quarta-feira, 30 de agosto de 2017


30 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Palhaços


Nem duas, nem três: são muitas as pessoas que têm medo de palhaço, ou tiveram, quando crianças. Não lembro se eu tinha também, mas não me sentia confortável na presença deles. Em primeiro lugar, porque acho desagradável ter a obrigação de rir. Fico gelada quando alguém pergunta: "Conhece a piada do...?". 

Ai, meus sais. Geralmente digo que conheço e pulo para o próximo assunto, mas certos momentos exigem bons modos e a gente então escuta e oferece aquele hahaha amareladíssimo. Torço sempre para que o contador seja excepcional, porque é ele que torna a piada boa ou não.

Mas voltando ao palhaço. Além de ele personificar a obrigação do riso, ele me parecia apenas um bobão que tratava a todos como crianças, e eu não queria saber dessa condescendência. Balde com água de papel picado? Acho bonito e poético, desde que eu esteja assistindo ao espetáculo Fuerza Bruta ou qualquer outra encenação adulta. 

Eu devia ser meio piradinha, mas o fato é que sempre considerei performance de gente grande mais divertida, tanto que meus palhaços preferidos são Woody Allen, Lenny Bruce, Monty Python, a turma do Porta dos Fundos e, aproveitando a deixa para homenageá-lo, Jerry Lewis, que acabou de sair de cena.

O único palhaço de circo que eu gostava não trabalhava em circo, mas na tevê: Renato Aragão. Sim, eu gostava dos Trapalhões, mesmo eles sendo politicamente incorretos, ou talvez por isso.

Pra terminar minha lista de implicâncias, havia o fato de o palhaço estar sempre paramentado com aqueles suspensórios caretas e aquele nariz vermelho manjado - a Lady Gaga, em início de carreira, tinha mais criatividade. Já o disfarce do Batman eu curtia, pois o traje de vinil preto, com capa, me parecia cool e sexy. Piradinha e depravadinha.

Bozo? Fala sério.

Mas fui conferir Bingo, o Rei das Manhãs, porque o cinema é uma fantasia que me interessa, e adorei o filme, que vai muito além da mera biografia. Vi ali um homem. Adulto. Impulsivo. Atrevido. Alterado. Valente. Maluco. Um cara que se joga, que se dá bem e que se dana. Que tem uma história, e ela não é uma piada.

Além da atuação intensa e apaixonante de Vladimir Brichta, o filme ajuda a matar a saudade de Domingos Montagner, que muito antes de ser galã da Globo trabalhava como palhaço e dignificava ainda mais essa profissão - o palhaço é um artista. 

O problema sou eu, que, mesmo tendo sido uma menina feliz que usava maria-chiquinha, que andava de bicicleta, que adorava boneca, que brincava no mar com uma planonda vermelha e que lia gibis, já estava de olho na vida adulta, onde o picadeiro é bem mais amplo, o texto bem mais longo e a graça e a desgraça dão-se as mãos sem marmelada.

martha.medeiros@terra.com.br

sábado, 26 de agosto de 2017


26 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

O caráter que se revela na confissão
Contar um segredo é a triagem do caráter. Ou o segredo liberta ou aprisiona. É confessando algo de que nos envergonhamos que saberemos se a pessoa é a nossa amiga ou não. Não tem teste tão veemente, com efeitos mais imediatos.

O confessionário prova se o outro é leal. Expor uma lembrança triste a quem não é de confiança logo vira chantagem, logo vira moeda de troca, logo vira favor. Pode não espalhar para os demais, mas usará a informação para obter vantagens e transformar a culpa em superioridade.

Aquele que não é amigo se aproveita da fragilidade para garantir benefícios. Fortalece a vítima para desmerecê-la. Levanta para cima, diz que o segredo é nada, dissuade o medo, para rir depois da queda.

Não é um amigo, porém um inimigo em potencial, um adversário disfarçado de bons modos. No fundo, não tem escrúpulos. Aproxima-se para impor os seus interesses. Está jogando sujo para ganhar recompensas fáceis.

Ele se faz de compreensivo e compassivo com o objetivo de manipular a relação. Há como prever o Judas antes da confissão. Pois Judas trai com um beijo. Será alguém que se mostra muito carinhoso de uma hora para outra. Tem pressa de saber tudo a seu respeito, sem nenhuma razão aparente. Aparece forçando a intimidade, com convites generosos e apoios nababescos.

Cuide com o que fala. Porque aquilo que falar mostrará a natureza de suas companhias.

A decepção virá rapidamente na forma de um insulto e de uma ironia. No primeiro desentendimento, o túmulo de cimento das palavras não resiste às marteladas da profanação. A traição será sempre a violação de uma confidência. Os suspeitos não mudam com o tempo. É um colega de trabalho concorrendo com você. É um antigo afeto querendo vingança. É um familiar ressentido com o passado.

Amigo que é amigo escuta e esquece, e jamais volta para o assunto. Ouve e apaga. Escreve na água, para a onda levar. Escreve na areia, para o vento cobrir. Cumplicidade é como bebedeira, nunca lembrar o que aconteceu durante a vulnerabilidade da conversa.

Amigo que é amigo mantém a decência de uma gaveta, de um cofre, de uma chave. Demonstra a sobriedade educada e gentil de ajudar e desaparecer. Já cumpriu o papel de dividir as dores e frustrações. Não alimenta a ambição de ser maior do que o silêncio.

CARPINEJAR


26 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Amor à moda antiga


Um amigo disse pro filho, dia desses, antes de dormirem, que o amava daqui até o céu. O garoto ouviu, levantou as sobrancelhas, calculando a distância impressionante. Olhou pro pai e, na tentativa de expressar amor de volta, falou: Eu te amo tipo daqui até o ventilador.

Somos uma geração de pais carinhosos. Dizemos "eu te amo" como quem diz "bom dia". É tanto "eu te amo, filho" que tenho medo que não valorizem. Às vezes, inventamos novas formas de comparação. "Amo você daqui até a lua." "Amo você mais que tudo." "Amo você 10 vezes infinito." Já ouvi tantas vezes de minhas filhas e valorizo cada uma delas. Todas me dão água nos olhos. Abracei-as mais do que abracei minha mãe, acredito. Tenho mais fotos delas, guardadas em HDs e com backup na nuvem, do que as câmeras de 24 poses jamais conseguiriam tirar.

Em geral, tivemos pais mais distantes. Queriam que fôssemos durões. Meu avô trabalhava na roça, cortou cabelo e dirigiu caminhão pra dar estudo pra minha mãe. Esta, por sua vez, criou sozinha o filho e sustentou a casa com salário minguado. A vida, realmente, era mais séria pra eles. Nada de delicadezas. Nada de desperdício de comida. 

Nada de tablet e iogurte. Nada de "eu te amo" terça à tarde. Abraços eram ocasiões especiais, Natal e olhe lá, que a vida não é fácil e você tem que estar preparado. Mas, quando vinha um carinho na cabeça, rapaz, a gente ficava bobo. Um pouquinho de colo, quando a gente já era grande demais, era o céu. Beijo de boa noite, paraíso.

Uma amiga contou que o pai nunca lhe disse "eu te amo". Ela procurava carinho, ele não era muito de papo. A conversa era toda com a mãe. O pai era comunicado e comunicava, não havia diálogo.

De vez em quando, ele botava as crianças pra dormir. Era assim: os três filhos de banho tomado deitavam, cada um em sua cama. O pai entrava no quarto, o silêncio respeitoso tomava conta do lugar, e o senhor começava a desenrolar os mosquiteiros que ficavam em cima da cama deles. Estendia a proteção cuidadosamente sobre os filhos, sem dizer uma palavra. 

Olhava com atenção pra ver se nenhum mosquito tinha ficado do lado de dentro. Verificava se não havia frestas para outros mosquitos entrarem. Fazia isso para cada um dos três filhos, sem trocar uma palavra. Depois de tudo pronto, ia até a porta e dizia: "boa noite". As crianças respondiam: "boa noite". O pai se ia. E as crianças sentiam como se tivessem ouvido "amo vocês".


26 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Na calada da noite

Na calada da noite, quando o silêncio é tão denso que não se escuta nem o espirro de um guarda noturno, meus pensamentos delirantes despertam, e meu cérebro começa a azucrinar.

Eu ordeno a ele: quieto! Estamos na calada da noite, essa expressão não te sugere nada?

Ele não me dá trela e passa a listar as preocupações que me aguardam no dia seguinte. Amanhã, você precisa trocar o horário da aula de inglês com a Karin, será que ela estará livre na quarta? Amanhã, você precisa acrescentar batata-doce na lista de compras do supermercado. Amanhã, você precisa checar que barulho é aquele que seu carro está fazendo quando dá ré. 

Amanhã, você precisa adicionar mais 10 minutos de cenas no roteiro do filme que está escrevendo e dar uma sacudida na personagem principal, ela ainda está meio desmaiada. Amanhã, você precisa escrever mais duas crônicas inéditas de qualquer jeito, ou não conseguirá viajar tranquila pro Rio. Amanhã, você precisa checar se a camisa branca está limpa para a palestra.

São 3h30min da manhã, e a noite segue calada, mas meu cérebro não fecha a matraca. E o pior está por vir: ele logo entrará em sessão de terapia. Adora fazer isso no meio da madrugada.

Tenho a impressão de que aquele texto que você publicou duas semanas atrás foi um recado para uma amiga sua. E não ter respondido aquele WhatsApp de anteontem foi uma provocação estúpida. Se você tem vontade de largar tudo, por que não larga? Aliás, comece largando o pé da sua filha, deixe que ela viva do jeito que quiser. Não acredito que você vai falar de novo sobre aquela vez em que perdeu o avião porque ficou trancada no banheiro. Óbvio que você não queria embarcar.

São 4h30min da manhã, nunca fiquei presa em banheiro de aeroporto, então é sinal de que a terapia desandou e agora estou entrando naquele período dramático em que recebo a visita dos meus demônios, sempre pontuais.

Essa mancha no seu braço. Está com a maior pinta de ser um melanoma. Você precisava ter tomado três cálices de vinho? Marque uma hora no gastro se não quiser morrer de cirrose até a próxima sexta-feira. Você não vai viver muito, sabe disso. A dor no joelho é da idade, mas o aperto no peito é problema cardíaco grave, você tem um mês de vida, você tem duas semanas de vida, você tem que deixar um bilhete de despedida para seus entes queridos, tchau querida, acho que você não vai nem acordar.

São 6h da manhã, o guarda noturno espirra, e eu acordo. Fim de mais uma tagarelice cerebral numa noite calada coisa nenhuma.

MARTHA MEDEIROS

O espelho sobre a mesa de jantar

Desde quando me lembro, família tinha para mim uma importância extraordinária. Meu pai a considerava muito. Era a árvore, com raiz e galharia, com sombra, com tempestade, ramos caindo, raios atingindo, mas estava ali, a velha árvore. Eu, menina intrometida, de orelhas em pé ouvindo conversas adultas, pois durante alguns anos fui a única criança na casa, absorvia aquelas tramas, dramas, comédias, e coisas ternas e alegres que passavam como fios de teia de aranha entre tantas pessoas.

Eu adorava os almoços: avôs, avós, tios, tias, primos, primas. Aquilo me dava uma extraordinária sensação de proteção e pertença. E tudo se refletia num grande espelho diante da mesa de jantar. Também me fascinavam - não foi por nada que décadas depois comecei a escrever sobre laços familiares, embora nada a ver com aquela minha família - as conversas e posturas, que em qualquer grupo podem passar da inocência à bizarrice. Sentada à mesa, tendo de me esticar para manejar os talheres, embora posta sobre almofadas, com as perninhas balançando no ar, mais do que comer ou beber meu suco, eu espiava as pessoas.

Tomava um distanciamento involuntário, que me divertia e assustava: as pessoas pareciam salsichas enormes, com tufos de cabelo em cima, buraquinhos com olhos dentro, que giravam, outro buraquinho que se abria e fechava para receber comida ou soltar palavras. Ali aprendi que palavras podem ser plumas ou punhais - e que significam muito mais do que aquilo que expressam. Que uma inflexão muda o sentido, de amoroso para crítico; e que as mãos complementam tudo, com arabescos bailarinos por cima dos pratos.

Talvez tenha nascido assim meu encanto pelas palavras, pelo que dizem nos sons ou letras, e mais ainda nos espaços brancos ou silêncios. Ou isso simplesmente veio comigo como a cor dos olhos e dos cabelos, um sinal qualquer. Para mim, foram sempre motivo de felicidade, palavras como balas de tantos sabores e cores, ou pedrinhas coloridas que eu revirava na boca como se fossem pitangas ou uvas.

Sou uma mulher das palavras, e família tem entre elas um lugar especial: mais do que dissidências, importam as semelhanças; mais do que contradições, reinam os encontros; mais do que as ausências, predominam os gestos, as vozes, ou os sinais num WhatsApp. Uma dor por mal-entendidos pode ser curada com a palavra certa; uma ilusão alegrinha pode virar ferida, mas a gente nunca tem certeza...

Esse berço, esse colo ou esse peso chamado família pode magoar, irritar e salvar se tivermos a sorte de nascer num grupo amoroso. Nas horas mais escuras, essa rede pode nos impedir de cairmos no alçapão embaixo do poço. Nada como lembrar brincadeiras infantis entre irmãos, carinho de pais abrindo a porta com braçadas de orquídeas, dessas pequenas meio silvestres que florescem presas aos troncos das árvores no jardim. Nada como jogar conversa fora com quem se recorda, e nada como semear recordações futuras para os que, tão jovens, ainda nem têm passado.

Não sei onde foi parar aquele grande espelho, com um raro tom rosa-antigo. Quem sabe ainda estamos lá, presos: imortalizados os momentos felizes, os risos, brindes, lágrimas - e todos nós, como éramos um dia.

LYA LUFT

quinta-feira, 24 de agosto de 2017



23 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Nossos velhos moços

Peguei a foto e observei. Ela tinha 38 anos. A bordo de um vestido preto decotado e elegante, parecia uma embaixatriz moderna, uma mulher do jet set, e ele, a seu lado, aos 40, usava terno e gravata e tinha alguns poucos fios grisalhos no cabelo, apenas o suficiente para emprestar uma maturidade charmosa ao look. Ambos poderiam estar em um anúncio da grife Giorgio Armani ou numa festa em Montecarlo. 

Seus sorrisos largos e peles bronzeadas indicavam uma vida de atividades ao ar livre e programas culturais. Eles adoravam ir a concertos e ao teatro - tudo indicava que teriam uma longa e divertida vida pela frente, e de fato tiveram e ainda têm. Mas eu, no canto esquerdo da foto, espiando com o rabo de olho para aqueles dois, lembro bem: só pensava em como eram velhos meus pais.

Ah, a ingênua soberba dos 15 anos. Recordo aquele baile onde nós três fomos fotografados juntos: eu e meus pais matusaléns. Em minha completa ingenuidade e ignorância, acreditava que juventude era uma calça azul e desbotada e que ninguém era mais livre e sábio do que nós, os de menor. 

Os campeonatos de surfe na Guarita, a piscina do Juvenil, os shows no Gigantinho, do que mais precisaria uma adolescente alienada para querer parar o tempo e ser feliz para sempre? Ficava apavorada com a ideia de me tornar uma anciã como aqueles dois senhores a quem, naquela noite já distante, eu vi dançarem com uma desenvoltura que me fez cobrir o rosto com as mãos. Que mico, meus pais ainda vão pra pista nesta idade.

Hoje reparo que minhas filhas me dirigem um olhar atravessado quando uso um vocabulário vintage e penso que elas, da mesma forma, devem me enxergar como um fóssil do Tiranossauro rex. Ou talvez não. Talvez elas tenham outra visão da passagem do tempo e, ao me verem ir a shows de rock, viajar com uma mochila nas costas, namorar e ainda fazer planos para o futuro, compreendam que não existe mais juventude e maturidade delimitadas, um antes e um depois. Temos idades diferentes, mas espíritos muito similares. Otimismo meu?

Sendo moças adultas, posso confiar no discernimento delas, mas aos 15, ah, aos 15 víamos nossos pais envoltos num tom sépia, cheirando a naftalina e tendo um comportamento totalmente sem noção. Se eles ousassem transparecer alguma jovialidade, eram tachados por nós de ridículos. Adolescentes adoram achar tudo ridículo.

Até que os adolescentes crescem, atingem a meia-idade que um dia seus pais tiveram e, ao olharem para fotos de uma época em que eles pareciam uns cacos, se dão conta: eles eram umas crianças. Demora até aceitarmos que fomos criados por pessoas tão jovens e aventureiras quanto nós.

martha.medeiros@terra.com.br


22 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Todo mundo tem um pouco

Com a atual evolução da medicina, não haveria super-heróis.

O incrível Hulk, antes de sua transformação verde, tomaria Rivotril e jamais perderia as suas roupas. Poderia até arrumar um trabalho irritante de teleoperador ou de segurança de boate e não mais se irritaria com nada. Batman seria medicado com antidepressivos para contornar o trauma de ter visto os seus pais assassinados em sua frente. Não iria se fantasiar de morcego nem morar em cavernas. Talvez se transformasse em corretor imobiliário. 

Wolverine, com alentadas sessões de hipnose e regressão, superaria seus antecedentes bastardos, já que foi fruto da infidelidade de sua mãe, Elizabeth Howletts, com Thomas Logan, o jardineiro da mansão. Representaria o Canadá na equipe de esgrima nas Olimpíadas. O Homem-Aranha, com aplicação de um forte antialérgico, estaria normalzinho e, no máximo, subiria em andaimes para pintar murais em prédios nova-iorquinos.

Todos têm em comum a sede de vingança. Todos apresentam um defeito hipertrofiado. Ninguém é herói por uma virtude. Mas por uma falha trabalhada ao extremo a ponto de virar uma arma.

Nenhum traz bons sentimentos. Recalques e transtornos é o que provoca os superpoderes. Conservam a humanidade de perdas e dores debaixo das capas e das fantasias invencíveis. Eles procuram a justiça porque sentiram na pele a falta dela.

E a maior parte dos ídolos da Marvel estaria catalogada com sintomas de esquizofrenia ou psicose ou histeria ou dupla personalidade ou borderline.

Com receitas médicas, a Liga da Justiça estaria extinta.

Numa sociedade que endeusa o equilíbrio, que os super-heróis nos devolvam a sanidade. É de se pensar que suportar um naco de sofrimento não é tão grave assim. Gera disciplina e obstinação. Produz entendimento e empatia com outro. Cria referenciais para a superação de adversidades.

Não devemos nos automedicar nem seguir tratamentos indicados por amigos, muito menos prosseguir com a intolerância máxima a qualquer mal-estar. É preciso aguentar um turno de enxaqueca ou cinco minutos de azia. É salutar não resolver tudo na hora com comprimidos. A dor não mata, mas a falta de dor com medicação excessiva é assassina, não ajudando a nos prevenir da dependência e nos tirando a força para nos defendermos, sozinhos e sóbrios, da vida.

Os remédios são um controle falso do corpo. E, se usados com frequência, não de modo especial e provisório, sem a devida orientação, escravizam e alteram o nosso temperamento.

A medicina serve para amparar a humanidade, não substituí-la. Não dá para curar cem por cento os problemas - que é neutralizar a espontaneidade.

De super-herói e louco, todo mundo sempre terá um pouco.

carpinejar@terra.com.br

domingo, 20 de agosto de 2017

Drama médico 'Sob Pressão' é melhor série exibida pela Globo em 2017

Um paciente com morte cerebral, vítima de um acidente com moto, jaz no leito da emergência de um hospital público em uma área carente do Rio. De um lado, sua mãe, religiosa, ainda acredita num milagre e, por isso, se recusa a autorizar doação de órgãos do rapaz. Do outro lado, o diretor do hospital pressiona o cirurgião a resolver logo o impasse, pois precisa dos equipamentos que estão sendo usados para manter o paciente respirando.

"Se você desligar a máquina, o coração para e não tem doação", argumenta o médico. "Mas eu não posso abrir precedente. Encara a realidade, Evandro", responde o diretor. "É o que eu faço aqui todos os dias", suspira o cirurgião. Esta cena, do terceiro episódio, é exemplar das muitas qualidades de "Sob Pressão", série que a Globo está exibindo às terças-feiras, no seu horário nobre.

O primeiro ponto positivo, que logo salta aos olhos, é que o programa, deliberadamente, dá as costas ao que se consagrou como o modelo do drama médico na TV: as séries americanas. Trata-se de um segmento importante na teledramaturgia, desde sempre. E que, no imaginário dos mais jovens, é representado por dois sucessos criados na década passada, "House" e "Grey's Anatomy".

Realizado em parceria com a Conspiração Filmes, "Sob Pressão" ambiciona retratar a realidade da saúde pública brasileira –da falta de recursos, equipamentos e médicos aos muitos dramas do cotidiano, frutos da miséria e da desinformação.

Evandro (Julio Andrade) descobre no segundo episódio que o hospital está pagando R$ 1 milhão por um tomógrafo que, na realidade, custa R$ 500 mil. Samuel (Stepan Nercessian), o diretor do hospital, não vai ganhar nada com a mutreta, mas entende que aceitar o golpe é a única forma de conseguir o equipamento, tão necessário. E convence o seu cirurgião a dar aval à aquisição.

No primeiro episódio, sem drenos para colocar em uma paciente na mesa de cirurgia, Evandro recorre a um pedaço da mangueira utilizada para limpeza. Na definição bem-humorada dos próprios roteiristas, o protagonista é uma espécie de "MacGyver do SUS".

A matéria-prima da série é o livro "Sob Pressão - A Rotina de Guerra de Um Médico Brasileiro" (Globo Livros, R$ 29,90, 136 págs.), escrito pelo cirurgião Marcio Maranhão, com base em sua experiência de 15 anos em hospitais públicos no Rio. Mas o programa da TV vai além do caráter documental, muito bem registrado, diga-se, pelos diretores Andrucha Waddington e Mini Kerti. É entretenimento de primeira, na sua mistura de drama, tensão e, acredite, humor.

O roteiro excepcional de Jorge Furtado (com Antonio Prata, Lucas Paraíso e Marcio Alemão) consegue, em paralelo ao registro dos dramas enfocados, dar alguma humanidade aos pacientes que frequentam o hospital e aos médicos.
Arrisco dizer, ainda faltando alguns meses para o fim do ano, que se trata da melhor obra de teledramaturgia exibida pela Globo em 2017.

Em tempo: seria injusto não registrar que, em 2016, uma outra série de ficção brasileira, com ambição semelhante, buscou retratar a realidade das UBS (Unidades Básicas de Saúde) no município de São Paulo. "Unidade Básica", criada por Helena Petta e Newton Cannito, produzida pela Gullane Filmes, traz Caco Ciocler e Ana Petta como médicos que enfrentam problemas típicos de uma região carente de tudo em São Paulo.

Exibida pelo canal pago Universal, a série tem pontos de contato com "Sob Pressão", mas não alcança um resultado tão forte quanto. Em todo caso, seria um bom momento para o canal reprisar os oito episódios.

Profissionais usam táticas empresariais para se antecipar ao mercado DE SÃO PAULO
Gerir a própria carreira como se fosse uma empresa -e passar a monitorar o mercado e os concorrentes- pode ser uma boa estratégia para um profissional se destacar no mercado de trabalho.
A tática é baseada na "inteligência competitiva", metodologia adotada pelas organizações na qual são coletadas informações públicas, como demonstrações financeiras e tendências de mercado, que ajudam na tomada de decisões, como por exemplo a de lançar um produto.
Para o profissional, o primeiro passo é simples: ele pode fazer uma lista das suas prioridades. "Basta colocar as oportunidades e os possíveis problemas, como uma nova tecnologia ou a automação de parte das suas funções, e os seus pontos fortes e suas fraquezas", ensina Alfredo Passos, especialista em inteligência empresarial.
Assim, fica mais fácil a pessoa se comparar com seus pares e observar se e quando vale investir em algum outro idioma, em um curso livre ou em um mestrado profissional.
Essa análise é chamada de Matriz Fofa (veja abaixo), acrônimo para "forças, oportunidades, fraquezas e ameaças", e é uma das mais usadas nas empresas.
A especialista em marketing Carolline Volpato, 21, criou um plano de guerra parecido com a Fofa ao largar a faculdade e começar a investir, mesmo sem qualificação formal, em sua nova área.
"Por pressão da família, fui estudar química. Mas, ao ver uma palestra sobre marketing, decidi que era hora de correr atrás da minha vocação. Procurei o palestrante, pedi para acompanhá-lo por uma semana e logo depois ele me deu uma oportunidade.
Bruno Santos/ Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 17-08-2017: O Carreiras dessa semana vai mostrar como aplicar conceitos de inteligencia competitiva (observacao de concorrencia, mapeamento de mercado etc). Na foto a coordenadora de marketing da Easy Carros Carolline Volpato (21), que largou uma faculdade de quimica para correr atras do sonho de virar especialista em marketing. Ela monitora concorrencia, vai atras de conversar com outros profissionais que admira e procura cursos para se tornar competitiva. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-SUP-ESPECIAIS *** EXCLUSIVO FOLHA***
A especialista em marketing Carolline Volpato, 21, na Easy Carros, onde trabalha, na zona oeste de SP
Para aprender mais rápido as habilidades necessárias na nova função, Volpato faz planilhas nas quais lista contatos-chave do setor, cursos e eventos setoriais, com prazo para completar as atividades.
"Às vezes, procuro 'coordenador de marketing' no LinkedIn e confiro a trajetória de quem já está onde quero chegar. Abordo alguns para pedir conselhos", diz.
Essa busca nas redes ajuda Volpato a descobrir como melhorar sua formação.
Para Dimitriu Bezerra, especialista em RH da Votorantim, o profissional não pode esperar que a empresa lhe ofereça subsídios para melhorar a qualificação.
"As organizações incentivam essa busca, mas cada um deve saber como melhorar. Essa iniciativa é levada em conta na hora de promover alguém, diz Bezerra.
Falta essa disposição para quem já tem alguma experiência, mas ainda não chegou a cargo de gestão, segundo Raphael Falcão, diretor da consultoria de RH Hays.
"Essas pessoas entraram no mercado em um período de pleno emprego, por isso não veem como a competição aumentou nos últimos anos."
A advogada Daniella Corsi veio da área tributária. Antes de virar coordenadora, estudou direito previdenciário, cível, criminal e ambiental. Objetivo: ser diretora jurídica.
"De seis em seis meses planejo o que preciso fazer para me manter competitiva, e acompanho novidades do direito, como a ética empresarial, que está em alta", diz.
Mas vale ter cuidado ao abraçar novas tendências para não seguir a multidão sem critério, aponta Edmarson Mota, professor de desenvolvimento humano da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Isso porque há áreas da moda que acabam saturadas com a alta oferta de profissionais. Um exemplo é a análise de grandes lotes de dados (big data), que anos atrás era a promessa do mercado.
"Não adianta só seguir os outros, mas tentar identificar o que vem por aí antes da maioria", afirma Mota.
Para criar uma vantagem sobre a concorrência, avaliar a própria evolução pode ser mais vantajoso do que competir com os outros.
"A pessoa deve se comparar consigo mesma um ano atrás. Se não houve melhora, não significa que está estável, mas que piorou", diz Eugênio Mussak, consultor de RH e professor da FIA (Fundação Instituto de Administração).
Gabriel Cabral/Folhapress
São Paulo, SP, Brasil, 16-08-2017: Daniella Corsi, coordenadora jurídica da Votorantim. (foto Gabriel Cabral/Folhapress)
Daniella Corsi, coordenadora jurídica da Votorantim, na sede da empresa em SP
Editoria de Arte/Folhapress
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ANÁLISE

Tolerância social favorece medo e vergonha de vítimas de estupro


Os raros casos de estupro coletivo que chegam ao noticiário no Brasil nos fazem acreditar que se trata de uma forma de violência contra a mulher pontual ou isolada, apesar de brutal e chocante.

Num país em que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, a Folha revela agora que dez são vítimas de estupros coletivos por dia, totalizando 3.526 casos em 2016.

A dissonância entre a percepção sobre a recorrência desses crimes e o volume de registros disponíveis, ainda que marcados pela subnotificação típica das violências sexuais, aponta para o quão distantes estão as mulheres brasileiras da autodeterminação, da igualdade de direitos e da cidadania plena.

Em primeiro lugar, o fato de parte desses estupros serem registrados em foto e vídeo pelos seus autores e disseminados via redes sociais evidencia a tolerância social deste tipo de violência contra a mulher e a presunção de impunidade de seus perpetradores.
Sendo assim, as mesmas imagens que circulam nos meios digitais como peça de ostentação masculina funcionariam como prova do crime no tribunal, se lá chegarem.

Isso porque os abusadores parecem contar com o silêncio das vítimas, uma vez que há vergonha e culpa envolvidas, mas elas estão estranhamente alocadas, não do lado de quem viola o corpo alheio, mas de quem foi violentada. Reforça esse raciocínio torto o descrédito em relação aos relatos das vítimas e as perguntas, comuns tanto quanto impertinentes durante a apuração dos fatos, sobre sua vestimenta, histórico sexual e hábitos, como se fossem determinantes da violência sofrida.

Este tratamento institucional ensina a mulheres e meninas que elas não têm valor e que o silêncio pode ser boa estratégia de sobrevivência. Exemplos difusos na opinião pública foram recentemente identificados por pesquisas em que 26% dos brasileiros responderam que mulheres que mostram o corpo "merecem ser atacadas" (Ipea) e 42% dos homens concordaram que "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas"(Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha).
A este conjunto de fatores, crenças e práticas costuma-se chamar de "cultura do estupro", um ambiente de tolerância, impunidade e desrespeito que perpetua o crime.

O silêncio, no entanto, implica na perda de direitos das vítimas e na aceitação de que estupradores saiam impunes, prontos para novas violações. Seu aliado, o medo, é parte do cotidiano das mulheres, restringindo sua liberdade e participação na vida pública –85% das brasileiras têm medo de sofrer violência sexual.

Desde 2012, porém, esse quadro dá sinais de mudança. No contexto global, foi o estupro coletivo num ônibus em Nova Délhi (Índia) que levou à morte a estudante de fisioterapia Jyoti Singh, 23, que fez eclodirem protestos de mulheres pelo mundo.

No Brasil, foram denúncias de estudantes sobre estupros na faculdade de medicina da USP, em 2012, seguidos das campanhas Chega de Fiu Fiu (2013), #EuNãoMereço SerEstuprada (2014) e #meu primeiroassédio (2015), que trouxeram à tona relatos de famosas e anônimas sobre casos de assédio e estupro, criando uma rede de solidariedade nos meios virtuais.

Como escreveu a historiadora e feminista norte-americana Rebecca Solnit, para quem a denúncia, apesar de difícil, é a chave do combate à cultura de violência contra as mulheres, "o silêncio e a vergonha são contagiosos; a coragem e a fala também".

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