sábado, 1 de julho de 2017




01 de julho de 2017 | N° 18886
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A ESPONTANEIDADE DO AFETO

O transplante intervivos, esta modalidade que tantas vezes tem salvado pacientes que pela gravidade de condição clínica não teriam chance de esperar o tempo indeterminado da obtenção de doadores cadavéricos, revela na busca dos doadores vivos os mais variados tipos humanos capazes de enfrentar essa extraordinária experiência física e emocional.

Mesmo se tratando de parentes, porque esta é uma exigência legal, a impressão dominante é que a doação espontânea e determinada é quase uma exclusividade de mãe e pai. Nos demais familiares, percebe-se algum grau de dúvida, que geralmente não é assumida, e um medo compreensível que é sublimado, poupando o doador de pecha de egoísta e insensível, sempre pronta para ser imposta por alguém que foi considerado incompatível.

A Kathleen, com tipo sanguíneo raro, procurou a Clínica Mayo depois de dois anos de espera e piora gradual do estado de fraqueza e consumpção por falência hepática, e então foi considerada a hipótese de transplante com doador vivo. Um filho extremamente carinhoso acompanhou todos os exames e dormia no sofá para que a mãe não ficasse dependendo da campainha para chamar as atendentes.

Quando o grupo de transplante quis saber quem seria o doador e se ela tinha mais filhos, ela disse que sim, tinha um filho, seis anos mais jovem, que morava na França, mas que certamente viria, se fosse necessário. Nesta altura, o filho presente aparteou e disse que ele seria o doador e que não precisava chamar mais ninguém. O clínico então explicou que esta escolha não era tão simples, que múltiplos testes teriam de ser feitos, e que alternativas seriam importantes, se eventualmente ele não fosse compatível. Ele foi seco e definitivo: “Eu vou ser”. E de fato foi das melhores compatibilidades que se poderia conseguir.

E tão impressionante quanto a similitude imunológica era a história que os unia. Afinal, ele era adotado. A mãe, uma assistente social, na época com 32 anos, casada há quase 10, tentara de todas as maneiras engravidar, sem conseguir. Uma tarde, foi levada por uma colega que lhe pedira auxílio com os pequenos do abrigo de menores, à espera de adoção. Ela contou que, quando bateu o olho no Steve, então com quatro anos, o coração deu um salto no peito, e não desgrudaram mais. No final da tarde, enquanto arrumava as suas coisas na bolsa, ele abraçou uma das suas pernas com a determinação de quem nunca mais soltaria. 

Comovida com a espontaneidade do afeto, negociou com a diretora e combinaram que ele retornaria na manhã seguinte. Em casa, de banho tomado, saciou a sua fome ancestral e foi colocado para dormir num quarto menor, anexo à suíte do casal. A reação do marido, que chegou logo depois, foi intempestiva: “Não quero esse pirralho com seus genes desconhecidos na minha casa. Devolva-o amanhã cedo e acabou!”. Enquanto o esposo dormia, ela chorou muito, em silêncio. Na manhã seguinte, o marido resolveu dar mais uma olhada no moleque, antes de descer para o café e a vida.

Lá do quarto, gritou: “O teu pestinha sumiu”. Em sobressalto, ela descobriu a cama vazia e sem as cobertas. Desceu as escadas correndo com o coração na boca e parou. O garotinho estava acomodado sobre o edredom que improvisara como colchão, e dormia ao rés da porta. E, então, eles entenderam: o moleque devia ter ouvido a conversa deles e armara junto à saída da casa uma trincheira para resistir ao abandono. Era frágil, mas a única que ele conseguira erguer. Tomaram café em silêncio, olhos fixos naquele montinho de gente que ressonava encolhido, em posição fetal. Ao sair, o marido recomendou: “E não esqueça de comprar umas roupas bem bonitas para o nosso garoto!”.

Ao ouvir essa história, que a assistente social me contou aos solavancos, ninguém se surpreendeu com a compatibilidade absoluta. Os tais genes continuavam desconhecidos, mas a amostra era da melhor qualidade.

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