sábado, 25 de junho de 2016



25 de junho de 2016 | N° 18565 
MARTHA MEDEIROS

Fator de descarte 2

Já me apaixonei por quem escrevia feito um poeta, mas também por quem escrevia “quizer” e “denovo”. Meu fator de descarte, nestes casos, é a boa ou a má vontade em aprender

Anos atrás, escrevi uma crônica chamada Fator de descarte, em que eu perguntava qual seria o deslize fatal que desmotivaria o prosseguimento de uma relação. Na época, dei o exemplo de uma amiga que estava no carro com o rolo novo e que o dispensou assim que ele, ao ouvir uma canção do Tom Jobim, disse que não suportava aquele xarope.

Amor não é coisa que tem dado sopa por aí, então, mesmo o cara tendo péssimo gosto musical, convém dar mais uma chance a ele – eu daria. Porém, nem todos são tão complacentes. Um amigo me disse, outro dia, que estava começando a trocar mensagens com uma garota, até que ela escreveu que adorava percorrer a orla de biscicleta. Biscicleta com sc foi o fator de descarte dele.

De fato, é grave, mas nestes tempos em que todo mundo tem iniciado relações através das redes sociais, sendo obrigado à escrita, é bom reduzir o grau de exigência, senão adeus cobertor de orelha para atravessar o inverno.

Erros clássicos proliferam: “despretencioso”, “encomodar”, “excessão”. Recentemente, uma escritora escreveu de forma errada a palavra exceção em seu Facebook: quem nunca? Na pressa em digitar um post contra a bandalheira do país, escapou um erro ortográfico sem revisão. Pelo mesmo motivo (a política), um músico escreveu que estávamos no fundo do posso. Ó, céus. Se até com eles, que dominam o português, acontece, imagine com quem não tem o hábito de ler livros, que é a maioria.

Muitos leitores me mandam e-mails bacanas e, ao final, pedem desculpas antecipadas por alguma eventual mancada na digitação. Quase sempre, são justamente eles que não cometem mancada alguma. Digo para relaxarem, pois costumo ficar mais ligada no conteúdo do que na forma. Eu mesma, em mensagens ligeiras, escorrego. E inclusive nas nem tão ligeiras: outro dia, numa crônica, troquei “sobre” por “sob” e não me conformo, como deixei passar? Vacilei. Não me descartem por isso, tenho defeitos piores.

Escrever corretamente é uma obrigação. Nada causa melhor impressão do que um texto limpo, claro e bem escrito, mas diante da falência da nossa educação e do lamentável índice de leitura do país, melhor ampliar nosso crédito amoroso para com os descuidados. Já me apaixonei por quem escrevia feito um poeta, mas também por quem escrevia “quizer” e “denovo”, assim, tudo junto. 

Meu fator de descarte, nestes casos, é a boa ou a má vontade em aprender. Se a pessoa aceita e agradece quando é carinhosamente corrigida, está salva, é sinal de que é inteligente. Mas se fica ofendida, aí o problema não é o erro gramatical, e sim a falta de humildade e a tacanhice em não querer melhorar. Pra essas, condescendência zero – agora sim, com sc.



25 de junho de 2016 | N° 18565 
CARPINEJAR

Sou um homem do rádio


Eu me arrepio quando vou ao estádio e vejo alguém com radinho de pilha grudado na orelha. Nenhuma tecnologia, nenhum fone, nenhum wi-fi do celular, com o radinho mesmo, do tamanho de um tijolo, carregado até a cabeça.

Lembro de meu pai.

O meu pai com o seu rádio velho ajeitando a antena de um lado para o outro, mexendo no dial com a precisão de um cofre. Ele levantava um haltere permanentemente com seu braço esquerdo. Não praguejava o incômodo. Colocava o volume ao máximo, feliz com seu aparelho de estimação, aquele que, acreditava, se esquecesse em casa, seu time perderia o jogo.

Havia sempre uma arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo, sintonizado na narração e também atento aos sons de ebulição do estádio. Um fanático de um clube que não se isolava em si mesmo, não se fechava na cabine tecnológica, capaz de entoar os cânticos da torcida e colher as informações com os comentaristas quando não enxergava direito o que aconteceu num lance.

Da mesma forma, apesar dos aplicativos que me facilitam escutar qualquer música sem interrupção, prefiro as estações do rádio. Sou ligado ao improviso, à possibilidade de ser surpreendido por uma canção inesperada, algo que não sei ou não tinha noção. Fico no carro ou na residência navegando em minha estação predileta, deixando o coração suspenso pelos próximos acordes.

Não recrimino os comerciais, não censuro os boletins noticiosos, aguardo que venha uma melodia do acaso, potente o suficiente para me despertar lembranças longínquas e me inspirar a cantar alto refrões que não suspeitava recordar. É a adrenalina de reaver a memória amorosa por trás das camadas das idades. Recupero uma reunião dançante, a trilha de uma viagem, um hábito de infância. Exercito um descontrole generoso da vida. Penso que aquela música aparecendo do nada é um sinal de que devo telefonar para um amigo esquecido. A rádio é o interurbano que recebo diretamente do destino.

Hoje existe um controle excessivo dos ouvidos. Ouvir tudo o que se quer é surdez.

A rádio quebra as obsessões e me abre para a diversidade. Trata-se de um lançamento de um ritmo que nunca descobriria em meus filtros, de uma cantora que jamais tomaria conhecimento, de uma banda que passaria despercebida entre as modinhas.

O que quero mesmo é ser incomodado pelas emoções, ser levado para um destino espiritual que estava dentro de mim e é absolutamente desconhecido para o meu GPS.



25 de junho de 2016 | N° 18565 
L.F. VERISSIMO

Por fora

Senador, o senhor sabe por que nós estamos reunidos aqui. Lideranças de todos os partidos com representação no Congresso, membros do Judiciário, líderes de todas as denominações religiosas do país, chefes militares, empresários – enfim, a nação.

Como o senhor também já sabe, fizemos um plebiscito interno no Congresso para escolher o mais íntegro e impoluto entre nós, para resgatar a reputação dos políticos, esta classe tão desmoralizada e tão desacreditada, principalmente depois dos últimos escândalos. A escolha foi fácil, foi quase unânime, pois nenhum outro político brasileiro tem a sua reputação de seriedade e honestidade.

O que lhe oferecemos é uma espécie de ditadura branca. O senhor nos governaria, por um período a ser determinado, até que a classe política recuperasse seu bom nome e a população voltasse a confiar nos seus representantes. As instituições da República continuariam funcionando, não haveria censura ou qualquer outro resquício de uma ditadura real, mas o senhor teria a palavra final – sobretudo da política econômica à escalação da Seleção.

Sua honradez é notória, mas mesmo assim precisamos sabatiná-lo, antes de nomeá-lo. Uma mera formalidade.

– Pois não. – O senhor tem conta não declarada na Suíça ou em algum paraíso fiscal?

– Não. – E truste? – Nem sei o que é isso.

– O senhor foi delatado ou está sendo investigado pela Lava-Jato?

– Não.  – E sua vida amorosa? Existiu algum caso que possa embaraçá-lo, se vier à tona durante seu mandato?

– Estou casado com a Josefa há 40 anos e nunca olhei para outra mulher.

– Acho que temos o homem ideal para governar o país. Não precisaremos de eleições. O país está cansado de tanta falcatrua e apoiará sua eleição por aclamação. O senhor aceita?

– Aceito. – Seu salário, por sinal, será o de presidente da República.

– Epa. Não tem algum por fora?


25 de junho de 2016 | N° 18565 
DAVID COIMBRA

O texto que salvou a Europa


Tenho em casa 10 alentados volumes encadernados em couro contando a história da II Guerra Mundial. Autoria: Winston S. Churchill.

Churchill assinava seus livros com o S de Spencer porque havia então outro escritor com o mesmo nome, um romancista americano, que, na época, era bem conhecido.

O Churchill britânico não era ficcionista, mas escrevia melhor do que seu homônimo.

Churchill ganhou o Prêmio Nobel de Literatura por sua obra. Mas isso até foi pouco: ele salvou a Europa com seu texto. Sim, porque foram os discursos de Churchill que inspiraram o povo inglês e o tornaram resiliente o suficiente para resistir ao muito mais poderoso exército do III Reich. Quando Churchill jurou: “We shall never surrender!”, Nós nunca nos renderemos!, começou a ganhar a guerra.

Mas o melhor de Churchill é que ele fez o que fez devido ao poder do seu texto. Ouça seus discursos, há vários no YouTube. Ele fala mal. Não chega a ser uma Dilma, mas não tem impostação alguma, enrola-se nas palavras e, o pior, falta-lhe interpretação.

Hitler era muito melhor orador. Não havia comparação entre um e outro na declamação. Hitler era histriônico, dramático, você lhe assiste discursando e fica hipnotizado. Alguns oradores têm essa capacidade. Se ele estivesse lendo a lista do súper, seria capaz de empolgar as multidões. Churchill, se você parar para ouvi-lo, é capaz de pegar no sono.

Mas também não havia comparação entre um e outro no texto. Li o infame best-seller de Hitler, Mein kampf. É mal escrito, confuso, ruim na forma e no conteúdo.

Churchill, ao contrário, era dono de texto elegante e capaz de criar frases imortais, como a famosa “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”, a respeito da atuação da Real Força Aérea na Batalha da Grã-Bretanha, ou de tiradas devastadoras, como aquela na discussão com uma deputada no parlamento inglês. Ela, que o odiava, rosnou:

– Se eu fosse sua mulher, derramaria veneno no seu café.

Churchill, impávido, retorquiu:

– Se a senhora fosse a minha mulher, eu beberia.

Churchill enfrentou o nazismo com a força da palavra escrita. E venceu.

É um herói. É desses que tornam especial a breve existência do ser humano debaixo do sol.

Era um craque. A vida precisa de craques.

Tenho outros, cá para mim, na minha lista de craques da humanidade.

Nelson Mandela.

Estive frente a frente com Mandela, olhei-o nos olhos. Contei essa história, aconteceu em 1991, não vou contar de novo. Podia ter aproveitado melhor o encontro e tirado dele algum ensinamento, mas pelo menos tenho a lembrança particular daquele homem alto, sorridente, de aparência serena.

Mandela, na juventude, foi lutador de boxe e guerrilheiro, manejou bombas, planejou atentados, pregava a violência. Então, foi preso pelo regime racista da África do Sul.

Esse episódio, na história de Mandela, é o que o torna um gigante. Ao prender Mandela a fim de se preservar, o regime do apartheid encontrou seu fim. Na prisão, Mandela se libertou. Viu-se livre de muitas coisas, ao ser preso, mas o principal foi ter compreendido que as pessoas são iguais nos sentimentos. Mandela entendeu que o branco opressor também sentia medo e que a única maneira de derrotá-lo era não lutar contra ele.

Um gênio da política.

Não estou exagerando. Estive na África do Sul e vi. Vi a obra de Mandela. Vi como negros e brancos convenceram-se intelectualmente de que tinham de conviver em harmonia, vi que viram como necessitavam uns dos outros.

Mandela fez como Churchill: com o poder do verbo, mobilizou multidões.

O Brasil dividido de hoje bem poderia haurir do exemplo de Mandela e da África do Sul. Mas ainda não cheguei aonde queria chegar. Continuo na segunda.



25 de junho de 2016 | N° 18565
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O ESCASSO TEMPO DO PERDÃO


Alguns morrem fazendo planos, como se até a conclusão dos compromissos assumidos, a demissão deste mundo pudesse ser protelada. Outros se amarguram por acreditarem que foram menos correspondidos no amor do que fizeram por merecer, e reclamam da mais amarga das solidões: a que não tem depois. Ainda há os que antecipam o epílogo mergulhando em depressão profunda, que é a mais perfeita imitação da morte, e os que falam sem parar como se fosse possível reaver os discursos protelados e as declarações de amor negligenciadas por falta de motivação ou oportunidade. São frequentes os que repetem à exaustão as maravilhas que fizeram, como se ninguém percebesse o desespero de alardear o encanto do que poderiam ter sido e não foram.

A variedade de tipos e reações torna o convívio com o paciente terminal um grande desafio para a sensibilidade do médico que descobriu que a sua missão não termina com o diagnóstico da incurabilidade, e se deixa encantar pelas inesgotáveis lições de grandeza, mesquinhez, generosidade, altivez e hipocrisia. Essa salada que chamamos humanismo.

Os pacientes autenticados pela proximidade da morte, despojados de toda a futilidade que só prospera nas relações sociais entre pessoas saudáveis, são os melhores mestres na seleção dos sentimentos que realmente valem a pena resgatar no inventário final. O Osvaldo nunca aceitou respostas evasivas e explicações pela metade. Quando soube que um melanoma que operara havia quatro anos recidivara, desapareceu por duas semanas e, então, voltou para o que chamou de organização de encerramento. Falava do tempo de vida com a objetividade de um empresário bem-sucedido, que lamentava morrer aos 63 anos, mas se não era mais evitável, achava que não fazia sentido choramingar.

Um dia, já bem próximo do fim, entrei no quarto dele e surpreendi a fortaleza soluçando. Antes que lhe perguntasse qualquer coisa, ele explicou: “Acabei de falar com meu irmão mais moço e, nem acredito, consegui lhe pedir perdão. Não passou um dia da minha vida sem que eu tenha pensado nisso, porque a nossa discórdia não fazia sentido. 

Foi uma bobagem, eu não podia ter dito que nossa mãe ia morrer por causa dele. Ninguém provoca câncer nos outros. Ele não sabe que estou morrendo, mas graças a Deus me ouviu e acabamos chorando juntos. Descarreguei um peso. Era hora de consertar o passado para poupar o presente. Ah, e não faça esta cara Dr., porque eu sei que não tenho futuro, mas ele terá. Sei também que não precisávamos ter sofrido tanto, pois este tempo de silêncio já dura 34 anos”.

Não sei que cara terei feito, mas não disse nada. Não ajudaria ele saber o quanto me pareceu injusto que não houvesse mais tempo depois do perdão. As pessoas afeitas a gestos de tamanha grandeza deviam merecer uma prorrogação.


25 de junho de 2016 | N° 18565 
DIANA CORSO

GENTILEZA POÉTICA

O hidrômetro que marca e conta / a água que aqui consumo / é como fumaça que espalha / de um cigarro que não fumo. Foi com esta estrofe, seguida de uma explicação, também em verso, que um morador de Brasília escreveu à Companhia de Saneamento para reclamar de um provável erro na medição de seu consumo de água.

A funcionária incumbida de redigir a resposta, dizendo que os pagamentos indevidos seriam ressarcidos, não conseguiu conter as lágrimas ao ler para os colegas a missiva recebida. Formada em Letras, acabou respondendo-lhe assim: Viemos pelo presente documento / apresentar os resultados apurados / na esperança de que com esse intento / encerremos seus desagrados.

Prestar uma queixa, solicitar um serviço ou informação, costuma ser um pesadelo. Digite número tal, volte ao menu inicial, informe sua senha, seu número, qual o nome do seu pai, anote seu protocolo. Quando conseguimos falar com um humano, ele nos fornecerá outro número, onde a odisseia das opções recomeçará. Escaldada dessas andanças labirínticas, é como se tivesse sido içada da tristeza pela notícia dessa troca de versos entre um cliente e uma funcionária. 

Ela veio no mesmo jornal onde o caos e o cotidiano desrespeito pela vida e pela palavra chegam-nos em grandes manchetes todos os dias. É possível ficar contente com um evento tão pontual? Sim, por ser algo tão alheio às expressões ríspidas, à conduta intolerante e ressentida que tem transformado diálogos em latidos. Sim, pela gentileza das partes envolvidas, mas principalmente pela poesia.

Tomada pelo desejo infantil de ouvir histórias, ou de que me ensinem algo, perco a oportunidade de ler mais poesia. Quando a deixo entrar na minha vida, descubro a cada vez que os poemas parecem traduzir-nos com assombrosa exatidão. Dá vontade de escrever versos nas paredes para olhar-se neles feito espelhos. O poeta é alguém menos leviano com as palavras do que nós, perdulários, que parecemos ter ganho um estoque infinito delas e as tratamos como itens sem valor. 

Cada uma será escolhida a dedo, mas será trocada sem dó. Caso mantida, ele não vacilará em mudar todo o resto para lhe oferecer melhor companhia. Depois de pronto, o verso passará por inúmeras reformas, até produzir os efeitos de concisão, profundidade e musicalidade requeridos pelo perfeccionismo dos poetas.

Levar o bem dizer para uma cena banal, como uma queixa a respeito da conta de água, é resgatar o valor perdido das palavras. Nós sofremos porque elas nos faltam em meio ao excesso. Carecemos de entender-nos porque raramente as escutamos. Falamos muito, falamos alto, escrevemos e lemos mensagens, postagens, documentos, trabalhos, textos, mas elas escorrem sem penetrar. Luiz Carlos Garcia, o cliente, e Aline Santos, a funcionária, tomaram uma atitude que poderia ser revolucionária se a reproduzíssemos: a gentileza poética, a arte de tratar qualquer assunto com a delicadeza que as palavras e seus portadores mereceriam.

quinta-feira, 23 de junho de 2016



22 de junho de 2016 | N° 18562 
MARTHA MEDEIROS

Recuperando o foco

Em Barra Mansa, RJ, um rio divide um bairro em duas partes, mas em apenas um lado há posto de saúde. Os moradores do outro lado precisavam caminhar dois quilômetros para circundar o rio a fim de chegar ao posto, e por isso vinham solicitando à prefeitura a construção de uma pequena ponte. Ela foi orçada em R$ 270 mil e nunca foi feita, então os moradores reuniram doações e em mutirão construíram a ponte eles mesmos – por R$ 5 mil e em oito dias. Os dois quilômetros de caminhada foram encurtados para 24 metros e agora todos vivem melhor.

Se fosse no Japão, o prefeito da cidade daria um tiro na própria cabeça, de vergonha.

Também graças a doações, jovens voluntários da Teto construirão 50 casas populares entre 23 e 28 de julho em comunidades pobres de Campinas. Isso mesmo: em seis dias. Por que o governo leva tanto tempo para entregar um lote habitacional, para consertar uma estrada, para reconstruir uma ciclovia, para terminar uma obra? Por que não há seriedade com questões como aproveitamento de recursos e cumprimento de prazo?

A política brasileira está caindo de podre e em breve, espero, haverá renovação, mas, além de novas lideranças, precisamos de uma nova mentalidade. O provincianismo do Brasil está em focar apenas em grandes feitos a fim de ostentá-los. Isso não é riqueza, e sim estupidez.

Num país rico e elegante pra valer, as pessoas (políticos inclusive) vão para o trabalho de metrô e bicicleta, as crianças estudam em ótimas escolas públicas, todos os membros da família se ocupam do serviço doméstico, as festas não custam o preço de um apartamento, as pessoas envelhecem sem abusar de cirurgias estéticas e arte é de primeira necessidade. Por que não somos esse país rico e elegante? Não é por falta de dinheiro – somos milionários. Dinheiro nunca faltou para roubos, desvios, superfaturamentos.

O problema é que trocamos eficiência por desperdício. Não sabemos focar no que importa de verdade. Valorizamos mais a fantasia (o discurso, a retórica, as aparências) do que a realidade. A gente se ilude com uma “ponte de R$ 270 mil” que nunca sairá do papel em vez de concretizar a humilde ponte de R$ 5 mil que resolve.

Estamos em crise, e uma crise forte, sem prazo pra acabar. É obrigatório cair na real e viabilizar um Brasil onde todos tenham uma casa que não desabe na primeira chuva, onde as escolas sejam lugares lúdicos e estimulantes, onde os caminhões que escoam a safra possam chegar ao destino sem quebrar por causa de um buraco no caminho, onde, em vez de molhar a mão de corruptos, as prefeituras mantenham dinheiro em caixa para pagar policiais, médicos, professores e demais profissionais que fazem uma nação existir como tal.

Todos nós, brasileiros, precisamos recuperar o foco imediatamente e extrair da simplicidade a nossa evolução.

sábado, 18 de junho de 2016


18 de junho de 2016 | N° 18559
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

SENSIBILIDADE INTUITIVA


As relações humanas devem ter um componente de afeto, ou pelo menos se espera que tenham. Claro que a interpelação de um agente penitenciário não pode se equiparar à abordagem de uma assistente social, mas abstraídas as circunstâncias extremadas, as interações de pessoas civilizadas precisam ser ungidas de algum grau de empatia.

Em algumas situações, e a relação médico/paciente é o modelo de exigência neste quesito, há necessidade premente de solenidade. Não se pode esperar prosperidade afetiva de uma relação que foi banalizada no primeiro contato pelo atropelo de uma das partes.

Tenho insistido com isso nas conversas com estudantes e residentes: preparem-se para essa aproximação com o reconhecimento que, na ponta mais vulnerável da conexão, está uma criatura fragilizada pelo sofrimento e com todos os sensores ligados. Por consequência, não pretendam resgatar uma relação que tenha começado mal.

Numa noite dessas, fiz uma conferência sobre A Humanização que Qualifica em um grande colégio e discorri sobre a necessidade que o médico tem de dimensionar com inteligência o conflito de sentimentos que envolve de um lado um profissional cumprindo a sua rotina (e a rotina, como aprendemos, é corrosiva das relações afetivas), e do outro, um paciente assustado com a percepção da sua própria finitude. No final da conferência, fui abordado por dois jovens, na idade da indefinição, aquele tempo que cursa entre o fim da puberdade e a vida pra valer. Havia naquelas caras, limpas e ingênuas, a grande curiosidade de quem está consumido pela ânsia de ser muito, e ainda não ter ideia do quê.

Fiquei encantado com a inteligência e a objetividade da dupla e saí com a certeza de que, quando se decidirem, não importa o que for, serão.

Dias depois, recebi um e-mail da mãe de um deles relatando o impacto que a conferência causara no filho, e contando uma história reveladora: ele aprendera instintivamente a importância da solenidade nas relações humanas, sem que ninguém lhe ensinasse. Com três anos e sete meses, sua pediatra lhe solicitara uma ecografia abdominal. Estava ele deitado, com a barriga exposta, na semiescuridão da sala de exame, à espera do médico, e vigiado à distância pela mãe. 

De repente, entra o doutor, de olho fixo no monitor e, sem dizer palavra, coloca o gel sobre a pele do abdome e começa o exame. Passado um minuto, ele resolveu participar do evento, porque afinal era o dono não só da barriga, mas também das porções que estavam acima e abaixo da área do exame: “Olá, eu sou o Artur!” E então, por iniciativa de uma criança desconfortada com a solidão, a indispensável interação humana, finalmente, entrou em marcha.

Agora, que já incluí o Artur no rol das minhas histórias, fiquei com vontade de requisitá-lo para uma monitoria na faculdade de Medicina.

Os intuitivos, como se sabe, são os melhores didatas.



18 de junho de 2016 | N° 18559 
CARPINEJAR

Alma coletiva


Você pode estar julgando o outro por aquilo que você é. Você perdoa o outro por aquilo que deseja obter, a qualquer custo e não enxerga os contrastes e as diferenças gritantes das personalidades.

Você pensa pelos dois, ama pelos dois, suporta tudo pelos dois.

Acha natural que a sua felicidade será a felicidade de quem ama. Confia piamente na simbiose, na fusão, na complementaridade automática. Entretanto, os seus prazeres e sofrimentos são totalmente imaginários. Nada que crê costuma ser partilhado na prática. Na realidade, amarga um isolamento, amortizado pela ficção romântica.

Não contabiliza as provas objetivamente. Os fatos são contaminados pelas impressões e fantasias pessoais. A ânsia de agradar e a facilidade para encontrar a alegria nas pequenas coisas impedem que tenha discernimento e separe os desejos de cada um.

Você raciocina como casal, porém aquele com quem divide a vida raciocina como solteiro. Você festeja todo ato a dois, como raspar brigadeiro na panela e se agarrar debaixo das cobertas para espantar o frio, diferentemente de seu namorado, completamente imerso em seus interesses.

Jura que vem sendo correspondida porque não cogita a hipótese do ilhamento em suas vontades.

Aproveita o pouco do romance como muito (o importante é a cumplicidade), já quem você namora somente enxerga como esmola (o importante é não ser incomodado).

Compra orquídeas para embelezar a mesa da sala – o espaço precisava mesmo de flor – e a companhia só acredita que gastou dinheiro à toa. Convida ao cinema sob o pretexto divertido de disputar as mãos no saco de pipoca e a companhia só queria ficar no sofá mexendo nas redes sociais. 

Organiza um almoço familiar, cozinha e prepara uma torta com paciência de uma manhã inteira, e a companhia só queria beber com os amigos e ouvir pagode.

Prepara um final de semana idílico na serra, com hospedagem paga e banheira de hidromassagem, e a companhia só queria dormir até o meio-dia.

Em nenhum momento, duvida de que alguém pode não gostar de amar. Mas casar é vocação para pouquíssimos de alma coletiva. É trocar o egoísmo pela gentileza, é renunciar o conforto pela generosidade. É nascer a dois, no ventre do coração, independentemente do que diz a certidão de nascimento.


18 de junho de 2016 | N° 18559 
MARTHA MEDEIROS

Intuição



Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo

Você não sabe explicar. Segundos antes de decidir se deve ou não se intrometer numa conversa, se deve ou não aceitar um convite, se deve ou não reagir, passa por sua cabeça um pensamento rápido que não chega a ser organizado em palavras. Antes de você considerar as opções usando a lógica, é atingido por um lampejo que prevê o desfecho antes mesmo de você analisar a situação. É como se alguém lhe assoprasse no ouvido: não vai funcionar, fique fora disso, não é pra você.

Você escuta essas frases ditas sem voz e vindas de um lugar sem nome. Como chamar essa percepção tão fugaz? Chame de intuição. Todos têm, até os que a desconsideram. Também conhecida por sexto sentido, é algo abstrato que surge do nada e se acomoda no seu íntimo, mesmo sem aplicação imediata.

A intuição não é soberana, dá suas furadas. Mas quando acerta, até assusta.

Não sou de ter muitas, não dou espaço, elas podem me deixar na defensiva, e, sinceramente, não tenho mais tempo a perder com medos infundados. Mas havia uma intuição que andava colada em mim há alguns anos. Uma intuição consistente. Eu não tinha motivo para pensar muito no assunto, ninguém me exigia um posicionamento, mas mesmo assim aquela intuição grudou em mim como se aguardasse uma convocação para qualquer momento. Eu sabia que seria difícil levá-la em consideração se a ocasião surgisse.

Surgiu. Eu precisava dar uma resposta durante um telefonema inesperado, sem chance de pedir cinco minutos para pensar. Estavam todos prontos para o meu sim. O meu sim era dado como certo. Não poderia haver outra resposta, só se eu fosse maluca. E como não sou maluca (não muito), respondi: sim.

Minha intuição ficou uma arara. Sentiu-se desprestigiada. Depois de anos me preparando para aquele momento, anos me dizendo em silêncio “não vá”, “não encare”, “não é pra você”, quando chegou a hora, não dei ouvidos a ela. Ora, se eu a obedecesse, nunca saberia o que viria depois. Ficaria me perguntando se eu não teria sido medrosa, se eu não teria sido uma boba. Por isso, disse sim, fechei os olhos e fui.

Bem feito pra mim.

Minha intuição não foi comigo assistir ao estrago, ficou em casa esperando eu retornar. Quando eu abri a porta de casa, estava ela esquentando minha cama com a sentença que eu não queria ouvir: “avisei”.

Subiu de escalão, minha intuição. Ela me conhece de um jeito que eu não me conheço. É comum a gente formular teorias a respeito de si mesmo e achar que isso basta. Só que teorias não sustentam nossas precariedades. Quando sentimos algum desamparo, vale dar mais atenção aos lampejos fugazes do que às nossas certezas pré-fabricadas.

A intuição nada mais é que um lembrete: respeite o que ainda há de inocência em você.

quarta-feira, 15 de junho de 2016


15 de junho de 2016 | N° 18556 
FÁBIO PRIKLADNICKI

A MEMÓRIA DO PAI


Um dos aspectos mais estranhos de perder um ente querido é que você continua sonhando com ele como se estivesse vivo. No seu inconsciente, ele tem para sempre a mesma idade de quando morreu. Desde então, você lamenta não ter tido a oportunidade de acompanhar seu envelhecimento, essa etapa da vida que aprendemos a renegar.

Estamos acostumados a compartilhar histórias do crescimento e desenvolvimento dos filhos, e com isso revivemos nossa própria infância. É como se experimentássemos, ao mesmo tempo, três idades: a do presente, a do passado projetado nos filhos e a do futuro vislumbrado na vida dos pais. Mas esta terceira não é suficientemente celebrada. Pelo contrário, a etapa final da vida é uma ideia que preferimos não antever. Será que não podemos aprender com essa experiência assim como aprendemos com os filhos?

Sempre tive medo de ver o pai envelhecer. Olhando para trás, considero um medo bobo. Penso no tanto de coisas que mudaram no mundo desde que ele nos deixou, há quase seis anos. A consolidação das redes sociais (será que estaria no Face?), a crise econômica brasileira e os rumos que tomaram as vidas das outras pessoas da família. O que ele diria de tudo isso?

Algum tempo depois de sua morte, uma vizinha perguntou à minha vó se ela gostaria que um médium transcrevesse uma mensagem póstuma. A vó aceitou e guardou a suposta carta do filho com muita emoção. Recusei-me a ler, mas soube que o tal espírito trazia palavras de louvor a Jesus, o que confirmou minha suspeita de que deveriam ter contratado um médium judeu.

Resta-nos o exercício da memória, como fez o escritor polonês Bruno Schulz, que dedicou boa parte de sua curta e brilhante ficção à vida do pai doente, em registros autobiográficos que transitam entre um realismo mítico e o fantástico. Com a prosa de alta voltagem poética que lhe é característica, Schulz erigiu um monumento literário de excepcional dignidade que se contrapõe à decadência mental e física narrada nos textos.

Schulz teria motivos para evitar pensar no pai. Seu fim foi longo e doloroso e deixou a família em uma situação financeira delicada. Mas, pelo contrário, o escritor tem uma fascinação por aquela figura, a qual descreve com riqueza de detalhes tamanha que você não sabe onde termina a memória e onde começa a imaginação. De certa forma, Schulz fez o que todos gostaríamos de ter feito: uma verdadeira obra que retribui, à altura, o que recebeu do pai. Mesmo que isso nunca nos pareça o suficiente.


15 de junho de 2016 | N° 18556 
MARTHA MEDEIROS

O frio vencendo


São exatamente oito e meia de uma manhã siberiana em Porto Alegre – lá fora está 1°C. Um grau que me inspirou a transferir minha aula matinal de pilates para as quatro da tarde e a escrever este texto sobre o inverno, uma estação que para alguns brasileiros é ficção científica, para outros não passa de um pequeno alívio em meio ao calor tropical e para outros, ainda, é motivo para perder a noção do ridículo e calçar três meias, luva, gorro, cinco blusões e um casaco do exército – em casa. 

Uma estação que remete a vinhos, fondue, lareira, romantismo e elegância para quem vive dentro de um cartaz de turismo de Gramado e que para outros é associada à fila de hospital, nebulizador, descongestionante nasal, atchim.

Na dúvida entre comentar o charme da estação mais europeia do ano ou explicar as razões da contagem regressiva feita por quem já vem espirrando desde maio (faltam 99 dias para o início da primavera!), resolvi partir para um terceiro viés: inverno se resume a isso?

Na Flórida, 49 pessoas foram assassinadas à queima-roupa durante uma festa por terem cometido a ousadia de serem gays. Bastou um arrogante armado de ignorância e metralhadora para lembrar que o tal “avanço da civilização” empacou e deu meia-volta. Isso é inverno.

O estupro individual ou coletivo de uma menina, de várias meninas, e de meninos também, os abusos cometidos por trás de paredes vizinhas, dentro de sacristias e escolas, embaixo de nossos narizes, fazendo com que crianças se transformem em adultos com dificuldade de amar e de confiar. Isso é frio de verdade.

Donald Trump ter chegado tão longe. Brrrrrrrr. Me petrifica.

A corrupção, o foro privilegiado, as alianças indecentes feitas para manter o poder, políticos governando para si mesmos, a falta de comprometimento social, as delações canalhas da qual a Justiça se tornou dependente, a ausência de novos líderes, isso é que congela a alma e escurece mais cedo nossos dias.

Quinze graus é verão. Um grau é sopa. Abaixo de zero estão nossas perspectivas.

O que poderia nos aquecer? Solidariedade, tolerância, educação. Três palavras ao vento que, de tão repetidas, já quase perderam o significado. Mas vale teimar um pouco mais. Não é possível que seja tão difícil levar em conta os sentimentos dos outros, segurar uma agressão dentro da boca, compreender que se pode amar a si mesmo sem cair na vaidade de achar que todos os que não são iguais a nós estão equivocados.

Um pouquinho de humildade, menos pretensão, menos afetação, lutar por valores que sejam comunitários, que mobilizem, agreguem, aproximem pessoas. Por aí, quem sabe, a gente extraia algum calor bem antes de a primavera chegar.

sábado, 11 de junho de 2016


11 de junho de 2016 | N° 18553 
MARTHA MEDEIROS

Divagações sobre o amor

Quando a gente diz “eu te amo” para alguém, está sonegando o resto da informação. Não amamos o outro. Amamos o que o outro provoca em nós.

E então veio o julgamento sem dó: Não sei o que ela viu nessa criatura. Pobre da mulher. Não fazia nem 10 minutos que tinha apresentado o novo namorado e bastou se afastar dois passos para que as amigas, em assembleia, rejeitassem sua escolha.

O que ela havia visto naquele sujeito comum, altura mediana, rosto sem personalidade, um cara retraído e sem graça? A resposta não estava nele. Se olhassem para ela, saberiam.

Ela e seus olhos faiscantes, ela e seu sorriso tão largo que escapava por trás das orelhas, ela que parecia estar de sapatilhas dançando O Quebra-Nozes, ela que descobrira como renovar todo o colágeno da pele, ela que pela primeira vez usava um decote profundo. O que importava a retração aparente do sujeito? Estava tudo explicado.

Quando a gente diz “eu te amo” para alguém, está sonegando o resto da informação. “Eu te amo”, assim, resumido, dá a entender que amamos aquela pessoa apenas pelas qualidades que ela tem, mas não é assim que funciona. Quem tem uma coleção de defeitos também é amada, então a lógica acaba de se retirar deste debate. Não amamos o outro. Amamos o que o outro provoca em nós.

Se a declaração fosse completa, diríamos: te amo porque você acabou com a minha soberba, eu que tinha um discurso pronto sobre a superioridade dos solitários. Te amo porque sua entrada na minha vida me fez sentir com 10 anos menos. Te amo porque voltei a acreditar no meu potencial. Te amo porque descobri que posso ser divertida. Te amo porque me deu vontade de praticar esportes e mudar minha alimentação. Te amo porque nunca tinha encontrado alguém que me convencesse a dançar. 

Te amo porque eu jamais teria coragem de colocar um cachorro no meu apartamento não fosse seu atrevimento em me dar um. Te amo porque eu precisava renovar minhas lingeries. Te amo porque pela primeira vez estou pensando em me dar alta na terapia. Te amo porque me sinto desejada. Te amo porque consegui esquecer a minha ex. Te amo porque você me faz batalhar por projetos que eu já tinha desistido. Te amo porque passei a gostar dos meus seios. Te amo porque enfrentei os meus medos. Te amo porque estou reconhecendo outra pessoa no espelho.

Ele? É só um homem gentil, simpático, que trabalha bastante e resmunga bastante também, que tem um pai botafoguense que nunca o perdoou por ser vascaíno e que já viveu dois amores que o deixaram mais preparado para tentar acertar no terceiro.

Ela? É só uma mulher atenciosa, discreta, às vezes um pouco insegura, que ainda sonha em ser alguma coisa além de bibliotecária e que anda cogitando ter um filho para se sentir mais completa.

Amor, pensando bem, é gratidão. Duas pessoas comuns tornando uma a outra especial.


11 de junho de 2016 | N° 18553 
CARPINEJAR

Até a ligação cair

Faço a ronda telefônica com os meus amigos: José Klein, Mário Corso, Voltaire, Everton e Eduardo Nasi. É a ala masculina da fofoca. Todo dia falo com eles antes de começar as atividades mais pesadas do trabalho. Eles são a minha fonte de notícias, ideias de crônicas, não me deixam alienado dos principais acontecimentos noturnos da cidade. Como também efetuam a minha manutenção emocional e dou, em contrapartida, um suporte para os seus amores e dissidências.

Não pulo nenhum deles da rotina matinal e do plantão sentimental. Qualquer homem de bem tem seu bar predileto e seus apóstolos. O compromisso está acertado pelo sangue do destino. Eu escreverei a biografia deles exagerando as suas proezas, eles escreverão o meu necrológio mentindo a meu respeito. Somos leais aos sonhos mais do que aos fatos.

O engraçado é que se a ligação cai ninguém telefona de volta. É uma etiqueta dos machos.

Diferente do tricô do timbre da mulher com as amigas, não há desespero ou mal-estar. Entendemos a fragilidade das operadoras, os vários pontos sem cobertura pelos bairros. Fazemos de conta que acabou o crédito, simples assim. Aceitamos generosamente o inesperado. O que não era para ser não será. Não confundimos a falta de retomada com indiferença e aspereza. Não nos penalizamos com hipóteses fatalistas de assalto e acidente. Não temos aquela paranoia de supor que o outro desligou na cara – coisa que só ocorre no início dos romances. Não cobramos um tchau e um aceno solene.

Eu acho que inclusive gostamos da roleta-russa da voz. É um suspense que acelera o raciocínio e previne a incontinência verbal.

Guardamos uma simpatia por não precisar enrolar com a despedida e sermos educados a ponto de ouvir o que não nos interessa.

Falamos até cair – é o nosso pacto. E vai cair, não há dúvida disso com o congestionamento caótico de linhas e sinais neste mundo.

O que não foi dito repassamos automaticamente para o próximo papo. Pendências não viram tragédias. Homem não sofre com o que ficou inacabado e imperfeito.

Para que insistir? Resumimos o que nos incomoda em 10 minutos, menos ainda. Talvez num grito ou num bah!

Amigo é econômico no afeto, mas sempre pontual na tristeza.

sábado, 4 de junho de 2016


04 de junho de 2016 | N° 18547 
MARTHA MEDEIROS

Depois que o amor acaba


Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo. “Pensando com mais clareza, agora vejo que aquela relação foi a experiência mais fascinante que vivi.” Oi?

Um ano antes, a mulher parecia um trapo encardido, passava chorando pelos cantos, lamentando a má sorte de ter se apaixonado por um Don Juan que só a humilhava e a fazia sofrer, e agora aquela dilaceração toda se transformou na experiência mais fascinante já vivida?

Sim. Qual o espanto?

Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção. Você não faz mais parte daquela nhaca. Está desobrigada de administrar revezes, de procurar soluções para impasses, de fazer parte de um jogo maluco de sedução. Não há mais adoração, esperança, ódio, raiva, desapontamento. E não havendo nada, tampouco há interesse em descredibilizar o outro para tentar manter o que resta da própria dignidade. Não há mais risco. Ninguém mais precisa se salvar. Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.

Então, dali de onde ela estava, de uma distância segura do passado, tudo se transfigurou. O amor não era mais analisado pelo o que havia sido, mas pelo o que agora representava.

O que antes era dilacerante virou uma bela experiência anexada ao currículo. O que antes era gigantesco foi reduzido a um tamanho médio. O que antes era definitivo virou passageiro. O que antes era pra sempre, encontrou um fim sereno.

Dimensionamos nossas emoções de acordo com a força do momento. Acreditamos nas definições que costumamos dar ao que está sendo experimentado, usando com orgulho as palavras “tudo”, “infinito”, “certeza”. Ficamos apalermados pelo vigor da experiência, pelo absoluto das nossas sensações, até que, depois de um longo tempo de crença, perde-se a aposta, o jogo termina e vamos para outra mesa do cassino, onde tudo recomeça.

É quando o passado ganha uma nova cara e novos significados. O que era desespero transfigura-se em infantilidade, o que era perturbador torna-se risível, o que era intenso parece frugal. Você acreditou que era personagem de um melodrama, era assim que enxergava a história de dentro. Pulou para fora e agora só vê a parte amena, só a beleza da sua inocência. Aquela não é mais você, aquilo deixou de ser um tour de force, agora você se dá conta de que, quando se está no epicentro de um acontecimento, tudo parece maior do que é.

Estando em meio ao dilúvio, é inevitável sofrer, emocionar-se, dilacerar-se, abraçar todos os sentimentos inerentes àquele mergulho: não há como antecipar o amanhã, só existe a asfixia do hoje. O consolo é lembrar que é só uma questão de tempo para tudo acabar num leve e agradecido “valeu!”.


04 de junho de 2016 | N° 18547 
CARPINEJAR
Grandes histórias de amor


Amor não é preguiça. Amor é vencer a preguiça. Com filhos ou com esposa.

É trocar a paz pela dedicação. É sair do conforto para atender alguém. É abdicar do calor das cobertas em nome do cuidado, é se antecipar em gentilezas e enfrentar o frio do inverno e dos pés descalços na cozinha.

Quem deseja dormir passando do meio-dia como fosse um eterno adolescente, ficar assistindo a séries ou futebol sem ser incomodado, deixar a bagunça se acumular para a chegada da faxineira, não lavar a louça até não encontrar mais copos e pratos limpos, permaneça solteiro. Não se case, não seja pai. Não gozará do luxo de duas horas de tranquilidade para ler ou boiar com os pensamentos. O intervalo de distração é de três minutos.

Família é perder o controle dos próprios horários. É madrugadão. É o equivalente a trabalhar como vigia ou segurança noite adentro, é assumir a condição de taxista nos momentos vagos.

Quando o filho é bebê, você terá que atender às cólicas, usará o gogó para desfiar as canções de ninar da época da vó e dar colo de um lado para o outro, incessantemente, com os faróis dos carros iluminando as janelas da sala. Quando o filho é criança, é acudir os pesadelos e de repente levar o pequeno para a cama de casal. Quando o filho é adolescente, é esperar o chamado para buscá-lo de carro nas festas.

Não conhecerá trégua. Não conhecerá moleza. O sono vem aos surtos, aos goles, aos poucos, em curvas, não ocorre em linha reta. O alarme do celular é o melhor amigo do homem de família.

Há décadas que não sei o que é me espreguiçar lentamente, com os braços esticados para cima, ronronando, treinando posição de yoga e saudando o sol. Eu acordo de susto, com o coração aos pulos, determinado a cumprir tarefas. Nem penso muito, faço para depois pensar.

Tenho consciência de que amar é nunca mais ser egoísta, é renunciar ao individualismo e ao prazer de estar sozinho.

Foi uma decisão de uma vida feita na maior insignificância. Defini a minha paternidade e o meu casamento durante a segunda noite com a minha mulher. Ela estava com sede e pediu um copo d’água. Poderia fingir que não ouvi, poderia fingir sono profundo, poderia fingir que não era comigo, afinal a temperatura beirava os cinco graus. Mas empurrei o meu corpo para fora da cama, concluindo que ela merecia o meu esforço e que não custava nada oferecer um pouco de ternura.

Não duvide da banalidade. Levantar ou não para buscar o copo de água para a sua namorada é sempre onde começam grandes histórias de amor.



04 de junho de 2016 | N° 18547
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O CLUBE DA BOA INTENÇÃO


A JUSTIÇA DO FAZ DE CONTA TEM MUITO A VER COM A CARA DO NOSSO PAÍS 

Nada define melhor a grandeza de um país do que a eficiência da sua Justiça. Otto von Bismarck, o Chanceler de Ferro, ensinou isto a Sáenz Peña, que visitava a Alemanha no fim do século 19. Querendo saber como era a Argentina, Bismarck lhe fez apenas esta pergunta: “Como é a Justiça no seu país?”. Contam que o presidente argentino teria voltado a Buenos Aires desapontado com a instantaneidade da entrevista, mas precisamos admitir que, em termos de objetividade, essa questão encerra tudo o que interessa saber quando queremos classificar uma nação.

O Brasil, um país muito mais jovem, adolescente ainda em democracia e direitos humanos, tem se esmerado em mostrar um Judiciário atuante, a ponto de, em inúmeras pesquisas recentes, ser rotulado como o mais confiável dos braços da República – o que não deve ser interpretado como sinônimo de excelência, tendo em vista que a comparação é desmerecida pelas trapalhadas do Executivo e a escassez de dignidade média do nosso parlamento.

Entretanto, seguindo a sina nacional de não completar nenhuma tarefa, num culto deprimente ao meio termo, a nossa Justiça tem esbarrado na constrangedora incapacidade de se fazer cumprir.

Não posso generalizar porque não tenho conhecimento de outros setores de atividade, mas na saúde estabeleceu-se a prática do mandado judicial inócuo. Um paciente, sentindo-se fraudado no seu direito de acesso à saúde como dever do Estado, entra com um mandado judicial, que é acolhido por um juiz que, incontinente, determina que se cumpra tal desígnio. A tarefa médica é executada, o paciente tem alta feliz da vida porque fez valer os seus direitos e a instituição hospitalar acaba penalizada por uma amnésia muito conveniente de quem devia pagar. Mais injusto ainda que esse tipo de punição recaia sobre os melhores hospitais, porque ninguém faria um esforço desses para ser atendido em instituições de segunda categoria.

Na área dos transplantes, a judicialização virou rotina: pacientes portadores de convênio descobrem, ao serem encaminhados para a cirurgia, que a Agência Nacional de Saúde Suplementar considera (sabe-se lá por qual critério) que os planos de saúde não precisam pagar transplante de fígado, coração, pulmão ou pâncreas. Em resumo, se o pobre infeliz que pagou plano de saúde a vida toda necessita de um transplante, mas errou na escolha do órgão doente, vai ter de encarar a precariedade do SUS.

Percebendo que se trata de uma óbvia aberração legal, o paciente, sentindo-se prejudicado, entra na Justiça e, como regra, o magistrado, com o senso de racionalidade intacto, ordena que o plano de saúde pague os custos do transplante. Depois de tudo, o hospital se dá conta que a remuneração insuficiente do SUS teria sido uma maravilha, se comparada a um transplante gratuito resultante da negativa do convênio em cumprir o mandado judicial.

Configura-se assim a Justiça do faz de conta, que, convenhamos, tem muito a ver com a cara do país, cuja construção será sempre vista como uma piada enquanto seus valores essenciais de compromisso e dignidade não forem levados a sério. A boa intenção é louvável, mas será inútil se for inconsequente.



04 de junho de 2016 | N° 18547 
L.F. VERISSIMO

O nome da Serpente


Na sua peça The Coast of Utopia (A Costa da Utopia), Tom Stoppard põe na boca de Michael Bakunin um pensamento sobre a queda que condenou o Homem à infelicidade. “Uma vez”, diz Bakunin, “há muito tempo, no começo da História, éramos todos livres. O Homem integrava-se com a natureza e vivia em harmonia com o mundo, e portanto era bom. E então uma serpente entrou neste paraíso”.

Para o anarquista Bakunin, o nome da serpente era “ordem”. Matéria e espírito se separavam. “O Homem não era mais inteiro, mas impelido por ambição, cobiça, ciúme, medo. O conflito tornou-se a condição da sua vida – o indivíduo contra seu vizinho, contra a sociedade, contra si mesmo – e a Idade de Ouro acabou”, segundo Bakunin. A serpente trouxera a desordem. O Homem só poderia criar uma nova Idade de Ouro e tornar-se livre outra vez destruindo o que tinha destruído seu paraíso. A ordem.

Para um socialista, ao contrário, ordem – ou organização social – é o que salva o Homem da sua pior natureza. Evita conflitos e traz a harmonia, portanto não é um bom nome para a serpente. Já para um fascista, só a submissão a uma ideia e a uma autoridade integradoras traz a felicidade, ou a ordem no bom sentido. Como elogio, não como nome de serpente. E para um liberal, se a serpente nos tirou do paraíso mas inaugurou o homem competitivo, então viva ela, seja qual for o seu nome.

Que nome merece a serpente? Acho que um bom nome seria “precisão”. Foi quando desenvolveu o dedão opositor e se tornou capaz de, primeiro, catar pulgas com mais eficiência e eventualmente esgoelar o próximo e fabricar e empunhar instrumentos sem deixá-los cair – enfim, quando se tornou preciso – que o Homem começou a sair do paraíso. Acabou a Idade de Ouro da inabilidade digital, que nos igualava aos outros animais e nos impedia gestos especulativos, como o de segurar um cristal contra o Sol e ficar filosofando sobre a luz decomposta em vez de se integrar com a natureza como um bom bicho.

O dedão opositor está nas origens do arco e flecha, daí para o zíper e as centrais nucleares foi um pulo – no abismo. A nossa queda começou pelo polegar.

Na mesma peça, o Bakunin de Stoppard consola um amigo, desesperado com as seguidas derrotas do seu ideal socialista pelo reacionarismo. “A reação é apenas a ilusão ótica do rio que parece correr para trás, quando o rio corre sempre para o mar, que é a liberdade ilimitada e indivisível!”. Um consolo para desesperados de todas as épocas.



04 de junho de 2016 | N° 18547 
DAVID COIMBRA

Ser Elena ou ser o gato

Eu poderia ser Elena Ferrante. Mas infelizmente não sou. Talvez você seja.

Qualquer um pode ser Elena Ferrante. Ou talvez não.

Porque Elena Ferrante necessariamente há de ter nascido na Itália, com boa chance de sua região situar-se pouco acima do peito do pé da Velha Bota, que é onde fica Nápoles, a provável cidade de Elena Ferrante.

Quer dizer: cerca de 60 milhões de seres humanos podem ser Elena Ferrante. É muita gente. Quem me apresentou Elena Ferrante foi meu fornecedor. Fornecedor de livros, bem entendido.

É o Guilherme, da Beco dos Livros, aí de Porto Alegre. Ele tremulou um exemplar na minha frente e anunciou: – É muito bom!

Aquela exclamação que espetou depois do bom me fez comprar o romance, e não me arrependi.

O título é meio prosaico, A amiga genial, mas a história é contada por quem sabe contar uma história. A autora (ou autor) consegue construir um clima de tensão que faz você avançar páginas adentro quase que sem parar para tomar um gole daquele tinto da Califórnia que adormece na mesinha ao lado.

Falo “autora ou autor” porque ninguém sabe quem ele (ou ela) realmente é. Elena Ferrante, que assina o livro, é pseudônimo. Ela (ou ele) só dá entrevistas por e-mail, por intermediação da editora.

Um mistério. Escrever sob outro nome é uma tentação, porque você fica livre da sua própria personalidade. Não é preciso ser coerente com seu passado ou suas opiniões nem dar explicação. O autor não existe, o que existe é a história.

Eu mesmo escrevo sob pseudônimo, sabia? Um dia você descobrirá aquele outro que sou eu.

O escritor que mais usou outras personalidades para se expressar foi Fernando Pessoa. São famosos os seus chamados “heterônimos”. Ele teve vários, mas três se consagraram: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Fernando Pessoa fez um poema sobre o tema (rimou, dá soneto):

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

Fernando Pessoa era um cara esquisito. Viveu uma vida solitária e morreu sem se expressar na língua que o consagrou, o português, e sim em inglês. Sua última frase foi enigmática:

“I know not what tomorrow will bring”.

Eu não sei o que o amanhã trará.

O amanhã trouxe imortalidade a seu nome e aos seus heterônimos. Fernando Pessoa, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos vivem.

Bastante freudiano, isso de escrever debaixo de outra personalidade. O próprio Freud foi freudiano, neste sentido. Freud escreveu um pequeno livro sobre a estátua de Moisés, de Michelângelo, e não o assinou. Só depois de algum tempo é que anunciou:

“Agora estou pronto para assumir o meu Moisés”.

Por que seria? Só Freud explicaria.

Eu, se pudesse ser outra pessoa, não seria outra pessoa. Seria um gato vadio, desses que andam pelo teto do Mercado Público de Porto Alegre. O gato é o ápice da evolução. Nós, seres humanos, precisamos das outras pessoas para viver e sobreviver. O gato, não. O gato, como dizia Neruda, anda sozinho e sabe o que quer. Neste poema, Ode ao gato, o poeta o define assim:

Oh, fera independente da casa, arrogante vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico e alheio, profundíssimo gato,

polícia secreta dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo...

Alguém quererá ser algo, além disso?

Sim, eu seria um gato. Não um gato de madame, não um gato castrado, não um gato de sofá. Um gato vagabundo, noctívago, suavemente perigoso e violentamente livre, como só um gato pode ser. Como nenhum homem é.



04 de junho de 2016 | N° 18547 
ANTONIO PRATA

RESOLUÇÃO DE ANO VELHO

Na última segunda-feira, eu acordei com um ímpeto digno de primeiro de janeiro, me olhei no espelho e decidi dar dois passos fundamentais rumo à saúde física e mental: parar de fumar e de escrever sobre política. Hoje é sábado é há seis dias não toco no Marlborão nem no Michelzinho. Estou contente.

Fumei um maço, diariamente, dos 16 aos 22 anos. Eu era infeliz – e sabia. Nicotina é a droga mais estúpida que existe. Depois de fumar um cigarro, ninguém se sente mais à vontade pra dançar chá-chá-chá, ninguém deita na cama comendo Fandangos com Leite Moça, ouvindo No woman no cry e pensando que finalmente entendeu o significado da palavra “epifania”. 

O único prazer da nicotina é cessar a aflição causada pela ausência da nicotina. É mais ou menos como ter saudade de um paralelepípedo e precisar tocar no paralelepípedo pra passar a saudade. A diferença é que tocar num paralelepípedo não causa câncer de dedo e fumar causa câncer de tudo, sem falar nos dentes amarelos, no cheiro ruim, no pigarro, na falta de fôlego, olfato, paladar e no risco de cair do 14º andar metendo meio corpo pra fora da janela por causa das crianças.

Como disse, parei de fumar aos 22, mas em algum momento entre o elogio à mandioca e o “sê-lo-ia” resolvi dar um trago, um traguinho só – o que é que tem? –, pra relaxar. Mais ou menos na mesma época, comecei a escrever sobre política. Foi uma derrapada muito parecida com a do cigarro: uma crônica, uma croniquinha só – o que é que tem? –, pra desopilar. Desde então, venho tocando diariamente no paralelepípedo e semanalmente nos velociraptors. O fôlego só piora e o gosto na boca é terrível.

Sobre o segundo vício, podem argumentar que talvez seja importante, na atual conjuntura, apontar o teclado pra Brasília. Não, não é. Quanto mais escrevo sobre a crise, mais a crise se aprofunda. Se meu complexo de inferioridade sofresse de um delírio de grandeza, eu acreditaria até que Deus lê meus textos e faz exatamente o contrário do que eu gostaria. Por alguma razão, no entanto, semana após semana eu sigo fumando e opinando. Até tento esboçar um texto sobre o outono, sobre correr no parque, sobre o Fernando Pessoa ou as incríveis microcervejarias brasileiras, mas é só bater o olho no jornal pra me atolar na culpa. O país se desmilinguindo e você não vai fazer nada, Antonio?

Pois hoje eu não vou, não. Sentei pra escrever a crônica e quando deu aquela vontade de fumar e de falar do Eduardo Cunha eu fui ouvir música. O shuffle escolheu While my guitar gently weeps, dos Beatles. Dei um Google. Sabe de quando é? De 1968. No ano em que mataram Martin Luther King, em que começou a guerra do Vietnã, em que o Brasil balançava de cabeça pra baixo, pendurado num pau de arara, lá no estúdio da Abbey Road George Harrison cantava: “Eu olho pra vocês todos/ Vejo o amor aí, adormecido/ Enquanto a minha guitarra chora de mansinho”.

É, amigos, parei. Hoje é sábado, está sol lá fora – esse sol mansinho, de outono –, vou correr no parque, vou tomar um banho e depois vou ler Fernando Pessoa, bebendo uma Índia Pale Ale da Júpiter. Brindarei à minha saúde, à de vocês e à do George Harrison. Adeus, velociraptors! Esfume-se, paralelepípedo!

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