domingo, 25 de setembro de 2016


YOKO OGAWA - tradução RITA KOHL
25/09/2016  02h05

Leia trecho inédito de romance de Yoko Ogawa


SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre o terceiro capítulo do romance "O Museu do Silêncio", da japonesa Yoko Ogawa, que a Estação Liberdade lança no começo de outubro. O enredo gira em torno da contratação de um museólogo por uma senhora que deseja organizar uma coleção de peças que sintetizam a existência de seus proprietários, todos mortos.

A sala que ela chamava de acervo era a antiga lavanderia, na extremidade oeste do porão. No instante em que a porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim, o cheiro que a matéria exala quando apodrece.

Era um espaço amplo, mas sujo e muito bagunçado. Coisas diversas (talvez as peças da coleção?) estavam espalhadas aqui e ali, sobre armários, cômodas e mesas, dispostas desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo. Mas o que estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa. Demorei algum tempo para compreender o quê.

Andamos, os três, até o centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar em nada. Eu não queria nem imaginar como a velha esbravejaria se por acaso eu derrubasse ou quebrasse alguma coisa. O chão tinha um design moderno, com ladrilhos em padrão xadrez. Graças às janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos no subsolo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas de torcer roupa caídos pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma lavanderia.

As salas de acervo, de qualquer natureza, costumavam ser lugares familiares para mim. Eu gostava de passar o tempo encarando os arquivos, fechado naquele cômodo absolutamente silencioso onde os visitantes não podiam entrar. Mas aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se cada objeto se impusesse livremente, segundo seus próprios caprichos, criando uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união. Elas não tinham consideração suficiente nem sequer para voltar o olhar para os seus companheiros. Isso me deixava aflito.

Um carretel, um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos, gesso ortopédico, um berço... Experimentei olhar com cuidado para cada uma das coisas próximas a mim, mas de nada adiantou. Só fiquei mais desorientado.

– São objetos de recordação dos mortos –disse a velha. – Todos deixados pelas pessoas da vila.

Sua voz ecoou muito mais próxima do que na biblioteca.

– Quero que você faça um museu para expor e conservar isso tudo.

Nesse momento finalmente percebi o motivo do meu desconforto. A velha não estava de chapéu como de costume. Por entre o cabelo branco e ralo que ainda lhe restava, espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em consideração sua estatura. Eram como duas folhas secas amarrotadas presas às laterais da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas cicatrizes ao redor dos buracos dos ouvidos.

– Nossa, são muitos... –comentei devagar, tentando desviar a atenção das orelhas.

– Comecei a reuni-los no outono dos meus onze anos. Essa coleção tem uma história longa demais para ser narrada. E ela ainda continua, daqui pra frente.

A menina sustentava a velha com segurança, com o braço direito ao redor do seu ombro e a mão esquerda apoiada no quadril. Parecia já saber perfeitamente quanta força era necessária, e onde aplicá-la. As duas estavam unidas como se fossem parte uma da outra.

– Sempre que alguém da vila morre, recolho um único objeto relacionado àquela pessoa. É uma vila pequena, como você sabe, então não é como se morresse alguém todo dia. Mas não é fácil reunir esses objetos, algo que descobri na prática. Talvez fosse pesado demais para uma criança de onze anos. Mas, mesmo assim, consegui fazê-lo por muitas décadas. A minha maior dificuldade é porque não me contento com uma recordação qualquer. Nunca dei um jeitinho pegando qualquer coisa fácil, uma roupa que a pessoa vestiu uma ou duas vezes, uma joia que viveu fechada no armário, uns óculos feitos três dias antes de morrer. O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e mais fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem nada a ver com isso. E claro que o valor financeiro também está fora de questão.

A velha engoliu a saliva e afastou, irritada, o cabelo que caía sobre a testa. Pela janela, vi um passarinho cruzar o céu alto. As recordações continuavam todas quietas ao nosso redor.

– Esta aqui é um bom exemplo. A um sinal de seus olhos, a menina estendeu a mão, pegou um único objeto em meio à bagunça e me mostrou. – O que é isso?

Era apenas um anel, simples demais para um acessório, frágil demais para ser uma peça de máquina.

– Há mais ou menos cinquenta anos uma prostituta de meia-idade foi assassinada em um hotel da vila. Além de ter sido esfaqueada, seus mamilos foram cortados e levados embora. Foi o assassinato mais sórdido da história da vila e, desde então, não houve mais nenhum caso de homicídio. Por causa da sua profissão, não apareceu nenhum parente, e eu fui a única pessoa que foi à sua cremação. Eu disse que era a sua única amiga e me deixaram participar. Claro que isso era só uma mentira para conseguir algum objeto de recordação. Depois que ela foi queimada, encontrei isso aí em meio às cinzas. Quando peguei, ainda estava quente, como se guardasse o calor do seu corpo. Decidi que essa seria a sua recordação. É um DIU1, anticoncepcional. Bom, o próximo...

1. Nota da tradutora: Embora atualmente o DIU (dispositivo intrauterino) apresente a forma de T, os primeiros modelos tinham forma de anel.

YOKO OGAWA, 54, escritora japonesa, é autora de "Hotel Íris" (Leya). - RITA KOHL, 32, é tradutora e intérprete do japonês.

MARCOS MENDES
25/09/2016  02h04

O teto de gastos e a proteção aos pobres


RESUMO Autor, que assessora equipe econômica, defende a proposta de estabelecer um teto ao gasto público. A PEC 241, proposta pelo governo, levaria a uma racionalização das despesas que seria fundamental para o reequilíbrio fiscal, a volta do crescimento e a queda da inflação –em benefício dos setores mais pobres.

Entre 1997 e 2015, a despesa primária (despesa total menos juros da dívida) anual do Governo Central triplicou em termos reais. Isso equivale a um crescimento médio de 6,2% ao ano acima da inflação. Se a despesa continuar a crescer nesse ritmo, não haverá dinheiro para pagá-la.

Com dispêndio crescente, o governo precisou extrair mais dinheiro da sociedade. A carga tributária subiu fortemente, chegando a 32,7% em 2015, valor muito acima da média de países emergentes. Mas não se pode continuar aumentando a carga tributária indefinidamente. Os impostos já sobrecarregam as empresas e as famílias.

Arrecadação estagnada e despesa crescendo resultam em deficits primários maiores a cada ano, chegando a R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) em 2016. Em má situação financeira, o governo acaba tendo que pagar juros mais altos, pois o seu risco de default aumenta. Deficits primários e juros mais altos aceleram o crescimento da dívida bruta, que disparou de 53,8% do PIB para 69,5% em apenas dois anos.

Quando as empresas percebem que o governo está em dificuldade financeira, passam a temer aumentos abruptos de carga tributária, aceleração da inflação e instabilidade política. As agências de avaliação de risco rebaixam a nota de crédito do governo. Nesse cenário de perda da confiança no futuro de seus negócios, as empresas, num primeiro momento, evitam investir; posteriormente, passam a demitir. Instala-se a recessão.

CICLO VICIOSO

O crescimento mais baixo prejudica a receita do governo, agravando o quadro fiscal. Entra-se em um ciclo vicioso: o desequilíbrio fiscal derruba a economia, e a retração da economia piora a situação fiscal. Estamos em situação difícil: não há como financiar o crescimento real de 6% ao ano dos gastos públicos, e a economia já acumula queda do PIB de 7% em dois anos.

É nesse contexto que se está propondo a PEC 241/2016, que estipula limite para o crescimento da despesa primária. A regra é simples: se em um determinado ano a inflação for, por exemplo, de 5%, no ano seguinte o gasto primário da União poderá crescer, no máximo, 5%.

A aprovação da PEC atuará na causa fundamental do problema fiscal –o crescimento acelerado do gasto–, sinalizando para a sociedade que o desajuste será resolvido. Haverá aumento da confiança das empresas, que retomarão os investimentos, gerando crescimento econômico. As receitas públicas reagirão, iniciando o processo de ajuste fiscal.

Ao mesmo tempo, o Tesouro Nacional precisará de menos empréstimos para financiar um deficit decrescente. Sobrarão mais recursos no mercado para financiar o investimento privado, o que levará à queda da taxa de juros, que impulsionará o investimento e o crescimento. Juros mais baixos vão desacelerar o crescimento da dívida pública. Também aumentarão a viabilidade dos investimentos privados em concessões de infraestrutura, reduzindo a necessidade de subsídios creditícios do governo aos concessionários, o que contribui tanto para o crescimento quanto para o ajuste fiscal.

A ideia de conter o crescimento da despesa gera o temor de que políticas sociais sejam afetadas, prejudicando os mais pobres. Na verdade, a população de baixa renda será beneficiária do ajuste. Estamos com 12 milhões de desempregados, que dependem da recuperação da economia para voltar à ativa. Os pobres são os maiores prejudicados pelo desemprego recorde.

Segundo o Ipea, em 2014, a taxa de desemprego era de 20% para os trabalhadores situados entre os 10% mais pobres, enquanto o índice estacionava nos 2% entre os 10% mais ricos. Além disso, os pobres não têm poupança acumulada para enfrentar o período de desemprego, geralmente não têm parentes ricos para lhes emprestar dinheiro, e seu acesso ao crédito bancário é limitado e caro.

A mais importante política social é a recuperação da economia e do emprego. Adicione-se a queda da inflação que advirá do ajuste fiscal. Os pobres são os mais prejudicados pela carestia.

Os mais pobres também ganharão com a PEC porque hoje não são os maiores beneficiários do gasto público. O Orçamento tem gordas dotações que beneficiam estratos sociais mais altos. Controlando-se a expansão desses gastos, restarão mais recursos para financiar programas que efetivamente atendem os pobres.

A queda da despesa com juros também favorecerá os pobres. Os juros são pagos a famílias de maior renda, que são aquelas que dispõem de reservas financeiras aplicadas em títulos públicos. Menor pagamento de juros resulta em redução do superavit primário necessário para manter a dívida sob controle, permitindo, mais adiante, a expansão de programas sociais. Ademais, ao facilitar as concessões de infraestrutura, a queda dos juros permitirá a expansão do saneamento básico e dos transportes coletivos.

Há também no Orçamento perda de recursos por ineficiência. Esse custo não é desprezível. Por exemplo, entre 2004 e 2014, o Ministério da Educação aumentou seus gastos, em termos reais, em 285%, mas isso não parece ter se refletido em melhoria significativa no aprendizado, em especial dos alunos do ensino médio. Nesse nível, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica mantém-se em 3,7; pela meta estabelecida, já deveria ter chegado a 5,2.

A fixação de um teto de gastos induzirá a administração pública, sujeita a maior controle do gasto, a buscar eficiência, beneficiando a todos. O Ministério da Saúde já deu a largada: com medidas gerenciais e renegociações de contrato, reduziu seu gasto anual em mais de R$ 1 bilhão.

SAÚDE E EDUCAÇÃO

A PEC também tem sido questionada por propor mudança na vinculação de recursos da saúde e da educação. A ideia é que o gasto mínimo (o piso) nesses setores deixe de ser calculado com base na receita do governo, passando a ser corrigido pela inflação. Há o argumento equivocado de que a receita crescerá mais rápido do que a inflação, de modo que a troca do indexador levaria a perda de recursos.

É incorreto comparar os cenários "com aprovação da PEC" e "sem aprovação da PEC" supondo que o crescimento econômico e o desempenho da receita serão iguais nos dois casos. Sem a aprovação da PEC e, portanto, mantendo-se a atual regra de correção do gasto mínimo em saúde e educação, o crescimento econômico e da receita serão muito baixos, implicando baixa correção da despesa mínima. Quando o PIB cai, como está ocorrendo agora, a correção pela receita é uma opção pior. Pelos dados dos últimos anos, a correção pela inflação geraria valores maiores que a indexação à receita desde o exercício de 2013. O critério proposto na PEC protege a saúde e a educação durante as crises.

É preciso computar o aumento de demanda por serviços públicos gerado pela deterioração econômica. Pesquisa recente da CNI (Confederação Nacional da Indústria) apurou que, em 2016, 34% dos entrevistados pararam de pagar planos de saúde e 14% transferiram os filhos da escola privada para a pública. Se não houver a aprovação da PEC e a recuperação da economia, mesmo que seja destinada uma dotação maior para saúde e educação, haverá pressão de demanda, prejudicando os usuários.

Deve-se considerar o estrago que a deterioração econômica gera na escolaridade dos mais pobres. Entre 2015 e 2016, a taxa de desemprego para jovens entre 14 e 17 anos, apurada pelo IBGE, subiu de 24% para 39%, refletindo um quadro de abandono dos estudos em busca de emprego. Essa é uma perda para a educação que independe de haver mais verbas destinadas para o setor.

É essencial lembrar que a PEC deixa fora do limite de gastos as transferências federais para o Fundeb, que financia a educação básica, mais importante etapa educacional no fortalecimento do capital humano dos mais pobres. E a complementação da União vai justamente para os Estados mais pobres.

Nada impede que o Congresso decida alocar recursos para saúde e educação acima do mínimo (como está sendo feito no Orçamento de 2017), desde que reduza despesas em outras áreas, para respeitar o teto. Esse é um ponto que ilustra outra virtude da PEC. Ela induz o Congresso e a sociedade a definir prioridades. Não será mais possível adotar a prática atual de superestimar receitas para incluir o máximo possível de despesas no Orçamento. O Congresso recobrará o seu papel de fórum de discussão das prioridades nacionais.

Ao fortalecer a restrição ao crescimento do gasto, a PEC induzirá a recuperação da economia e do emprego; beneficiará os mais pobres; criará restrições à obtenção de privilégios por grupos de renda alta; estimulará a racionalização e eficiência dos programas públicos; e permitirá o planejamento fiscal de longo prazo. Essa medida é a primeira peça da reforma do gasto, que prosseguirá com a reforma previdenciária. Sem conter os gastos, será difícil superar o cenário de deterioração das contas públicas, baixo crescimento e empobrecimento.

MARCOS MENDES, 51, economista especialista em finanças e políticas públicas, é chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda. 


Um país onde a justiça varia não pode ser considerado democrático
25/09/2016  02h09


Aquela foi uma semana marcada por importantes acontecimentos. Começou com a cassação do mandato de Eduardo Cunha por um escore arrasador, seguiu-se a posse de Cármen Lúcia na presidência do Supremo Tribunal Federal, depois as acusações contra Lula por procuradores da operação Lava Jato e finalmente a resposta do ex-presidente negando fundamento às acusações.

A maneira como aquelas acusações foram feitas não pegou bem, e pior é que, como este jornal divulgou, elas se apoiam numa delação que foi cancelada.

Quero me ater, no entanto, à significação que tem para o país a presença da ministra Cármen Lúcia na presidência do STF, conforme constatamos nas mais diversas manifestações de apoio e otimismo pelo acontecimento. E, se ele já valeu por si só, cabe ressaltar a significação da cerimônia de posse em si mesma.

Essa cerimônia se caracterizou pela presença de políticos de diversos partidos, além de personalidades como os ex-presidentes José Sarney e Luiz Inácio Lula da Silva, bem como intelectuais, advogados e artistas. Isso indicava, por um lado, o prestígio pessoal da nova presidente do STF, mas também o que significa essa instituição, no momento particularmente crítico da vida política nacional, o que ficou evidente nos discursos proferidos durante a cerimônia, expondo implicitamente essa realidade.

Nesse particular, deve-se ressaltar o discurso da ministra Cármen Lúcia que, não por acaso, fez questão de mostrar que as diversas instituições que expressam o poder do Estado brasileiro, a exemplo do Judiciário, são, de fato, instrumentos da manifestação do verdadeiro poder que emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Foi quando ela disse:

"Inicio quebrando um pouco o protocolo ou, pelo menos, interpretando a norma protocolar diferente de como vem sendo interpretada e aplicada: determina se comecem os cumprimentos pela mais elevada autoridade presente. E e justo que assim seja. Principio, pois, meus cumprimentos dirigindo-me ao cidadão brasileiro, princípio e fim do Estado, senhor do poder da sociedade democrática, autoridade suprema sobre nós, servidores públicos, em função do qual se há de labutar cada um dos ocupantes dos cargos estatais".

Por isso mesmo, como diria ela, adiante, irá informar-se de todos os dados relativos aos gastos institucionais e trazê-los ao conhecimento da população, com toda a transparência, para deixar clara a posição que adotaria em face disso. Essa questão envolve o discutido aumento salarial para os ministros do Supremo, que, por sua vez, desencadearia aumentos salariais nos vários setores judiciais, agravando a situação financeira do país.

Outro ponto importante de seu discurso diz respeito à modernização e ao aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro, que não atende às necessidades da população, particularmente dos mais pobres que constituem a maioria.

De fato, um país onde a aplicação da Justiça varia de acordo com a classe social a que pertence o cidadão não pode ser considerado efetivamente democrático.

Se o discurso da presidente Cármen Lúcia foi essencialmente institucional, o do ministro Celso de Mello, decano do STF, tocou o cerne do problema que hoje atinge, de maneira alarmante, a vida política nacional.

Para o constrangimento de alguns políticos e autoridades ali presentes, que são investigados pela Operação Lava Jato, ele se referiu aos "marginais da República" que, "por intermédio de organizações criminosas" obtêm "inadmissíveis vantagens e [...] benefícios de ordem pessoal, ou de caráter empresarial, ou, ainda, de natureza político-partidária".

Também o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, abordou o tema da corrupção, destacando a atuação do Ministério Público, que tem desempenhado um papel altamente positivo no combate à ação criminosa de políticos, empresários e altos funcionários de empresas estatais.

A posse da ministra Cármen Lúcia, se teve o significado que teve, deveu-se particularmente ao papel que a Justiça passou a desempenhar publicamente na vida nacional. E a razão disso não é outra senão o alastramento da corrupção exercida, como disse o ministro Celso de Mello, pelos "marginais da República".

sábado, 24 de setembro de 2016



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
LYA LUFT

Belos, cálidos dias


A gente nasce sem querer, numa família não escolhida (ou cada alma escolhe a sua?), com uma bagagem de genes que nem Deus sabe direito no que vão dar – lançados no grande mundo, ainda por cima tendo de desempenhar direito nosso papel.

Que papel? O que a família exige? O que a sociedade espera? O papel que cobramos de nós mesmos enquanto corremos entre acertos e trapalhadas, dor e graça, tateando num nevoeiro de confusões, emoções, razões e desesperos – ou contentamento? Atores sem preparo, sem roteiro, sem papel e sem alguém que nos sopre nossas falas, nesse palco desmesurado e instável. Se for difícil demais, nos matamos de tristeza, de tédio, de medo, de solidão e vazio, ou por vingança por algo demais cruel. É quando não conseguimos desempenhar papel nenhum: escolheremos então o nada, se é que a morte é nada.

Mas em geral gostamos da vida, não nos matamos, até nos sentimos bem. Não que eu ache que somos farsantes ou falsos. Apenas fomos aqui plantados, em geral desejados, quase sempre amados, algumas vezes desamados, mal criados e erradamente educados. A gente comparece do jeito que dá, desde quando começa a ter consciência – acho que isso também ninguém ainda determinou (o Google não me deu muita certeza): quando começa a consciência de existir, e das coisas ao redor?

Minhas memórias se iniciam aos dois anos e pouco, deitada no assoalho claro da casa, espiando embaixo de um móvel grande e escuro, admirando bolinhas de poeira que dançavam segundo minha respiração: para mim, eram seres vivos. Ou sentada no assoalho da casa da avó que costurava, eu espiando alfinetes cintilantes entre as frestas das tábuas. Tudo era mágico naquele tempo, e eu não precisava ser nenhum personagem.

Mas a vida se impõe, com chamados, deveres, conselhos, promessas, agrados, punições, por mais brandas que fossem: havia uma ordem em tudo. E a gente tinha de se adaptar, para que os castigos (não ganhar sorvete, não poder brincar com as amigas) não fossem mais numerosos do que as alegrias. Na verdade, os castigos eram poucos, quase bobos, mas eu me assustava: alguma coisa chamada “des-ordem” existia, eu me enredava com ela. Todo mundo devia ser calmo, acomodado, pressuroso, obediente, não lembro mais todas as qualidades que nos faziam boas meninas e bons meninos naquele tempo quase remoto.

E as perdas: amados e amigos se vão, jovens ou já velhos, a gente soltando pedaços. Ou os afetos simplesmente empalideceram. Mas há os que chegam: maravilhosamente chegam filhos, netos, novos amigos, velhos amigos permanecem, os livros, os filmes, os quadros, as músicas, a montanha, o mar, as horas de encantamento, as viagens – e voltar para casa, doce “zona de conforto”. Acolhimento, segurança dentro do possível neste mundo em que o crime compensa, o cinismo floresce, a autoridade fracassa, a confusão impera, a mediocridade se impõe. Seja como for, vamos desempenhando ou reinventando nossos papéis, ou não os cumprindo e levando rasteira. Não é ruim, não é bom: é a vida.

Belos, cálidos dias de primavera. O país, quem sabe, começando a se mover para se recompor. Aquela criaturinha chamada esperança canta no peitoril da minha janela. Quem sabe, quem sabe?



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
CARPINEJAR

Chorar sobre o xampu derramado

A grande prova do amor feminino é dividir o xampu.

É um dos produtos que ela mais briga para conservar e menos se dispõe a partilhar. A cada banho, verifica o decréscimo dos mililitros. Aliás, xampu merecia vir com régua de mamadeira do lado de fora, tamanho o controle do néctar.

A guerra das mulheres contra bárbaros e invasores advém de longa data. Na infância, eram obrigadas a se precaverem da curiosidade dos irmãos e do pai e fiscalizarem o desperdício com rigor e olhar clínico. Para não correrem riscos desnecessários, algumas meninas não deixavam o pote à mostra na bandejinha aérea.

Vale a pena experimentar os limites da paixão da sua namorada por você. Não se furte do embate. Escolha o menor frasco (sempre o mais caro), encha a mão e espalhe com vontade pelo seu couro cabeludo. Gaste generosas quantidades durante uma semana sem parar, para consolidar a baixa no volume. Se ela não vier perguntar se anda usando o xampu dela e fingir que nada aconteceu, você conquistou definitivamente o coração de sua musa. Está acima do bem e do mal, dos cuidados com as mechas e madeixas, da neurose consumista.

Já aconteceu de namorada parar de falar comigo dois dias inteiros porque notou, quando foi me beijar, que colocava o seu xampu mais caro na barba:

– Não duvido que não tenha usado no sovaco e nos pentelhos.

Eu tinha, mas não confessei.

Passei por outra que terminou o relacionamento pois derrubei um pote de seu xampu Joico de R$ 200. Considerou o gesto da envergadura de uma infidelidade. E não qualquer infidelidade. Parecia que eu havia comido a sua melhor amiga. Gritava diante da cornitude da espuma.

Lembro o epitáfio verbal de nosso amor:

– Eu economizando e você joga tudo no chão. Não cuida de minhas coisas, nem vai cuidar de mim.

Liberdade mesmo encontrei com a minha esposa, Beatriz. Inventei de pôr uma máscara de caviar da Kérastase que achei em seu banheiro. Deve ser um salário mínimo em forma de condicionador. Faz um tempão que venho aproveitando o seu poder restaurador, com o claro objetivo de lustrar e perfumar a minha careca. Ela não reclamou até agora. Se bem que o grande teste virá quando ler o meu texto.



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Esta coluna foi originalmente publicada em 15 de junho de 2003

Ilustríssimos


Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar?

Sua família sempre lhe chamou de Guto, tanto que você já nem lembra que nome realmente tem. É Guto pra lá e pra cá. Guto no jardim de infância, Guto no colégio, Guto no clube. Você tem todos os motivos, portanto, para ficar lívido e com as pernas bambas quando sua mãe grita lá da sala: Ricardo Augusto, venha já aqui. Ricardo Augusto??? Alguma você aprontou.

Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar? Sua mulher sempre lhe chamou de Beto: só lhe chama de Valter Alberto quando está a ponto de pedir o divórcio. E seu pai só lhe chama de Ana Beatriz quando avisa que a mesada será cortada. Por que cortar a mesada da sua Aninha, papai? A senhora sabe muito bem por quê. Você acaba de virar senhora com 14 anos.

Recebo um monte de e-mails carinhosos que começam com um simples Martha, ou Cara Martha, ou Prezada Martha, uma intimidade natural, já que de certo modo participo da vida das pessoas através do jornal. Mas, quando entra um e-mail intitulado Dona Martha, valha-me Deus. Respiro fundo porque já sei que vão me detonar de cima a baixo, vão me chamar das coisas mais horrendas, vão me humilhar até me reduzirem a pó. Mas leio tudo, pois lá no finalzinho encontrarei o infalível “Cordialmente, fulano.” Cordialmente é ótimo. Cordialmente, fui esculhambada.

E quando chega uma correspondência pra você em que no envelope está escrito “Ilustríssima”? Penso três mil vezes antes de abrir. Mas abro, mesmo sabendo que não é convite pra festa, pré-estreia de filme, desfile de moda, sessão de autógrafos ou inauguração de restaurante. Ilustríssima? Só pode ser convite para a palestra de algum PhD em física quântica, para comemoração do bicentenário de uma loja de molduras ou convocação para reunião de condomínio. Os ilustríssimos não merecem se divertir.

Agora, pânico mesmo, só quando me chamam de Vossa Excelência. Como não sou o Presidente da República, volto a pensar 3 mil vezes antes de abrir a correspondência, mas resolvo não abrir coisa nenhuma. Só pode ser do Judiciário. Intimação pra depor.

sábado, 17 de setembro de 2016



17 de setembro de 2016 | N° 18637 
MARTHA MEDEIROS

Do mês que vem não passa

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno. Olhando de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem

Juntos chegaram à conclusão de que o casamento estava um tédio, que o amor havia sumido e que a presença um do outro incomodava mais do que estimulava: nem mesmo a amizade e a ternura haviam sobrevivido. Depois de algumas cobranças inevitáveis, muita DR e lágrimas à beça, optaram por seguir cada um para seu lado. Quando? Logo depois das férias de julho: a gente viaja com as crianças e depois você sai de casa. Perfeito.

Voltaram de viagem mais duros do que nunca foram, o saldo completamente no vermelho. Não era uma boa hora para comprometer o orçamento com um novo aluguel. Ela compreendeu e disse para ele ficar em casa até as finanças se estabilizarem de novo, quando ele então poderia procurar um apartamentozinho.

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno, sabiam que dali a pouco estariam separados para sempre, então calhava uma harmonização, eles até passaram a sorrir com mais frequência e, olhando assim, de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem.

As dívidas da viagem foram pagas e, depois de mais uma entre tantas discussões bestas, resolveram agendar de vez a separação: logo depois do aniversário do pequeno Bruninho, que dali a um mês faria 19 anos e media 1m87cm.

Bruninho não quis festa, e o saldo do casal voltou a ficar positivo, mas não por muito tempo: a tevê já veiculava comerciais com a presença do Papai Noel. Natal era sempre uma despesa, e os sogros viriam do interior pra comemorar com a família reunida, melhor deixar passar o Natal e o Ano-Novo. É melhor, também acho.

Em fevereiro a Bia, filha mais velha, inventou de ir para a praia do Rosa com as amigas e ficou o mês inteiro lá, assim que ela voltasse os dois dariam o xeque-mate na relação. Bia voltou e já era quase Páscoa, e Páscoa sem ir pra fazenda da tia Sonia não era Páscoa. Depois da Páscoa, receberam o convite para serem padrinhos de casamento de um afilhado, melhor não criar constrangimento na igreja. Em seguida, foi o aniversário dele, que sempre fica meio caído nessa data, melhor deixar passar o inferno astral. E quando passou, aí foi ela que aniversariou.

Estão casados até hoje. Mas do mês que vem não passa.

A colunista está em férias. Este texto foi originalmente publicado em 16 de junho de 2002.



17 de setembro de 2016 | N° 18637 
LYA LUFT

O rio do tempo e nós

Neste mês de setembro, ocorre a maioria dos aniversários de minha família: eu mesma, netas, filho, irmão, além dos que já se foram, como mãe e avó materna, sem contar os amigos. Suponho que tenhamos sido inventados nos cálidos meses de verão. Tenho, em relação ao correr do tempo, não amargura ou medo real, mas curiosidade – desde quando, menina mimada, bati o pé porque queria alguma coisa “agora”. Algum adulto presente achou graça e resolveu liquidar a minha manha: “Deixa de ser boba, o agora nem existe”.

Iniciou-se um diálogo surreal: a menina curiosa e teimosa insistia em saber que história era aquela.Explicaram que o tempo passa constantemente, de modo que, quando pronunciamos a última letra da palavra “agora”, esse agora já é passado. Obstinada, várias vezes tentei pensar a palavra “agora” empilhando as letras numa coisa só – mas desisti.

Então, a cada momento, tudo passava, mudava e já era outro? Eu já era outra? Comecei a me angustiar, eu me angustiava com coisas que pouco tinham a ver com crianças, que, segundo adultos de então, deviam brincar, comer, dormir e se portar bem. Ainda por cima, alguém com humor macabro me alertou: “O tempo só para de passar quando a gente morre”. (Assunto para outra crônica.)

Sempre tive vontade de ser adulta: achava a vida e os assuntos dos “grandes” muito mais interessantes do que os infantis. Detestava ser comandada, numa época de educação bastante severa: por que ir para a cama às sete e meia? Por que só comer comidinha inocente, como purê de batata e carne de frango? Por que não falar muito à mesa? Por que ter de aprender prendas domésticas como toda boa menina? Eu não queria ser uma boa menina: queria ser a Emília do Monteiro Lobato.

Aí fui vendo que a passagem do tempo não apenas significava transformação e novidades (parte boa para quem facilmente se entediava), mas também perdas, e para muitos o terror da perda da juventude.Tornou-se uma epidemia a busca desesperada por deter a qualquer custo os sinais do tempo: parecer trinta aos sessenta, ter lábios sensuais aos setenta – vale a pena?

A velhice (desde que não com o detestável nome de melhor idade) é uma fase natural da vida – um dom a ser curtido. Dor e doença não escolhem idade. Nem sempre a juventude é linda. No avançar do tempo, importa preservar certa elegância (quando dá...) e cultivar o bom humor (quando possível...). Tônia Carrero, ao fazer oitenta, respondeu a uma jovem jornalista que lhe perguntava como encarava a velhice: “Velhice? Eu acho ótimo! Porque a alternativa é morrer jovem”. E minha amada comadre Mafalda Verissimo, que sempre me faz falta, contou, fingindo-se indignada, que alguém ao telefone, sabendo que era ela, exclamou: “Dona Mafalda! A senhora, ainda tão lúcida!”.

Que se arrume o que nos incomoda, mas dentro de alguma normalidade. Deixem a gente ter o privilégio de envelhecer em paz, que a gente vai tentar não ficar ainda por cima rabugenta. E quem sabe o rio do tempo desemboca em algum mistério mais interessante do que nossas trapalhadas de agora?

17 de setembro de 2016 | N° 18637 
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Terrorismo amoroso

Todo casado que trai e esconde esta informação merece ser torturado. Todo casado que põe a aliança no bolso para fazer maldades merece um castigo. Nem é para aprender a não trair, mas para aprender a não mentir.

Não custa nada dizer a verdade e admitir que está comprometido desde o primeiro encontro. Para os amantes que experimentam a desconfortável omissão, proponho que se divirtam criando o medo, já que dificilmente o outro lado desistirá do casamento. O medo é uma espécie estranha de respeito.

Veja como desmascarar a silenciosa pilantragem amorosa:

• Mande mensagem às 20h de sábado. Se ele somente responder no dia seguinte é casado.

• A pessoa não entra no seu mundo (porque é casada) nem lhe convida para o dela (porque é casada). Encontros sempre são genéricos em lugares neutros. Peça o seu endereço para enviar surpresas.

• Deixe chupão no pescoço ou marca nos braços. Só o casado terá vergonha.

• Telefone na frente dele para ver como ele lhe nomeou no celular, de repente você descobre que é uma pizzaria.

• O casado é preciso como um relógio suíço. Agenda hora para telefonar de volta: “Te ligo daqui a 20 minutos”. Não atenda e retorne em seguida. Certamente o cara estará ocupado com a sua esposa.

• Enfie, sorrateiramente, uma calcinha no bolso do casaco e avise que ele tem um presentinho pela noite passada. Se ele não devolver a calcinha, é porque jogou no lixo para eliminar provas.

• Se ele consulta o celular logo depois de transar, é casado. Se ele toma banho logo depois de transar, é casado.

• Todo telefonema do casado tem eco. Ele liga do carro ou do banheiro.

• O casado infiel não especifica relacionamento no Facebook. Poste uma mensagem marcando o sujeito. Caso não aceite, é casado.

• Convide para passear no shopping e tente abraçá-lo ou segurar a sua mão. Demonstrando pânico e suando frio, ele é casado.

• Pergunte onde ele trabalha e prometa aparecer uma hora dessas para um café. Na hipótese de ele desaparecer, é casado.

• Conte que você descobriu que tem vários amigos em comum, mas não revele nomes. Se ele não parar de questionar a identidade dos conhecidos, é casado.

• Mencione que vem saindo com outros homens. Na hipótese de ele não se opor ao flerte, é casado.

Esta é a grande diferença entre o homem e a mulher quando traem. A mulher não mente, jamais diz que não tem um relacionamento. Enfrenta a infidelidade com toda a honestidade.

terça-feira, 13 de setembro de 2016


13 de setembro de 2016 | N° 18633 
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Selfie da voz


Bem sabemos que a mulher é vaidosa da imagem. Não aceita postar uma fotografia sem ampliar o rosto e verificar minuciosamente os detalhes da pele. Não se reduz à epiderme, ultrapassa a derme e avalia o estado de sua hipoderme na foto. Mulher transforma o celular em microscópio.

Sempre tem um lado mais fotogênico, sempre reclama do cabelo, sempre protesta por um problema imaginário. Ou está cansada ou não conseguiu se maquiar ou a luz não favoreceu ou o vento atrapalhou.

Uma foto não autorizada é motivo de longas discussões de relacionamento. Não tente surpreender o seu amor com um ângulo inesperado. Não busque publicar algo que não recebeu o ok. Foto para o público feminino não é amigo secreto, mas inimigo secreto.

Mesmo depois de aprovadas, as postagens experimentam uma quarentena, podendo ser deletadas a qualquer momento. Não tenho certeza se as fotos excluídas das redes na separação são fruto de um ódio do ex ou de um perfeccionismo permanente.

Nenhuma amiga em sã consciência realizará pose acordando, ainda na cama, com a cara amassada do travesseiro. O habitual é começar as selfies depois de escovar os dentes. Depois do banho. Depois de almoçar.

O que eu não tinha reparado antes é que a mulher é absolutamente vaidosa da voz. Estranhei quando a minha esposa despachou um áudio no WhatsApp e reprisou em seguida. Ela escutava a sua própria voz. Como se o recado que enviou para outra pessoa fosse para ela mesma. Ela conversava com as suas amigas e também exercia um monólogo.

Na hora em que mando um áudio, eu esqueço. Áudio é quando estou apressado. Escuto somente as respostas e vou seguindo em frente. Não tenho nenhuma curiosidade com a minha performance. Não é um teste de locutor. Não me preocupo com a rouquidão e a gripe. Até porque depois que remeto um áudio não há como recuperar e apagar. Relaxo se gaguejei, se tropecei, se falei com a língua presa, se pronunciei uma expressão estrangeira errada, se cometi uma gafe, se errei um nome. O que foi, foi – não sofro com os rascunhos do timbre.

Já para a mulher, áudio é também selfie. Olha para o espelho da fala. Vê se ficou bonita. Vê se está afinada. Ajeita o vestido das palavras. Ela faz selfie da voz.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
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Gafes familiares

Amizade é selada na gafe. Amor cresce no constrangimento. É quando a vida dá errado e descobrimos que não somos sozinhos. Eu e a minha mãe temos rounds de comédia ao longo da relação. Episódios engraçados de desentendimentos. E só são memoráveis porque nos perdoamos com o riso depois.

Ela sofreu muito quando eu era pequeno. Eu vivia caindo, costurando a cabeça no pronto-socorro, quebrando vidraças dos vizinhos, roubando frutas, recebendo notificações da direção da escola. Não foi um tempo de calmaria, realmente abusei. E ela esquecia das minhas travessuras com a mesma rapidez que criava outras.

Lembro quando insisti para participar do coral da igreja. Tinha nove anos e voz de taquara rachada. Ela não quis me ofender e me levou a uma audição. Cada um dos candidatos mostrava a potência da voz individualmente. Um passo à frente no altar e os meninos reproduziam um trecho da Aquarela do Brasil. Quando chegou a minha vez, eu perguntei ao regente se a mãe não podia cantar em meu lugar.

Agora a minha mãe devolve na terceira idade tudo o que aprontei na infância. Decidiu ser engraçadinha. Não recebe crítica de ninguém porque é engraçadinha. Ganhou a onipotência de criança, não é responsabilizada por nada já que é fofinha e não fez por mal.

Nestes dias, estávamos em restaurante chique, aquele em que os talheres brilham tanto quanto o espelho e o guardanapo é longo e branco como uma toalha de Ano-Novo. A mãe ficou indecisa com o cardápio e assumiu atitude de aeroporto. 

Ou seja, reparar o que os garçons carregavam nas bandejas para qualificar o seu poder de decisão. Respirei fundo e prometi não brigar. Precisava melhorar a minha paciência e não censurá-la como sempre faço. Até que ela se levantou, dirigiu-se à mesa ao lado e indagou a um homem almoçando se poderia provar a sua comida. Foi tão rápido que não consegui me esconder debaixo da mesa.

Sair com a minha mãe hoje é aguentar não ser mais o personagem principal. Restrinjo-me a um eterno e útil coadjuvante. Nunca terei razão, mesmo quando demonstro equilíbrio e sensatez. Ela é que chama atenção, arranca gargalhadas e rouba a cena.



10 de setembro de 2016 | N° 18631
MARTHA MEDEIROS

O caso Multipalco

As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Todo gaúcho sabe que a admirável dona Eva Sopher, 93 anos, dedica sua vida ao Theatro São Pedro e ao Multipalco, esta obra que parece tão inacabada quanto a Sagrada Família de Gaudí, em Barcelona. O Multipalco está demorando tanto para ser concluído que virou saga, mito, causo.

Porém, o que começou em 2003 com cinco anos de prazo para ser concluído já se estendeu por 13 anos e está mais do que na hora de ter um desfecho decente. Você sabe o que é, de verdade, o Multipalco?

Não é apenas aquela bela concha acústica ao ar livre. Não é apenas o ótimo restaurante Du Atos. O Multipalco é um complexo cultural inédito na nossa cidade e no nosso país. É um local que ministra aulas de música para jovens instrumentistas, é um espaço para teatro infantil, para corpo de baile, para ensaios de orquestras, para seminários. O esqueleto do prédio está pronto e funciona. Acabamento de primeira qualidade, salas amplas, competência na gestão. Falta pouco para se tornar o orgulho máximo dos gaúchos.

Recentemente uma coluna de Alfredo Fedrizzi repercutiu por tratar dos motivos pelos quais tantos desejam sair de Porto Alegre. Óbvio que há lugares mais atraentes para se viver, mas qual é a nossa contribuição para valorizar os projetos que, como o Multipalco, seriam aclamados em qualquer lugar do mundo?

As maiores construtoras nacionais estão envolvidas até o pescoço em escândalos. Gastaram os tubos com políticos a fim de se beneficiarem com contratos vantajosos. O que conseguiram com isso? Frequentar as páginas policiais. Tivessem direcionado uma fração desses milhões para obras de incremento à cultura, teriam feito diferença no futuro do país, seriam sócios de um progresso efetivo. Mas não.

A população contribui a seu jeito. O máximo que pode fazer é comprar ingressos, prestigiar espetáculos de qualidade, mas não é suficiente. As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença, que podem doar o montante necessário para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Não é supérfluo: se queremos um novo país, fatalmente a mudança passará pela cultura.

Se você conhece quem pode dar um arremate feliz para essa longa história, divulgue o e-mail: presidencia@ teatrosaopedro.com.br. Colabore compartilhando essa coluna e essa preocupação. Dona Eva, repito, tem 93 anos. Não merece ser privada de ver concluído um projeto que não é para ela, mas para nós, para as próximas gerações, para a realização de uma evolução que precisa deixar de ser utópica.



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
LYA LUFT

A filha pródiga

Em maio de 2004, mais de um ano depois de começar a coluna que mantive aqui na Zero Hora – acho que na mesma página 3 –, escrevi uma despedida. Ia sair para o grande mundo, coração pesado porque queria ir mas queria ficar, ou levar comigo tudo: o jornal, os colegas, os leitores. Porém, a vida nem sempre nos permite essas escolhas totais, e o convite era, como disse com muita elegância Jayme Sirotsky, irrecusável. Ele aliás acrescentou, com aquele humor de quem fala de um amigo, “eu sabia que o Civita ia te roubar da gente”.

Por 12 anos, escrevi na Veja. Porém, toda relação acaba, pela morte ou pela separação. Foi um divórcio amigável. Mas sempre é ruim. Entre outras coisas, senti falta disso que fiz desde muito jovem, com idas e vindas: escrever uma coluna em revista ou jornal. Foi então que chegou um e-mail da Cláudia Laitano, com recados de Marta Gleich. No começo, como em geral faço, não acreditei muito. Mas, sim, reafirmou a Cláudia, me queriam, me convocavam, coluna semanal na Zero. Só acreditei mesmo quando, uma semana depois, a própria Marta me ligou, “vamos combinar tua vinda para acertar pessoalmente”.

Até ali, só o marido sabia, esse que sempre me estimula. Então, comuniquei à família. Filhos aplaudiram: “Nota 10, mãe”, “Que legal, mãe, eu sabia” e “Mãe, estás voltando para casa”. A turma adolescente se animou, o rapaz me abraçou, e as meninas me olharam como se vissem a Beyoncé: “Que irado, vó!! Como tu conseguiste isso?”. Baixei uns olhos modestos: “Quando a gente envelhece, vai conseguindo umas coisas...”.

De modo que voltei para esta casa, onde estou em grandes companhias, como o querido Verissimo, Martha, Cláudia, David, Rosane e outros, e ao lado do Tulio Milman – que já me chama de “vizinha”. Sentir que se pertence a um grupo onde reinam respeito e amizade é ótimo, sobretudo para um bicho da sua toca, como esta que aqui escreve. Ah, e não vou ter de escrever sobre política!!!!!! Maravilha, pois, do jeito que as coisas estão, até eu ando sem palavras – o que é raro. Vamos falar desta complicada e fascinante criatura a que chamamos “gente”. Compromisso mesmo é não decepcionar.

Espero que gostem de mim, que me elogiem, me critiquem, me xinguem, façam sugestões – como se faz nas boas famílias. Para mim, escrever é falar ao pé do ouvido do leitor, amigo imaginário da minha vida adulta. Em criança, tive uma família inteira deles, diminutos, sentados no peitoril da janela do meu quarto, onde tínhamos grandes e animadas conversas. Talvez fossem duendes, sempre de roupa e gorrinho verde pontudo. Não lembro do que falávamos, mas eram ótimos, aqueles meus amigos inventados.

Termino esta primeira coluna citando mais ou menos o que escrevi naquela despedida 12 anos atrás, que a Marta Gleich (a quem agora chamo “the boss”) já em parte revelou: o “nunca diga nunca” é muito real. Talvez eu volte. Nunca se sabe o que pode acontecer. Pois aconteceu. Um novo ciclo se inicia, como tantas vezes em tantas coisas da vida. E tranquilizem-se, meus novos amigos, imaginários ou não: vocês não vão precisar usar gorrinho verde.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016


07 de setembro de 2016 | N° 18628 
MARTHA MEDEIROS
Aquarius


Ando desconfiada da minha capacidade de avaliar obras cinematográficas, pois a mais recente estreia do único ídolo que tenho na vida, Woody Allen, não me arrebatou como eu esperava. Fui preparada para gostar, mas devo ser uma das raras pessoas a ter achado Café Society razoável, nada além disso. Diante da minha inesperada decepção, considerei que o problema era eu e insisti: entrei numa sala de cinema para assistir a Aquarius preparada de novo para gostar. Mas o inesperado aconteceu novamente: gostar foi pouco. Saí completamente arrebatada e comovida.

Por onde começar? Talvez enaltecendo a interpretação incrível de Sonia Braga. Ela está perfeita no hiper-realismo que o diretor Kleber Mendonça Filho impõe como meio de contar sua história: somos voyeurs de cenas que não parecem ter sido escritas e ensaiadas, elas simplesmente existem como existe a nossa vida, exatamente igual.

Aquarius mostra a maneira como Clara, uma mulher viúva, com três filhos adultos e que passou por um câncer de mama, reage à insistência de uma construtora para que ela venda o apartamento onde viveu quando jovem, depois com o marido e as crianças, até a solidão madura e bem resolvida de hoje. Ela é a única moradora de um velho prédio em frente ao mar, e não vê motivo para sair dali, mesmo que todos os seus vizinhos já tenham cedido e se mudado.

Aquarius fala sobre integridade. Sobre a dificuldade de abrir mão daquilo que nos constitui, do nosso edifício interno, onde abrigamos nossos valores, mesmo que eles pareçam desatualizados. Clara nos encanta, mas sua teimosia nos confunde: por que ela não vende logo o apê e se livra das incomodações? Porque, mais do que um apartamento, ele é a fortaleza que resguarda o caráter de sua dona. Mais do que um imóvel, é a extensão de seu corpo. A resistência dela não é teimosia. É dignidade concreta.

Hoje em dia, quase ninguém mais percebe nossos alicerces, aquilo que nos sustenta emocionalmente. No início do filme, uma jovem vai entrevistar Clara, que é expert em música, colecionadora de vinis, mulher de sensibilidade apurada. Dias depois, quando Clara lê no jornal o título que escolheram para a matéria, desilude-se um pouco mais: as pessoas nem ao menos nos escutam. Não quando nossa verdade não dá audiência, não gera lucro.

Somos os últimos sobreviventes de uma era em estado terminal. O analógico e o digital quase não dialogam mais, e a emoção tenta prevalecer sobre a razão, mas até quando? Clara sabe que há outros cânceres que nos corroem e que também deixam cicatrizes – a ganância, entre eles. Mas se ela venceu um, vai tentar vencer todos

terça-feira, 6 de setembro de 2016



06 de setembro de 2016 | N° 18627 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

DECADÊNCIA, ACAMPAMENTO E BRAVATA


O governo do Estado atrasa salário, falta segurança, nomeia-se um secretário problemático para a área, o futuro é cinza, tudo parece decadência, mas o pessoal já está no Parque da Harmonia acampado. Algum paradoxo nisso? Talvez não, ainda mais que o Acampamento Farroupilha entrou para a rotina anual da cidade. No começo ainda havia algum estranhamento, mas agora dá a impressão de que acampa-se ali desde antes das charqueadas e da invasão de Zeca Neto.

Nada tenho contra o fato ou as pessoas envolvidas, que estão fazendo o que lhes parece interessante e não aborrecem os outros, até pelo contrário, mas não me canso de me espantar com a coisa. E me ocorre que acampar ali, em plena cidade, é uma forma enviesada de bravata. Escrevi um pequeno texto sobre isso um tempo atrás, quando me dei conta de quão profundamente arraigada entre nós é essa forma cultural.

Basicamente, a bravata é um sucedâneo do duelo, do confronto mano a mano, ou mesmo da guerra, em sentido amplo; a bravata é uma simbolização do fantasma da fronteira, uma maneira encontrada pela cultura sul-rio-grandense, essa de origem estancieira e guerreira, para continuar lutando com inimigo. A estrutura básica da bravata é a mesma da payada, ou do repente, o desafio de vencer o outro num torneio, verbal ou outro ainda mais imaterial, em todo caso simbólico, para ser o último a dizer alguma coisa, para não perder a pose, para manter o aspecto de guerreiro vencedor, triunfante sobre o adversário.

O acampamento é uma fala sem palavras: tu, cidade, achavas que eu tinha me rendido, mas nada disso – cá estou eu, me afirmando contra ti. Com celular e internet, mas contra a hegemonia da modernidade urbana.

06 de setembro de 2016 | N° 18627 
CARPINEJAR

Meu nome é legião

Quando a comida apresenta muitos nomes, coisa boa não é. Certamente a refeição enfrenta uma grande oposição. Mocotó, por exemplo, é dobradinha, é bucho, é cassoulet, é mondongo. Ele tem vários nomes somente para a mãe enganar o seu filho.

– O que tem hoje para comer? Mocotó de novo?

– Não, hoje é mondongo. – O que tem hoje para comer? Mondongo de novo?

– Não, hoje é cassoulet. – O que tem hoje para comer? Cassoulet de novo?

– Não, hoje é dobradinha. – O que tem hoje para comer? Dobradinha de novo?

– Não, hoje é bucho.

Não é fácil a tarefa de tornar agradável uma combinação feita do estômago, tripas e patas do boi. É necessário abafar a verdade com muito ovo picado, toucinho, linguiça, azeitonas, feijão branco e especiarias.

Repare que os pratos unânimes só têm um batismo, uma única graça: churrasco, feijoada, macarronada. Nenhum subterfúgio. Nenhuma frescura. Prato tradicional consagra a simplicidade, não enrola e não depende de sinônimos.

Já o mocotó é polêmico, devoto de uma legião equivalente de inimigos e adoradores. Ou é amado ou é odiado.

A questão é que se não fosse barato nem existiria. Mocotó é justificado pelo custo-benefício. Não exibe glamour. Nunca será servido em casamento e formatura. Nunca será o almoço para rifa de uma igreja. Nunca será o cardápio para o Dia dos Namorados.

Afora a sujeira e o cheiro que produz. A vontade de quem faz é pedir emprestada a cozinha do vizinho. A casa ficará empestada por uma semana.

Sem contar tudo o que sobra do panelão, pois mocotó não aceita diminutivos. Seu preparo é destinado sempre a um batalhão. Toda geladeira de gente normal guarda potinhos eternos de buchada em seu congelador– pode conferir! Caso não seja seu, é herança de um antigo morador.

Mocotó é bandido. Muda de nome ao sair do país. Empreende uma cirurgia plástica com ajuda de temperos, falsifica o passaporte, adultera os registros. Em Portugal, anda pelas mesas impunemente como mão de vaca. Na Espanha, usa o disfarce de callos a la madrileña.

Assim constrói a sua fama de vilão da infância, multiplica as suas ingênuas vítimas pelo mundo e jamais é capturado pelo faro dos cães pastores da Polícia Federal.

sábado, 3 de setembro de 2016


03 de setembro de 2016 | N° 18625 
CARPINEJAR

Táticas para ser visto pelo garçom


Garçom no Rio de Janeiro é como sogro: a princípio não gosta de você. Diferentemente de outras cidades onde você senta e é logo visto, lá você senta e desaparece. Precisa fazer coreografias desesperadas para ser atendido. Receber o cardápio pode significar a sua morte.

O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais ganhar atenção.

Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele não é garçom, nasce maitre.

Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.

Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de sobrevivência na noite.

Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e esbanjei o poder de persuasão.

Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora, de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:

– Por favor, Alberto! – Alberto? – Gentileza, Alberto?

Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10 segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas, um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.

Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o canastrão diante do 10% opcional:

– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.

– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.


03 de setembro de 2016 | N° 18625 
MARTHA MEDEIROS

Dublê


Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação. Dublês, enviem seus currículos. Estou contratando.

Cena 1. Era para eu estar concentrada em frente ao computador escrevendo uma coluna para a próxima semana, mas a inspiração é zero e nem posso alegar que nada está acontecendo ao meu redor. Como não? Só que travei. Cansei. Um dublê de colunista, por favor. Eu vou até ali na cozinha tomar um copo d´água e volto em um ano.

Cena 2. Estou paralisada diante das vertiginosas demandas digitais. Inúmeros e-mails sem resposta, milhares de curtidas que não dei nas postagens dos amigos, o site do banco está fora do ar, esqueci a senha da conta jurídica, entrou um vírus, a navegação está lenta, mandei um WhatsApp comprometedor para a pessoa errada. Preciso de um dublê educado, zen e especialista em TI. Enquanto isso, vou até ao banheiro escovar os dentes e retorno em dois anos.

Cena 3. Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação.

Cena 4. Minha mãe reclama que estamos nos vendo pouco. Falamos todos os dias pelo telefone, mas isto não conta. Dublê, visite-a, leve revistas, chocolates e não se esqueça de tirar duas ou três selfies para eu postar no Face, caso ela invente de entrar com uma ação contra mim.

Cena 5. Blitz. Eu bebi meio cálice de vinho, mas isto já é suficiente para prisão perpétua e apreensão do veículo. Dublê, dirija meu carro e esteja sóbrio. Eu vou até ali no bistrô beber o resto da garrafa com minhas amigas e volto direto pra casa, a pé.

Cena 6. A expressão “um aperto no peito” deixou de ser figurativa para ser real. O nome disso, se não for princípio de infarto, é angústia. Dublê, são tempos difíceis. Se alguém quiser bater boca, me represente enquanto medito até o próximo sábado.

Cena 7. Uma filha está usando um alargador na orelha. A outra abandonou a casa e o emprego para se aventurar pelo mundo. Minha funcionária pediu adiantamento, o segundo neste mês. Estou precisando tonalizar o cabelo de novo. Minhas unhas estão um lixo. Engordei três quilos e justo agora minha instrutora de pilates saiu de férias, e a terapeuta também. Você não é multitarefas? Dublê de mulher tem que ser.

Cena 8. Ao acertar minha participação num evento literário, sou avisada de que preciso imprimir três vias do contrato e reconhecer firma em cartório. Pelo visto, há muitos escritores falsificando suas assinaturas por aí. Preciso de um dublê despachante pra ontem.

Cena 9. Tratamento de canal. Ressonância magnética. Ecografia. Por favor, marque as consultas e vá no meu lugar, pode usar meu plano de saúde.

Cena 10. Não acredito. Ele quer discutir a relação. Dublê!!

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