mas não é enjoativo. Sugar free.

Sou muito amiga da Leila, e conheço a Cris também, ainda que pouco. Duas mulheres incomuns e com experiências singulares: só pelo voyeurismo consentido, já valeria dar uma espiada nessa troca de e-mails entre as duas. Porém, basta abrir a primeira página para perder a ilusão de que teremos algum controle sobre a leitura. São a Leila e a Cris que seguram o leitor nas mãos: fisgado e rendido, ele ficará preso até a última linha, quando então retornará à vida acreditando novamente na espécie humana.

Se não estou enganada, é do que mais precisamos no momento.

quarta-feira, 6 de abril de 2016



06 de abril de 2016 | N° 18492 
MARTHA MEDEIROS

Arte e política


O blogueiro que pediu boicote a certos intelectuais infelizmente não está sozinho. A disputa partidária está fritando o cérebro de alguns. Quem adorava Chico Buarque e Luis Fernando Verissimo passou a desprezá-los pela diferença de convicções. Já vi gente debochando das canções de Lobão, mesmo que, anos antes, não perdesse seus shows. Discordar de um comportamento, ok. Todo artista é um cidadão e suas atitudes são passíveis de críticas. Mas a arte não pode ser julgada da mesma forma. Ela é ruim ou boa por si mesma, não pela conduta pessoal do autor. É um legado cultural que precisa ser preservado.

Até hoje me insultam por adorar Woody Allen – “como você pode promover um pedófilo?”. Não acredito que Allen seja pedófilo. Se for, que o prendam, mas não deixarei de admirar seu talento, assim como admiro os filmes de Roman Polanski (condenado por abuso sexual de uma adolescente), reverencio as obras de Picasso (machista, egocêntrico), me encanta ver Nick Nolte e Sean Penn atuando (já foram presos). 

Sou fã dos Rolling Stones (drogas, drogas, drogas), gosto dos textos de Nelson Rodrigues (reacionário, obsceno), estimo a carreira construída por Marilia Pêra (pró-Collor), admiro o trabalho de Letícia Sabatella (pró-Dilma), reverencio a literatura de Machado de Assis e Jorge Luis Borges (ambos de direita) e de Mario Benedetti e García Márquez (ambos de esquerda), apreciava o suingue de Simonal (rei da pilantragem), acompanhava o trabalho de Paulo Francis (elitista, petulante), respeito Roberto Carlos (apoiava o regime militar), me impressionam os murais de Diego Rivera (traiu Frida Kahlo com a irmã dela) e sigo escutando Janis Joplin, Cassia Eller, Kurt Cobain, Amy Winehouse e Cazuza, que nunca ganharam medalhas por bom comportamento.

Se você fizer a lista dos seus, só encontrará anjos que votam como você?

Boicotar uma empresa a fim de que ela melhore seus serviços é um ato político. Já rechaçar a obra de um artista por seu partidarismo é o mesmo que condená-lo por sua inclinação sexual, cor da pele ou estilo de vida. Lógico que devemos escolher quem pode frequentar nossa casa, ser nosso sócio, subir conosco ao altar, mas depreciar boas músicas, filmes e livros criados por X ou Y, alegando que, longe dos holofotes, eles não compactuam com nossa visão de mundo é uma reação provinciana. Negar a eles o gostinho da nossa audiência não os tornará supérfluos – nós é que perderemos a oportunidade de expansão.

“Prepara/ que agora é a hora/ do show das poderosas/ que descem e rebolam/ afrontam as fogosas.” Mais poesia? “Hoje ninguém dorme em casa/ hoje vai ser meu brinquedo/ porque eu quero te pegar gostoso”. Tudo bem, todo mundo na pista se divertindo com as funkeiras, mas é isso que nos resta?

Boicotar Chico Buarque é o fim.

terça-feira, 5 de abril de 2016



05 de abril de 2016 | N° 18491 
CARPINEJAR

Final de semana perfeito


Meu filho nunca pisou numa locadora de filmes. Ele baixa todas as séries e jogos em seu computador ou acompanha as obras de sua preferência nos canais de assinatura da web.

Já eu vivi o império das locadoras. Meu sonho por ordem era abrir uma locadora, uma livraria e um café. E, com certeza, não era só meu, antes da revolução de Steve Jobs.

O cinema em casa fez a cabeça de toda uma geração, que alugava fitas, experimentando uma extensão do empréstimo dos livros da biblioteca na escola.

Lembro da alegria ansiosa de sair do trabalho na sexta para buscar os lançamentos e garimpar clássicos. Horas a fio revistando as prateleiras, com pilhas de capas nas mãos e a séria dificuldade de escolher o que realmente desfrutava de tempo para ver.

Não controlava a gula. Havia uma fórmula secreta no desperdício. Quando eu locava cinco filmes, assistia a três. Quando locava quatro filmes, assistia a dois. Quando locava três filmes, assistia a um. Quando locava dois, não assistia a nenhum. Jamais locava um, pois era impossível ceder às promoções para permanecer uma semana dependendo do número de locações. Tenho dúvidas do que vi, a sensação é de que conclui um filme, mas na verdade apenas o retirei.

Apesar do prazo dilatado, atravessava uma maldição. Não conseguia entregar no dia. Acho que paguei mais em multa do que em aluguel. Eu não registrava a data da devolução e entrava em pânico quando reconhecia os títulos esquecidos em cima do aparelho de VHS.

As locadoras foram um termômetro da felicidade. A saudade de pegar uma montanha de filmes com amigos e virar a madrugada comendo pizza e emendando roteiros e dramas até o amanhecer. Ou, quando me apaixonava, curtir o sábado e domingo com a namorada na cama, só apertando o play e o pause. Se eu retirasse oito filmes, certamente me encontrava amando, disposto a sumir no quarto e esquecer o mundo.

O deslocamento físico e o manuseio balbuciante dos estojos intensificavam o prazer. Definir pela sinopse malredigida o que valeria a pena e ganhar a discussão com a mulher sobre qual título levar formavam um ritual de final de semana perfeito que não existe como antes.

Lamento a ausência galopante das locadoras em nossos hábitos. Não cumpri as minhas fantasias. Faltou coragem de entrar na salinha de filmes pornôs, um espaço à parte, carregado de preconceito e com câmeras nos cantos. Hoje estaria preparado, sem nenhuma vergonha da minha sexualidade. Pena que é tarde demais.

domingo, 3 de abril de 2016



ferreira gullar
03/04/2016  02h00

E o sonho acabou

Acredito que a maneira que temos para sair da situação crítica em que nos encontramos é tentarmos entender o que ocorreu no país e o conduziu ao impasse. Certamente, cada analista político tem sua própria compreensão do problema em que haverá, sem dúvida, alguma verdade, mas que, a meu ver, nem sempre pode explicar certos aspectos dos governos petistas que estão no poder há mais de 12 anos.

Em meus comentários, tenho buscado caracterizar esse governos como populistas, a exemplo do que ocorreu na Argentina, na Venezuela, na Bolívia e no Equador.

Se é certo que, em cada um desses países, o populismo se manifestou de maneira particular, em todos eles pôs em prática um tipo de governo que se apresenta como defensor dos pobres contra os ricos, embora, na prática, não seja bem isso, como constatamos no Brasil.

Esse novo populismo –ao contrário do que se impôs nos anos 1930, 40, 50 (por aí)– é um arremedo do regime marxista, mesmo porque surgiu como consequência do fim daqueles regimes no mundo inteiro.

Como o populismo latino-americano não nasceu de uma revolução e, sim, da disputa eleitoral, não pode impor a ditadura de um só partido mas, mesmo assim, pretende manter-se para sempre no poder.

Hugo Chávez, com seu socialismo bolivariano, mudou a Constituição da Venezuela para reeleger-se indefinidamente; o mesmo fez Evo Morales. Lula tentou um terceiro mandato mas não o conseguiu. O jeito foi eleger a Dilma, pensando em voltar quatro anos depois.

A intenção de permanecer indefinidamente no poder explica por que, em seu primeiro mandato, Lula evitou aliar-se ao PMDB, ao qual teria que ceder ministérios e altos cargos da máquina estatal. Em vez disso, aliou-se aos pequenos partidos, os quais, em vez de ministérios, comprou com dinheiro público –o mensalão.

Desgastado com esse escândalo –do qual escapou entregando a cabeça de seus principais militantes– Lula teve de aliar-se, no segundo mandato, ao PMDB, e lhe fazer as concessões conhecidas, algumas das quais reveladas pela Operação Lava Jato. Mas o projeto de poder de Lula não se limitou à compra de deputados e à barganha de cargos públicos.

Conforme têm mostrado as investigações realizadas, criou-se dentro da Petrobras uma aliança do governo com altos funcionários da empresa e dirigentes de empreiteiras para saqueá-la através de concorrências manipuladas e contratações fajutas, que geravam alta somas em propinas. Parte desse dinheiro era passada ao partido do governo e seus aliados.

Como se vê, a figura do líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, que ganhou a confiança de certa intelectualidade de esquerda, na verdade juntou-se aos capitalistas que dizia combater, formando uma aliança criminosa que sonhava saquear o patrimônio público por décadas e décadas.

Como parte desse projeto, Lula e Dilma usaram recursos do Estado para os programas assistencialistas que lhes garantissem a reeleição permanente.

Com esse propósito, estimularam o consumismo, emprestando dinheiro do tesouro nacional a empresas produtoras de veículos, de geladeira, televisão, máquinas de lavar, enfim, de bens de consumo, para que os vendessem a preços acessíveis e a longo prazo aos consumidor de poucos recursos.

Ou seja, nós, contribuintes, financiávamos a política populista para que Lula se mantivesse no poder, como o pai dos pobres.

O que pretendo demonstrar com esses fatos é que o desempenho de Lula não foi apenas resultado de sua personalidade carismática. Na verdade, se atentamos para os fatos citados, é inevitável concluir que seu desempenho obedece a um projeto político que visava manter-se no poder indefinidamente. Ele só se esqueceu de que a economia tem leis que, desobedecidas, levam ao desastre. E o desastre chegou.

Agora, com o desembarque do PMDB do governo e a previsível aprovação do impeachment, a aventura lulopetista parece estar com os dias contados. 

É cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos.


carlos heitor cony
É membro da ABL. Começou sua carreira no jornalismo em 1952 no 'Jornal do Brasil'. É autor de 17 romances e diversas adaptações de clássicos.
Escreve aos domingos.


O golpe: onde está o golpe?

RIO DE JANEIRO - Dilma e a confusa base que a apoia custaram a encontrar um mantra que pudesse salvar o governo que enfrenta a pior crise política e administrativa dos últimos tempos.

Aproveitando oportunisticamente os descalabros do regime militar de 1964, que foi realmente um golpe sórdido nas instituições, na vida nacional e na própria vida pessoal da maioria dos brasileiros, tanto Lula como a própriaDilma garantem que o impeachment em andamento é um golpe de seus adversários.
No entanto, até agora, não houve e parece que não haverá uma ruptura da legalidade democrática. A Constituição em vigor, os prazos e todas as regras que compõem o regime legal e constitucional estão sendo respeitados pela oposição e pelo aparelho judicial. Não houve, repito, até agora, nenhuma medida de força para derrubar o regime e mudar a estrutura de uma liberdade duramente conquistada pelo povo brasileiro.

Dilma e Lula pretendem vender o combate à corrupção, instalada e promovida pelo próprio governo, como um movimento golpista. Ela ainda não desconfiou que não está agradando. Os índices de sua popularidade estão como a lama de Mariana: descendo cada vez mais.

Lula está batendo na mesma tecla. Ele, que já sofreu alguns golpes, devia estar careca de saber que o problema agora é a corrupção, na qual o seu partido e ele próprio estão afundados. Para escamotear a incompetência e a imoralidade do governo, Dilma e Lula se vangloriam das manifestações favoráveis ao governo atual. As passeatas contrárias foram maiores e espontâneas.

Já as manifestações a favor da corrupção e da incompetência são organizadas e financiadas pelos mesmos grupos, cujos chefes já estão na cadeia. O PT se orgulha de sua militância, uma palavra perigosa que lembra nefastamente o regime militar que tanto nos desgraçou.


EDITORIAL
02/04/2016  17h00

Nem Dilma nem Temer

A presidente Dilma Rousseff (PT) perdeu as condições de governar o país.

É com pesar que este jornal chega a essa conclusão. Nunca é desejável interromper, ainda que por meios legais, um mandato presidencial obtido em eleição democrática.

Depois de seu partido protagonizar os maiores escândalos de corrupção de que se tem notícia; depois de se reeleger à custa de clamoroso estelionato eleitoral; depois de seu governo provocar a pior recessão da história, Dilma colhe o que merece.

Formou-se imensa maioria favorável a seu impeachment. As maiores manifestações políticas de que se tem registro no Brasil tomaram as ruas a exigir a remoção da presidente. Sempre oportunistas, as forças dominantes no Congresso ocupam o vazio deixado pelo colapso do governo.

A administração foi posta a serviço de dois propósitos: barrar o impedimento, mediante desbragada compra de apoio parlamentar, e proteger o ex-presidente Lula e companheiros às voltas com problemas na Justiça.

Mesmo que vença a batalha na Câmara, o que parece cada vez mais improvável, não se vislumbra como ela possa voltar a governar. Os fatores que levaram à falência de sua autoridade persistirão.

Enquanto Dilma Rousseff permanecer no cargo, a nação seguirá crispada, paralisada. É forçoso reconhecer que a presidente constitui hoje o obstáculo à recuperação do país.

Esta Folha continuará empenhando-se em publicar um resumo equilibrado dos fatos e um espectro plural de opiniões, mas passa a se incluir entre os que preferem a renúncia à deposição constitucional.

Embora existam motivos para o impedimento, até porque a legislação estabelece farta gama de opções, nenhum deles é irrefutável. Não que faltem indícios de má conduta; falta, até agora, comprovação cabal. Pedaladas fiscais são razão questionável numa cultura orçamentária ainda permissiva.

Mesmo desmoralizado, o PT tem respaldo de uma minoria expressiva; o impeachment tenderá a deixar um rastro de ressentimento. Já a renúncia traduziria, num gesto de desapego e realismo, a consciência da mandatária de que condições alheias à sua vontade a impedem de se desincumbir da missão.

A mesma consciência deveria ter Michel Temer (PMDB), que tampouco dispõe de suficiente apoio na sociedade. Dada a gravidade excepcional desta crise, seria uma bênção que o poder retornasse logo ao povo a fim de que ele investisse alguém da legitimidade requerida para promover reformas estruturais e tirar o país da estagnação.

O Tribunal Superior Eleitoral julgará as contas da chapa eleita em 2014 e poderá cassá-la. Seja por essa saída, seja pela renúncia dupla, a população seria convocada a participar de nova eleição presidencial, num prazo de 90 dias.

Imprescindível, antes, que a Câmara dos Deputados ou o Supremo Tribunal Federal afaste de vez a nefasta figura de Eduardo Cunha –o próximo na linha de sucessão–, réu naquela corte e que jamais poderia dirigir o Brasil nesse intervalo.

Dilma Rousseff deve renunciar já, para poupar o país do trauma do impeachment e superar tanto o impasse que o mantém atolado como a calamidade sem precedentes do atual governo.

editoriais@grupofolha.com.br 

sábado, 2 de abril de 2016



02 de abril de 2016 | N° 18489 
CARPINEJAR

Agradável insatisfação


Quando a namorada escolhe a sua roupa para sair, a minha opinião somente vale para criar dúvidas. Se confesso que adorei, não significa que manterá a combinação. Cinco minutos depois estará com outro traje pedindo a minha opinião de novo. Ou seja, aquele vestido que elogiei já não existe mais, morreu de inédito.

A impressão é que não faz sentido o meu palpite, mas tem uma função eliminatória. Ela é capaz de recusar uma roupa que não gostei, porém não seguirá cegamente o que gostei. Porque precisa gostar mais do que eu. E uma mulher só gosta comparando.

Esqueça o sonho de que ela pegará um figurino no armário e deu, que será rápida e prática. Seu costume é realizar um leilão do seu guarda-roupa. Sempre derrubará os cabides sem medo da bagunça, com a intenção de intercambiar tecidos. É uma pintora diante da tela imensa do espelho, produzindo cores inéditas na paleta. Não esmorecerá até definir a opção certa para o clima e para a ocasião. Não deseja apenas estar bonita, porém ser também oportuna. Odeia a hipótese de chegar num lugar com jeito de fantasiada.

Escolher depende do cruzamento das peças com os acessórios. O costume é aprovar o vestido e não achar um sapato à altura, optar por uma calça e uma camisa e cismar com o cinto. Uma simples hesitação põe o trabalho de horas abaixo.

A importância do encontro pode ser mensurada pelo número de roupas que testou. Mais de cinco é sinal de que leva a sério o passeio.

Não reclamo quando a minha namorada troca de roupa seguidamente. Não reclamo da demora e do atraso. É a minha chance de vê-la nua várias vezes. É a minha chance de vê-la se despindo para mim várias vezes.


02 de abril de 2016 | N° 18489 
MARTHA MEDEIROS

Meu querido

Para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero “querida” mesmo

Quando eu soube que o Lula, durante o célebre interrogatório do início de março, chamou o delegado de querido 30 vezes, recordei uma coluna que escrevi anos atrás sobre o tratamento que damos aos outros e suas sutilezas. O Lula, claro, devia estar querendo arrancar as tripas do querido.

Amigos íntimos tratam uns aos outros de “seu viado” e isso é uma declaração de amor. Tenho uma ex-colega do colégio que costuma entrar no meu WhatsApp perguntando “e aí, veia?” e eu não caio em prantos porque sei que ela só dedica esse afeto a quem considera muito especial. Ou seja: se quisermos respeito, melhor procurar quem nos odeia.

A maioria dos e-mails que recebo começa com “Oi, Martha”, às vezes “Oi, Martinha”, e suspiro aliviada: não há dúvida de que o desconhecido me quer bem. Mas quando a mensagem inicia com um reverente “Dona Martha”, fico lívida e com as pernas bambas. Serei detonada, e não vai ser pouco.

E se a mensagem começa com Ilustríssima, aí nem continuo a leitura. Sou muito carente.

Uma vez estava assistindo a uma palestra de uma senhora distinta e educada. Quando chegou a hora das perguntas da plateia, uma moça levantou na maior inocência e questionou a palestrante sobre um assunto incômodo. Fez-se um silêncio fúnebre durante três segundos, até que a resposta iniciou com uma voz gutural: “Minha filha, você...”

Nem quis escutar o resto. Aquele “minha filha” era uma navalha perfurando a jugular da desavisada que ousou interpelar a estrela do evento. Quem não sabe? Você só usa “minha filha” ou “meu filho” em dois casos: quando está se comunicando com alguém que tem o mesmo DNA que o seu ou quando se sente tão superior que não resiste em humilhar a criatura repugnante que se atreveu a cruzar seu caminho.

Vale o mesmo para “meu bem”.

Eu tenho um problema. Aliás, tenho vários, mas hoje vou revelar apenas este: eu costumava chamar as pessoas de querido e querida. Só que não estava nem um pouco irritada. Não estava querendo esganá-las. Não estava sendo cínica ou pedante – um pouco brega, no máximo. Era a droga de um carinho verdadeiro. Aí resolvi cortar a última sílaba e passei a chamar as pessoas de “queri” (pronuncia-se “quêri”). Um apelido para meus queridos e queridas, assim não restaria dúvida de que eu estava sendo fofa de verdade, e não de mentirinha.

Tem funcionado. Que saudade, queri! Adorei seu post, queri!

Porém, para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero querida mesmo. Com toda a razão.

O melhor é não deixar dúvida nenhuma sobre meu apego. Ultimamente, o que mais tenho dito é: adoro você, monstro.

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