quarta-feira, 31 de agosto de 2016

 

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
MARTHA MEDEIROS

Guerra de torcidas

Inevitável lembrar o dia da votação do impeachment do Collor. A cada voto favorável à sua saída, eu aplaudia. Era 1992 e eu tinha certeza absoluta de que lado estava. Aliás, não havia divisão, era um processo apartidário. Todos os brasileiros estavam do mesmo lado.

Hoje, o país vive situação similar, mas o país foi rachado em dois.

O discurso de Dilma no Senado, na segunda-feira, foi digno e sua disposição para o interrogatório, louvável. Estava me causando boa impressão, até que vieram as ameaças: se ela fosse deposta, adeus à democracia, seria o fim do país, nenhum contrato assinado teria mais valor.

A gente sabe que não é bem assim. Existe também a alternativa de o país seguir seu curso, fazer ajustes necessários, fortalecer a economia e respirar até a eleição presidencial de 2018. A não ser que a oposição se articule para tirar Temer do governo antes disso, uma ação que chamaríamos de quê? Revanche? Toma lá dá cá? Golpe? Direito constitucional?

Passei então a observar o outro lado do balcão e houve momentos em que concordei com alguns argumentos pró-impeachment, mas não senti a menor vontade de fazer parte daquela turma. Os que julgam Dilma também estão enrolados até o pescoço. Tanta retórica começou a me dar náuseas e percebi que não havia, ali, preocupação com o Brasil, e sim paixão pela política, pelo jogo, pelo poder.

No início da noite, uma câmera flagrou um cumprimento amigável entre Aécio e Dilma. Dava para perceber que sorriam. É isso aí. Tal qual a troca de camisetas entre jogadores ao fim de uma partida de futebol. Todos disputam a posse de bola em campo, mas, no final das contas, é só um esporte. Amanhã um pode estar jogando no time do outro.

É bem provável que a decisão já tenha sido tomada: Dilma saiu ou Dilma ficou. No momento em que escrevo, não sei. Tampouco consigo ter a certeza que tantos têm sobre o que é justo, neste caso, e o que não é. Segundo os comentários deixados nas redes sociais, voltaremos a ser uma ditadura, se ela sair, ou amargaremos uma crise sem fim, se ela ficar. Exagero. Não creio que haverá nem um grande atraso nem um grande avanço, independentemente do resultado. Então torço, antes de tudo, para que vença a lei.

Transformação, pra valer, virá com a continuidade do trabalho da Lava-Jato. Não se pode parar de punir quem roubou, seja de que partido for – começando por Eduardo Cunha. É a corrupção que tem que sofrer um impeachment colossal a fim de abrir caminho para uma renovação no nosso modo de fazer política. Só então evoluiremos, trocando gatunos por pessoas realmente comprometidas e mantendo dinheiro em caixa para investir num projeto de país que nos una de novo.

terça-feira, 30 de agosto de 2016



30 de agosto de 2016 | N° 18621 
CARPINEJAR

Mãezinha por toda a vida


Valorize a sua mãe. Será a única a visitá-lo no presídio, mais ninguém. A sua mulher, os seus filhos, o seu pai e os seus irmãos podem e não podem comparecer na sala de espera, depende do jeito como viveu e amou, depende do que fez antes.

Já a mãe dispensa pré-requisitos. Não exige condicional nenhuma: ela irá visitá-lo com certeza, será a primeira da fila, a última a sair, não importa o que aconteça, se tem razão ou está absolutamente errado, se cometeu o pior dos crimes ou o menor dos males, se é um monstro ou um tolo, se foi preso pelo colarinho branco ou por mão grande.

Mãe não julga. Não sai de perto. Não escolhe o lado. Mãe será a única que jamais o abandonará. Estará defendendo-o quando perder o crédito com o banco e a credibilidade com os advogados, estará preparando a sua comida predileta e levando numa marmita qualquer que seja o inferno.

Portanto, cuide de sua mãe. Ela será a única que não o demitirá com o tempo. Só existe uma pessoa fiel e leal no mundo, por maiores que sejam as divergências e a distância cultural entre vocês.

Aproveite a velhice de sua mãe, leve-a para passear semanalmente, convide para um cinema ocasionalmente, busque-a em casa para caminhar e tomar sol no parque, dê um presente fora de hora, compre um chocolate de exceção da dieta.

Divida os seus dias na bonança, pois somente ela estará com você na pobreza e na desgraça, na adversidade e na doença, mais ninguém.

Só ela rezará por você quando igreja nenhuma acreditar mais em sua salvação. Só ela manterá a confiança quando não encontrar mais padre e pastor dispostos a recolher sua alma. Só ela ouvirá sua versão até o fim quando não restar mais nenhum ouvido crente em sua inocência. Só ela cumprirá as promessas e os pactos.

Que perdoe o meu sacrilégio, mas bênção de mãe vale mais do que a de papa, mais do que a de anjo, mais do que a de santo. Mãe não desiste diante de um milagre, começa a acreditar porque é impossível.

Mãe tem um ventre que não cicatriza inteiramente, tem um coração que jamais despeja, tem uma fé que não se abala e jamais fecha por completo o quarto da infância.

Ofereça carinho e amparo a sua mãe enquanto desfruta de condições, enquanto é fácil, não a abandone ao acaso e à sorte, preserve a sua derradeira amizade, cultive a sua definitiva confidência.

Mãe é a última fronteira do amor.

domingo, 28 de agosto de 2016

 


27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?



As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.
 


27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?



As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.


27 de agosto de 2016 | N° 18619 
CARPINEJAR

Até Tóquio

Nunca subestime o poder de argumentação.

Se conversar não convence, pelo menos cansa o outro lado. O outro lado concordará comigo mais para dormir de uma vez por todas do que porque decidiu me apoiar.

Não me interessa ganhar uma discussão, só não quero perdê-la.

Quando estou errado, não deixo de defender os meus argumentos. Posso sofrer uma goleada, mas não desisto de buscar o gol de honra.

Jamais me entrego, jamais entrego os meus amigos. Amizade é a minha máfia. Não confunda o egoísmo com lealdade, é uma questão de preservação pessoal. Caso denunciar os amigos, sacrificarei os futuros álibis.

Homem ilhado é homem vulnerável.

Nego até depois do fim. Não duvido de que a verdade não fique com compaixão da minha forjada coerência. Não tremo de raiva, não grito, não altero o tom de voz. Não consulto o relógio para indicar ansiedade. Olho nos olhos para exalar confiança.

Nenhum mal é definitivo. O importante é não cair nocauteado pela confissão e permitir que o resultado seja fruto da subjetividade dos jurados.

Se você errar o nome da mulher, por exemplo, ainda há conserto. Mesmo que seja na cama. Confie em mim. Aliás, confie em si.

É apenas elogiar o ato falho. Criar um manifesto em defesa do ato falho. Inverter a situação. Nada melhor do que uma torção psicanalítica para evitar fraturas amorosas.

– Eu não sou Priscila. Priscila é o nome de sua ex! – resmunga a esposa, já chorando.

– Eu lhe chamei de Priscila? Que bom!

– Que bom?

– Que bom, amor. Eu estava esperando este momento.

– Tá de sacanagem comigo, troca meu nome no meio do sexo e acha isso normal? Você é um doente! Um doente!

– Não, agora é que estou curado. Não preciso mais cuidar do que falo. Vivia me censurando, me inibindo, com medo de lhe magoar. O ato falho prova que tenho confiança em você, que me permito errar e não lhe acho mais fraca, mais tola, mais bobinha, que você amadureceu para mim e demonstra condições de segurar a barra nos momentos difíceis.

– Você vem me enxergando diferente?

– Sim, amor, muito mais forte. Que orgulho de você. Eu a admiro bem mais hoje.

– Mesmo?

– E também prova que não estou mais me defendendo ou pensando naquilo que preciso dizer. Não me controlo na sua frente. Eu me soltei, eu me libertei do passado, posso amar como nunca. O ato falho é um exorcismo, não devo mais nada para Priscila.

– Mas, amor, já estamos juntos há quatro anos?

– Pois é, amor, o ato falho costuma acontecer a cada quatro anos, como a Olimpíada.

– Tudo bem, dessa vez passa, mas não haverá perdão para uma próxima.

terça-feira, 23 de agosto de 2016


23 de agosto de 2016 | N° 18615 
CARPINEJAR


Saideira da cerveja ou do batom?

Não sei quem mente mais: o homem dizendo que está voltando ou a mulher avisando que está saindo? A saideira da cerveja ou a do batom?

O homem é uma criança com os horários. Sua dificuldade de relacionamento é antes com a verdade. Não teria nenhum problema em permanecer na mesa conversando e bebendo com os amigos. Sua mulher não demonstrou nenhuma insatisfação ao longe. A questão é que ele inventa de ser melhor do que realmente é, antecipar um bom comportamento e manda mensagens falando que já está a caminho de casa quando está a caminho de uma nova loira no copo. Incrimina a si mesmo de graça.

Talvez seja um recalque infantil, ele se vê culpado por permanecer na rua e confunde a esposa com sua mãezinha no passado.

Depois da primeira mentira, não há como reaver a pureza. Ele vai atualizando o seu fictício retorno ao lar, com um delay de uma hora.

– Estou me despedindo dos amigos.

– Estou no carro. – Estou no meio do caminho. – Estou quase chegando.

– Estou subindo. – Estou na porta.

Nessa enrolação sem fim, pode mandar uma mensagem avisando que está na cama também, porque ela tratou de ir embora de tanto esperar.

Homem, quando exagera com detalhes, indica que vem aprontando. Nunca manda um WhatsApp para nada e de repente faz boletim minuto a minuto? É óbvio que cometeu alguma bobagem. Jamais dá satisfação espontaneamente, para começar a se explicar de uma hora para outra, é que perdeu o domínio dos fatos.

E não adianta alegar engarrafamento (é madrugada!) ou lamentar que foi pego numa blitz (com notícia nas redes sociais). Mais fácil se ele tivesse uma bolsa para lamentar que não ouviu o celular.

Da mesma forma, a mulher se arrumando é uma boataria. Ela não precisava anunciar o tempo exato de sua preparação, porém morde a língua e congela o cronômetro: só 10 minutinhos.

Em 10 minutinhos, ela ainda toma banho. São 10 minutinhos intermináveis. Ela passa correndo nua de toalha na cabeça para dar uma falsa noção de pressa. Toda mulher faz isso quando está atrasada. Cruza a frente da televisão enquanto o homem espera.

Ela descreve suas ações com uma única frase “agora é rapidinho, só falta...”

Só falta secar os cabelos. Só falta escolher o vestido. Só falta alisar os cabelos. Só falta se maquiar.

Só falta achar o maldito sapato que combina com aquele vestido, senão ela terá que começar tudo de novo.

Você levanta diante das várias insinuações de que finalmente vai sair, segura a maçaneta, abre a porta, cumprimenta o vizinho da porta da frente e volta para dentro. Mulher é uma permanente ameaça de bomba. Obriga o homem a evacuar o prédio sempre com seus alarmes falsos.

Não sou capaz de definir quem mente mais. O que sei da vida é que a mulher deveria se arrumar enquanto o homem volta do bar.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016



22 de agosto de 2016 | N° 18614
EDITORIAL

OURO EM AUTOESTIMA

Os brasileiros conquistaram nestes Jogos um valor mais precioso do que as medalhas dos vencedores: a confiança de que somos capazes de reconstruir um país digno para todos.

Se os sentimentos dos brasileiros em relação aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro fossem expressos na simbologia do pódio, poderíamos nos autoconceder a medalha de bronze em questões que não chegaram a comprometer o evento, prata em organização e um ouro inquestionável em autoestima. 

O Brasil sai dessa experiência olímpica bem melhor do que entrou e muito acima das expectativas internacionais, que oscilaram do desastre preanunciado para o sucesso inequívoco na medida em que a competição avançou. Ao final, ficou a sensação de dever cumprido e o orgulho de constatar que somos, sim, capazes de fazer bem as coisas e que podemos até mesmo transferir o êxito da experiência olímpica para áreas essenciais ao desenvolvimento do país.

O público brasileiro se comportou muito bem, superando com alegria, hospitalidade e espírito festivo indelicadezas isoladas, como a manifestação infeliz do prefeito da cidade sobre as reclamações dos australianos ou mesmo as vaias inoportunas para o atleta francês que competia com o brasileiro no salto com vara. Para compensar, a torcida inteira do Maracanã aplaudiu o time alemão na entrega das medalhas do futebol – exemplo claro de reconhecimento, aprendizado e adaptação ao espírito olímpico.

Em relação ao planejamento e à organização da Olimpíada, beliscamos o ouro. Mesmo que algumas acomodações da Vila Olímpica tenham sido entregues sem estarem completamente concluídas (daí a reclamação dos australianos) e que tenha havido filas e falta de alimentos na largada, todos os problemas foram superados rapidamente. Tudo funcionou: segurança, transporte, áreas de lazer, acomodações para os atletas, estádios confortáveis e informações aos visitantes. O Rio construiu um Parque Olímpico tão bom quanto os demais, ampliou a linha do metrô, implantou o VLT e os BRTs, urbanizou a área do Engenhão, revitalizou o porto e deixa uma infraestrutura qualificada para uso dos cariocas.

Encerrado o evento, sem grandes incidentes e com o reconhecimento da mídia internacional, fica como maior legado a recuperação da autoestima do povo brasileiro, abalada por conta da crise política e econômica, da corrupção e do desemprego. Evidentemente, o sucesso dos Jogos Olímpicos não resolve tais problemas. Mas comprova que os brasileiros podem aproveitar o conhecimento adquirido para planejar e executar um novo país. Podem aproveitar o exemplo do esporte, que transforma pessoas humildes em grandes campeões, como evidenciaram muitos dos nossos medalhistas, para enfrentar mazelas crônicas como a violência, o tráfico de drogas, as deficiências de educação, saúde e segurança.

Com esforço, criatividade, trabalho coletivo e tenacidade, os brasileiros conquistaram nestes Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro um valor mais precioso do que as medalhas dos vencedores: a confiança de que somos capazes de reconstruir um país digno para todos.



22 de agosto de 2016 | N° 18614
DAVID COIMBRA


A VAIA QUE LAVA

Nunca ouvi vaia igual. Vi Ronaldinho ser vaiado pelos gremistas quando marcou um gol, porque antes traíra o Grêmio. Vi o imponente Estádio Olímpico de Berlim estremecer com a vaia ao juiz que expulsou Zidane na final da Copa de 2006. Vi Lula ser vaiado no mesmo Maracanã, na abertura do Pan, em 2007. Mas nunca tinha visto ou sentido algo semelhante ao que se deu no sábado passado.

Durante cinco minutos, o Maracanã vaiou. E, durante cinco minutos, a Alemanha jogou. Era quase inacreditável, mas os jovens jogadores alemães não se deixaram perturbar por aquela vaia que desabava sobre eles como o piano que cai do oitavo andar. Continuaram trocando passes com competência germânica, chegaram à área do Brasil e por uma canela de zagueiro não fizeram o gol.

Isso, talvez, desestimulasse a torcida brasileira. Mas não. Os torcedores continuaram apupando com toda a gana, sem desistir, sem arrefecer, sem diminuir o volume do berro.

É possível que os alemães não tenham se incomodado com a vaia porque a compreenderam: aquela não era uma vaia “negativa”. Não era uma vaia de censura, como em geral as vaias são. Era uma vaia “positiva”, de apoio à Seleção.

O público se manifestava porque estava tentando ajudar. Cada torcedor fazia força para empurrar a bola com a voz. Porque existia um sentimento conjunto permeando os brasileiros que estavam no Maracanã e possivelmente todos os outros que assistiam ao jogo pela TV: era preciso vencer aquele jogo. Porque era mais do que um jogo; era um símbolo.

Até os anos 1990, nós achávamos que o Brasil não tinha jeito mesmo. Era inflação, era ditadura, era desemprego e, para arrematar, era uma Seleção que havia mais de 20 anos não ganhava uma Copa. Aos poucos, porém, conseguimos restabelecer a democracia, vencemos a inflação, o país começou a crescer e até a Copa nós conquistamos. O Brasil, enfim, era um Brasil novo.

Tudo estava dando certo e, de repente, tudo deu errado.

Em poucos anos, com a velocidade da peste, o Brasil, simplesmente, fracassou. E o signo desse fracasso foi o revés na Copa do Mundo brasileira: os 7 a 1 para a Alemanha.

Dois anos depois, cá estávamos nós outra vez. Nesses dois anos, o Brasil purgou. O Brasil sofreu. Agora, se não eram exatamente os mesmos Brasil e Alemanha que se enfrentavam, ainda eram Brasil e Alemanha. E no Maracanã. Não poderia haver arena melhor para essa final. O Maracanã do Maracanazo, o Maracanã de Pelé e Garrincha, o Maracanã da bela cerimônia de abertura da Olimpíada e, também, o Maracanã que vaia.

Pois o Maracanã vaiou, só que, desta vez, não vaiou contra: vaiou para jogar junto. O Brasil tinha de vencer aquela decisão, sentiam todos no estádio. Tinha. Para mostrar aos brasileiros que o pior já passou e que é possível ver o sol nascendo no horizonte.

Por tudo isso, a festa da vitória no Maracanã foi uma festa de desabafo. De alívio. O Brasil se depurou debaixo dos braços abertos do Cristo Redentor. Saiu de medalha dourada pendurada no pescoço. Sentindo-se um Brasil novo. De novo.


domingo, 21 de agosto de 2016



Eu sou lúcida na minha loucura,
Permanente na minha inconstância, inquieta
Na minha comodidade… 

Amo mais do que posso
E, por medo, sempre menos do que sou capaz…
Quando me entrego, me atiro 
e quando recuo não volto mais.
***






Um doce adormecer pra você...
.

Ao sentires aflição ou uma espécie de abandono, 
não deixes que a depressão tome conta de teu 
espírito;

mas lembra que bem perto de ti está o 
Deus das consolações com Jesus que te amou 
tanto, a ponto de morrer por ti, e que te olha 
com ternura e paterna expressão de amor;

perto 
de ti está o Espírito Santo, o verdadeiro consolador...
Com estes pensamentos expresso o meu desejo 
ardente de que teu coração se sinta consolado.





Uma noite de muita Paz pra você.

.


Muito amor

Encanto-me sim com os
convites do amor.
Imagino a fonte inesgotável da
entrega de sentimentos inteiros,
intensos, absorvidos com a alma...

Dispenso o pessimismo de que algo
pode não dar certo.
Se a questão é dar tempo ao
tempo para a felicidade ser plena,
que assim seja para o bem do
coração.(E de quem ele ama).

O que importa na verdade, é que tudo
de ternura, de paz e aconchego,
permaneça fiel a emoção de amar...
Faça sombra ou Sol.
Só não me quero vazia da essência
que pulsa a vida...
Amor, muito amor...




Vestir consciente

Roupas feitas para durar, com algodão orgânico e modo artesanal de produção. Na Paraíba tem!

O fazer manual, ambientalmente correto e socialmente justo norteia o chamado slow fashion, linha de trabalho da paraibana Francisca Vieira, CEO e designer da marca de roupas e acessórios sustentáveis Natural Cotton Color, a primeira marca nacional a expor na Maison D’Exceptions, em Paris. 

A empresa utiliza algodão colorido orgânico cultivado em sistema de agricultura familiar na Paraíba, com o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Emprapa). A matéria-prima, que vai do bege ao marrom graças ao cruzamento do algodão selvagem com variações da mesma planta, já nasce colorida. 

“Isso gera economia de 87,5% de água no processo de acabamento da malha em comparação com os tecidos coloridos arti ficialmente”, explica Francisca, que insere nas coleções rendas, bordados, crochê, entre outras técnicas feitas à mão. O gesto bene ficia cerca de 450 colaboradores (entre tecelagem, artesanato e confecção). É o que você acompanha na entrevista a seguir:

O que diferencia o slow fashion da indústria tradicional?

As peças são atemporais, resistem ao tempo por serem clássicas ou de qualidade superior. Trata-se do resgate do velho hábito de comprar bons tecidos e pedir para a costureira do bairro confeccionar peças sob medida. 

Como surgiu a sua moda com pegada sustentável?

Há dez anos os produtos chineses invadiram o Brasil. E, como as grandes marcas nacionais dominavam o mercado, revolvi migrar da moda street wear tradicional para a vertente sustentável mirando a exportação (lá fora ainda há uma maior valorização do produto orgânico e do design associado ao artesanato). Isso foi em 2006. No ano seguinte já começava a participar de feiras internacionais. 

O que você sente ao entregar seu produto?

A sensação de dever cumprido com o ser humano, com o meio ambiente e com a vida. Faço moda com amor e dedicação a m de garantir a sustentabilidade de todo o processo. Os clientes vibram.

sábado, 20 de agosto de 2016



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
MARTHA MEDEIROS

Vida dura comparada com a de quem?

Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza


Vamos supor que a mesa da sua cozinha tenha sido atacada por cupins, que você esteja de relações cortadas com sua mãe, que venha sofrendo uma dor-de-cotovelo daquelas, que tenha engordado durante o inverno, que esteja estremecida com uma amiga com posição política oposta à sua, que tenham batido no seu carro estacionado e não deixaram nem um bilhete no para-brisa. Continue supondo: fez as contas e não vai dar para viajar no fim do ano, seu filho admitiu que fuma maconha, e seu patrão encasquetou que você está fazendo corpo mole no trabalho, mas a única coisa mole é seu tríceps.

Sem falar que anda frio, que sair à noite anda perigoso e você andou se estressando com comentários deixados nas redes sociais. O peixe que comeu no almoço estava estragado, e sua prima perdeu o livro que você emprestou. Convidaram você para um casamento, e você não tem roupa. Um maluco caçando pokémons pisou em cima do seu yorkshire. Será porque é agosto?

Pode nada disso estar acontecendo com você, mas certamente você tem sua lista de queixas. Todos nós temos. Mas queixas comparadas com o quê?

Passei uma tarde na Kinder, uma entidade que reposiciona nossos valores. Há mais de 25 anos, oferece educação especial e reabilitação a 300 crianças e adolescentes carentes com sérios comprometimentos neurológicos e físicos. Emprega cerca de 50 profissionais, entre pedagogos, fisioterapeutas, educadores. Mantém uma sede ampla, limpa e bem equipada – tudo mantido com doações privadas e repasses públicos. 

O que acontece lá dentro é um milagre. Cada funcionário trabalha com um baita sorriso no rosto, como se estivesse na Disney. Atendem meninos e meninas com deficiências de moderadas a graves (não há caso leve por lá) e se sentem orgulhosos e plenamente gratificados por fazer diferença na vida de quem nasceu em total desvantagem em relação a nós. Desvantagens como não conseguir falar, não conseguir ficar em pé sozinho, não ter articulação motora.

Quem começou tudo isso foi, de certa forma, uma refugiada. Barbara Fischinger chegou novinha aqui no sul, vinda da Alemanha, e não poupou esforços até realizar seu sonho de viabilizar um projeto de assistência aos que têm comprometimentos múltiplos. O que ela fez e ainda faz é de uma importância que até nos deixa acanhados, nós que nos julgamos especiais sei lá por quê. 

Especiais são aqueles que se dedicam a projetos de inclusão social e o fazem com amor e entrega ilimitada. A nós, resta colaborar. Podendo, entre no site kinder.org.br. Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Vamos dar uma mão para que esse pessoal prossiga com o que começou. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza.



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
CARPINEJAR



Solidão não é estar sozinho, mas é não conseguir ficar sozinho, não se suportar sozinho.

Assim como a solidão não tem conexão com o deserto e o isolamento. Pode acontecer casado, acompanhado, cheio de gente ao lado.

Solidão é uma insuficiência que cresce: é a infinita capacidade de piorar o mundo para melhorar as reclamações.

Solidão é não encontrar ânimo tanto para acordar quanto para dormir, é quando o desespero desemboca em angústia.

Solidão é guerrear com a imaginação, lutar com a memória, combater os pensamentos. É se posicionar contra o perdão.

Solidão é uma saudade de si.

Solidão é rir sem vontade mais do que ter vontade de chorar.

Solidão é parar de achar graça quando as coisas dão errado.

Solidão é não ser compreendido. É explicar o que machucou e não receber o curativo da atenção.

Solidão é ser desacreditado sempre que se conta a verdade. É revelar uma urgência e ser menosprezado. É expor uma necessidade e não ser levado a sério.

Solidão é a incomunicabilidade. É conviver com alguém e não ter como falar o que incomoda, é perder o ritmo da confissão, é não saber mais como começar uma conversa.

Solidão é ser assaltado várias vezes pela mesma tristeza. É não resolver nunca o problema, é aceitar a falta de solução.

Solidão é jamais encerrar as mágoas, adiar a despedida para fingir que a relação não acabou.

Solidão é não terminar mais nenhum livro e ouvir uma única música ininterruptamente.

Solidão é forjar respostas para não enfrentar as perguntas.

Solidão é chegar muito atrasado na emoção. É um desabafo feito exclusivamente de soluços.

Solidão é ir substituindo a vida por mentiras, é ir substituindo o compromisso pelas desculpas.

Solidão é assumir a culpa por aquilo que não aconteceu e, ironicamente, fugir da responsabilidade por tudo aquilo que aconteceu.

Solidão é ser desajeitado para amar e ser incompetente para odiar.

Solidão é quando o silêncio vira fardo.

Solidão não é o vazio, é ocupar o coração pela pessoa errada.

Solidão é manter um quarto infantil para um filho adulto.

Solidão é lembrar o aniversário um dia depois.

Solidão é um asilo para crianças, um orfanato para velhos.

Solidão é desinteressar-se pelas palavras e, em seguida, desinteressar-se pelo corpo.

Solidão não é ausência de sexo, é ausência de prazer.

Solidão é extraviar o contato com a família e não ter a humildade de reatar.

Solidão é desaparecer para os amigos durante a alegria e depois ver os amigos desaparecendo nos momentos da tristeza.

Solidão é pagar mesada aos defeitos e salário para as dores e não sobrar nada para agradecer aos céus.

Solidão é enjoar de tudo o que antes lhe inspirava, é quando a felicidade transforma-se em tédio.

Solidão é rastejar com asas, não dispor da concentração mínima para recuperar o que era importante.

Solidão é não ser mais solidário consigo.

Solidão é recordar os bons momentos somente para se torturar.

Solidão é inventar doenças e morrer de desgosto pelo excesso de saúde.

Solidão é se sentir só ainda desejando estar só.


20 de agosto de 2016 | N° 18613
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

SAUDADE DE NÃO TER MEDO


Uma das maiores vantagens do magistério é manter uma parceria constante com o tempo presente, no jeito de pensar e de sentir. A proximidade com a juventude mantém conectados os sensores da contemporaneidade e não permite que fiquemos demasiado nostálgicos. Há alguns anos, pressionado pelo comportamento de colegas saudosistas, me prometi que pararia se eventualmente sentisse vontade insistente de me referir ao tempo ido como “o meu tempo”, porque nunca aceitei a ideia de me dissociar do tempo presente e trotar disfarçando que estava vivo. Não enquanto pudesse seguir fazendo escolhas.

Tudo bem, não podemos parar a roda implacável da vida, mas não dá para ignorar que, apesar das evidentes conquistas da modernidade, subtraíram-nos outras tantas que, se pudéssemos, como lamentou Fernando Pessoa, ter trazido o passado guardado no bolso da algibeira, seria uma maravilha. Muitas dessas perdas se dissiparam na distância que esmaga a memória e constrói o esquecimento. Como a lembrança arquivada pode ser falsa, a única maneira segura de acompanharmos a mudança é ter uma referência factual que permita comparações.

Se tivesse que elencar, a primeira grande perda seria a falta do medo, que é, para quem viveu em outra era, a maior mutiladora da nossa atual tão comprometida qualidade de vida.

Assistindo à instalação de câmeras que reforçarão a segurança já garantida por muros altos, cercas elétricas e cães de guarda, foi inevitável lembrar da época em que esses cuidados não faziam o menor sentido. Não tínhamos medo de nada e, por não ter, nem podíamos imaginar que, no futuro, oferecer segurança seria uma profissão ascendente e lucrativa.

Completado o curso ginasial em Vacaria (era assim que se chamava), tinha chegado a hora de desbravar o mundo, e o primeiro passo era a prova de suficiência para o Colégio Rosário em Porto Alegre. A expedição pioneira colocou dois adolescentes num ônibus que entrou na cidade pela Farrapos, inesquecível por ter sido a primeira avenida engarrafada das nossas vidas. Era um fim de tarde, encontramos um hotel a duas quadras da Rodoviária e nos instalamos. O pernoite custava 650, mas não tenho a menor ideia de qual era a moeda da ocasião.

No dia seguinte, meu parceiro de aventura, de uma família mais pobre, comentou que a diária estava muito cara e que a duas quadras dali havia um hotelzinho simpático, por apenas 180 daquela tal moeda. Bagagem a tiracolo, lá fomos nós, para as três noites, pagas adiantado, enquanto ocupávamos os dias em provas de avaliação no colégio. Na minha inocência de adolescente interiorano, demorei anos para entender por que as pessoas gemiam tanto naquele hotel. Atualmente, é temerário passar naquela quadra ao meio-dia mas, há 50 anos, fomos hóspedes frajolas de um prostíbulo e não sofremos nenhuma ameaça.

Vendo retrospectivamente, para que aquela estadia fosse perfeita bastaria que já soubéssemos, naquela época, que se podia gemer por outras razões que não fosse dor.



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
DIANA CORSO

O PREÇO DE PARTIR


A globalização trouxe a facilidade de viver em qualquer lugar. Os jovens, em algum momento, acabam pensando seriamente em partir – é claro, se tiverem facilidades econômicas e formação para tanto. Mesmo os mais velhos ficam namorando o aeroporto como saída para o Brasil. Abastados emigram para Miami, estudiosos para a Europa. Entendo como é difícil, quando se tem alternativa, conformar-se à crueza da nossa violência, associada à pobreza da nossa educação. Porém, posso avisar: ser estrangeiro é doloroso, nunca nos sentimos plenos quando temos que nos expressar, pelo resto da vida, em uma língua que adquirimos depois de crescidos.

Quando falo, não se nota que sou estrangeira. Nasci, passei meus primeiros anos e me alfabetizei no Uruguai, cheguei aqui aos seis. Línguas aprendidas na infância entram fácil, por isso falo igual aos nativos. Mas se, para os de fora, minha condição estrangeira é imperceptível, o mesmo não ocorre por dentro. Ainda conto e praguejo em espanhol.

A língua mãe nunca sai de nós, reservando para si uma margem de emoções que só conseguimos sentir nela, assim como uma capacidade de expressão que também não a transcende. Recentemente, em um sarau literário, me propus a ler um texto em espanhol. Claro, era Mario Benedetti, meu conterrâneo, cuja prosa é um convite à naturalidade. 

Porém, só isso não explica a emoção que senti ao ouvir minha própria voz interpretando-o com surpreendentes entonação e capacidade dramática. Não recordo de ter jamais me expressado assim em português, minha língua de adoção. O mesmo ocorre com a capacidade de escuta: tenho algumas dificuldades com sotaques em português, custo a entender os filmes brasileiros sem legenda, em Portugal me sentia quase como na Alemanha.

O cérebro das crianças não resiste tanto à entrada do novo e elas deixam-se levar pela música de cada idioma. Quando entram em contato com uma língua antes da adolescência, fazem como os bebês ao aprender a falar: imitam o som, apesar de ainda não lhe dominarem as palavras, e depois vão preenchendo aquela melodia com uma letra. Uma língua será tanto mais íntima quanto mais fizer parte da nossa história pessoal, especialmente se a escutarmos falada por pessoas que marcaram nossa identidade.

Na cerimônia de abertura da Olimpíada, fiquei, como a maior parte dos brasileiros, tocada ao escutar nosso hino executado por Paulinho da Viola. Esse sentimento nutriu-se das tantas vezes que hasteamos a bandeira na escola estadual da minha infância. Crianças são esponjosas, não somente à aquisição da língua, mas também da cultura.

É claro que adultos podem chegar a falar muito bem, quase sem sotaque, e também desenvolver grande empatia com o país que os tiver recebido. Podem amar o novo lugar e sentir-se satisfeitos com a escolha de partir que fizeram. Porém, cabe avisar algo que só se sabe quando fala-se uma língua e pensa-se em outra: ser estrangeiro é nunca sentir-se totalmente em casa.

O agravante é que, depois de ter ido embora e adaptar-se realmente ao novo lar, o antigo também deixa de ser familiar. Ao voltar, as memórias acolhem, mas o presente, as novas realidades do lugar, suas gírias, expressões e histórias já não nos são familiares. Países, cidades, bairros e pessoas não ficam parados no tempo à nossa espera. A condenação que pesa sobre quem vai embora é a de tornar-se uma espécie de cigano. 

Podemos acampar e dar jeitos de viver bem em muitos lugares, mas ser estrangeiro é uma condição de excentricidade sem volta. O aeroporto pode até ser uma boa saída, mas é preciso acrescentar à bagagem a disposição para viver ao som de uma música que nunca será a nossa. Ser estrangeiro é carregar em si os restos de um exílio incurável.


20 de agosto de 2016 | N° 18613 
L.F. VERISSIMO

E/I

– Iminência... – Você quer dizer “eminência”.

– O quê? – Você disse “iminência”. O certo é “eminência”.

– Perdão, senhor. Sou um servo, um réptil asqueroso, um nada. Uma sujeira no seu sapato de cetim. Mas sei o que digo. E eu quis dizer “iminência”.

– Mas está errado! Nossa vontade não altera a correção gramatical. O tratamento certo de um rei é “eminência”.

– Não duvido da sua eminência, senhor, mas o senhor também é iminente. Uma iminência eminente. Ou uma eminência iminente.

– Em que sentido?

– No sentido filosófico.

– Você tem dois minutos para se explicar, antes que eu o mande para o calabouço, onde vão os bobos insolentes.

– Somos todos iminentes, senhor. Vivemos num eterno devir, sempre às vésperas de alguma coisa, nem que seja só o próximo segundo. Na iminência do que virá: o almoço ou a morte. À beira do nosso futuro como de um precipício, no qual despencaremos ou alçaremos voo. A iminência é o nosso estado natural. Pois o que somos nós, todos nós, se não expectativas?

– Você, então, se acha igual a mim?

– Nesse sentido, sim. Somos coiminentes.

– Com uma diferença. Eu estou na iminência de mandar açoitá-lo por insolência, e você está na iminência de apanhar.

– O senhor tem esse direito hierárquico. Faz parte da sua eminência.

– Admita que você queria dizer “eminência” e disse “iminência”. E recorreu à filosofia para esconder o erro.

– Só a iminência do açoite me leva a admitir que errei. Se bem que...

– Se bem que?

– Perdão. Sou um verme, uma meleca, menos que nada. Um cisco no seu santo olho, senhor. Mas é tão pequena a diferença entre um “e” e um “i”, que o protesto de vossa eminência soa como prepotência, o que não fica bem num rei. Eminência, iminência, que diferença faz uma letra?

– Ah, é? Ah, é? Uma letra pode mudar tudo. Um emigrante não é um imigrante.

– É um emigrante quando sai de um país e um imigrante quando chega em outro, mas é a mesma pessoa.

– Pois então? Muitas vezes a distância entre um “e” e um “i” pode ser um oceano. E garanto que você terá muitos problemas na vida se não souber diferenciar ônus de ânus.

– Isso são conjunturas.

– Você quer dizer “conjeturas”.

– Não, conjunturas. 

– Não é “conjeturas” no sentido de especulações, suposições, hipóteses?

– Não. “Conjunturas” no sentido de situações, momentos históricos.

– Você queria dizer “conjeturas” mas se enganou. Admita.

– Eu disse exatamente o que queria dizer, senhor.

– Você errou!

– Não errei, iminência.

– Eminência! Eminência!

– Está bem, o senhor ganhou... Majestade.

20 de agosto de 2016 | N° 18613 
PAULO GERMANO

A incerteza do padre

Soube que o padre Fábio de Melo viria à Redação. Era minha chance. Quem me acompanha sabe, já escrevi isso algumas vezes: basta surgir uma pequena oportunidade com alguém que admiro, que lá vou eu incomodar:

– Deus existe?

É uma obsessão, sou meio chato. O Leandro Fontoura, editor de Notícias aqui da Zero, odeia quando escrevo sobre isso, diz que é uma bobajada, que tem muita coisa importante acontecendo para se perder tempo com dúvidas inúteis. Pois perco tempo com esse troço há quase 30 anos. Que que eu posso fazer? Uma das maiores inquietudes da minha vida se refere a essa pergunta – Deus existe? –, e mais inquietante ainda é a forma como ateus e fiéis lidam com a resposta. Como podem ter tanta certeza? Por que suas convicções são tão invioláveis? Sinceramente, invejo todos eles.

Mas o padre Fábio viria à Zero Hora – e talvez ele me desse uma boa resposta e, se me desse, eu teria de escrever sobre isso outra vez, azar é o do Leandro. Porque já questionei mais de 200 pessoas sobre o assunto, entre crentes e descrentes, e nenhuma jamais me persuadiu. Nunca, portanto, formei uma opinião acerca da existência ou não de Deus.

E por que Fábio de Melo ajudaria? Porque, embora eu tenha torcido o nariz quando o vi pela primeira vez (lembro daquele padre galã fitando o horizonte, apoiando o queixo no punho cerrado em um comercial cafona de TV), aos poucos percebi que ele é um fora de série. Suas pregações e entrevistas têm se revelado aulas necessárias de tolerância – e de hermenêutica, ao oferecerem interpretações do Evangelho que apenas agregam, jamais discriminam. Eu queria saber o que faz alguém tão profundo, de inteligência tão apurada, ter tanta convicção sobre a existência de Deus.

Ele chegou às 11h15min, vestindo jaqueta de couro preta e um blusão vermelho. Cumprimentou-me com simpatia à beira da escada, e o fotógrafo Félix Zucco começou a filmar nossa conversa.

– Padre, tenho uma dúvida que me acompanha desde criança – decidi não perder tempo. – Como é que o senhor tem certeza de que Deus existe?

Ele soltou um meio sorriso e, embora não tenha muita cara de padre, respondeu com a calma de um padre:

– Se eu tivesse certeza, não precisaria ter fé.

Como é que é? Não pode ser! Nem o padre Fábio de Melo tem certeza de que Deus existe?

Mantive a boca entreaberta, e ele prosseguiu:

– A experiência da fé nos dispensa das certezas. Fé é confiança, não é certeza. É o que você pode experimentar, por exemplo, como filho. Você tem certeza do amor de sua mãe?

– Olha... Acho que sim, padre.

– E você tem provas científicas desse amor que ela sente por você?

– Não... – Mas você confia. Você acredita. E pronto.

Nunca tinha pensado por esse lado. Fábio de Melo não tentou me persuadir, não tentou me impor sua verdade, apenas explicou por que, para ele, aquela é sua verdade. Se ele sente que Deus existe, como eu sinto que minha mãe me ama, quem tem autoridade para contestá-lo?

Agradeci a ele por se comportar com a tolerância própria dos valores cristãos. Porque, se eu não sou cristão, tampouco me parecem cristãos alguns dos sacerdotes de maior penetração nas massas – malafaias que debocham, julgam e agridem quem não compactua com suas verdades. Na saída do prédio, Fábio de Melo atendeu às fãs que pediam fotos, despediu-se e disse assim:

– Conheço ateus que agem como cristãos. No fim, é só isso que importa. É só isso que Deus quer.

sábado, 13 de agosto de 2016


13 de agosto de 2016 | N° 18607
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

NADA É PARA SEMPRE


Queiramos ou não, vivemos comparativamente, e o que de fato somos sempre será relativizado no pareamento com o desempenho dos nossos contemporâneos. Esta análise é inevitável, a começar pelos nossos cônjuges, que não conseguem avaliar nossa felicidade como construção isolada de um indivíduo que deveria ter vindo ao mundo para prioritariamente contentar a si mesmo, antes de ser enquadrado como parte da uma manada, com expectativas e responsabilidades coletivas, planejadas e monótonas.

Como na sociedade contemporânea não há espaço para essas extravagâncias sem que o ambicioso seja tachado de excêntrico e lunático, acabamos absorvidos pelo turbilhão e, se ninguém mais tem nada a reclamar, sejamos todos bem-vindos ao universo da competição desenfreada e da conquista a qualquer preço neste tempo, ironicamente chamado de moderno, em que, para muitos, até a alma é tabelável.

Não havendo como uniformizar comportamentos porque os artistas são intrinsecamente diferentes, temos de nos conformar com reações que não deixam de ser desconfortáveis só porque são previsíveis. Um dos exemplos dessa dificuldade é o manejo da autoestima que, nunca sendo perfeita, impõe surtos de inferioridade ou de soberba em cada derrota ou vitória, dessas que a vida programa sem consultar os envolvidos.

Como é impossível ser minimamente feliz sob a pressão desses sentimentos inferiores, só alcançaremos a maturidade quando conseguirmos vibrar com o sucesso dos nossos amigos. Antes disso, seremos apenas uns magoados protegidos pelo biombo da dissimulação.

Há um ensinamento clássico que recomenda que identifiquemos os amigos verdadeiros pela solidariedade no sofrimento, uma condição que usualmente espanta os falsos e os efêmeros, e sempre estivemos mais ou menos acordes com isso. Por confiar nesta máxima histórica é que me surpreendi e me encantei com Leandro Karnal (leia entrevista com Karnal no caderno DOC, nesta edição de ZH) que, numa conferência chamada “É mais fácil viver com ética”, colocou esta questão em termos inteligentes e originais. 

Segundo ele, o anúncio de uma doença ou desgraça desperta na maioria das pessoas o sentimento da comiseração, que pode ser confundido com gentileza e amizade. Sendo assim, se quisermos saber com quem de fato estamos lidando, temos de fazer a triagem a partir da abordagem oposta: “Gente, que fase maravilhosa, nunca estive tão feliz, nem jamais me senti tão amado. Além disso, é impressionante como tenho sido convidado para falar em todos os lugares e, outra maravilha, nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida”.

Segundo o autor da proposta, essa frase vai dividir seus interlocutores em dois grupos distintos: os amigos verdadeiros, infelizmente poucos, que de olhos marejados irão festejar a felicidade do amigo, e o enorme bando do sorriso amarelo, que mal conseguirá disfarçar a vontade incontrolável de alertar premonitoriamente: “Cuidado porque essa fase, um dia, termina!”.

Nunca tinha pensado em selecionar os convivas por esse prisma, que até pode ser acusado de agressivo, mas ninguém negará que é inteligente. Por via das dúvidas, melhor prestar atenção em cada momento, já que nada dura para sempre.



13 de agosto de 2016 | N° 18607 
ANTONIO PRATA

RANKING GERAL DA EXISTÊNCIA


A pessoa dedica a vida toda a nadar mais rápido, a saltar mais alto, a prensar as costas do oponente contra um tatame antes que o oponente prense as dela. Então, nos minutos ou segundos que a pessoa tem pra fazer valer o esforço de décadas, diante de bilhões de pessoas, ao vivo, a cores, às vezes quase pelada, a pessoa tropeça. Escorrega. Cai de bunda. Como se não bastasse o maior revés profissional, talvez o maior baque existencial pelo qual já passou, logo depois, ainda arfante, ela encara as câmeras do mundo todo: “E aí? Perdeu o equilíbrio, a medalha escapou, que aconteceu?”, “Oitavo lugar, tempo pior que o do Pan, como você explica?”, “Muitos erros, não deu pódio, sua última Olimpíada, e agora?”.

Fico imaginando se nossos fracassos também fossem transmitidos ao vivo, pra metade do globo. “Estamos aqui com o Alberto Boucinhas, Alberto, que tava encarando uma dieta Atkins, categoria acima de 150 quilos, e aí, Alberto? Vinha aí, num ritmo bom, quatro semanas, tinha perdido quase 10, a Neide confiante, mas duas da manhã e você acaba de traçar um pote de napolitano com Nutella. Que que foi? Estresse? Muita pressão da Neide?”

“Uma palavrinha, Gláucia?! A Gláucia tá saindo da Fuvest, tá fazendo cursinho há três anos pra Medicina, tava gabaritando os simulados, mas na hora do vamos ver errou até raiz quadrada de 4. E aí, Gláucia? Exausta, família decepcionada, três anos jogados fora, que que você sente numa hora dessas?”

“Henrique! Henrique! Um minutinho, por favor! O Henrique acaba de lançar seu primeiro romance, todo mundo com muita expectativa, o Henrique largou a advocacia pra se dedicar à literatura, vendeu a casa, 10 anos aí escrevendo essa história sobre um homem num quarto conversando com um criado mudo que talvez só exista dentro da cabeça dele e... E as críticas não foram boas, né, Henrique? As vendas também não foram boas, parece que o seu projeto de vida não deu certo, né, Henrique? E agora? Vai tentar cavar uma Bienal do Livro? Uma Flip? Ou vai voltar pra advocacia?”

“Rafael! Que que aconteceu, rapaz? Entrou confiante na festa, começou pontuando na pista de dança, foi pra cozinha, chegou preciso na Juliana, beijou a Juliana na área de serviço, foi pra casa da Juliana, ela te aplicou um yuko no colchão, você levou pro wazari no carpete, mas na hora de finalizar... A Juliana ainda tentou cooperar, mostrou entrosamento, bom trabalho manual, mas não teve jeito. Que que houve? Um apagão?”

“Arlindo, vem cá: 40 anos, duas falências, três casamentos frustrados, sem filhos, sem amigos, nome no Serasa, triglicérides lá em cima, careca, agora taí, bêbado, sentado na sarjeta, esperando a polícia pra fazer o bafômetro depois da batida. Parece que nessa vida não deu, né, Arlindo?”

Arlindo solta um suspiro. Acende um cigarro. “Realmente. Eu tentei, aí, me esforcei bastante, mas fazer o quê? Tem uns que dão certo, outros não. Graças a Deus eu sou espírita, tá? Acredito em reencarnação, então é bola pra frente, é trabalhar aí pra tar limpando esse carma e torcer pra na próxima as coisas serem melhores!” “Taí com vocês o Arlindo, um dos últimos no ranking geral da existência, dando esse recado cheio de esperança pro Brasil!”

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