sábado, 6 de outubro de 2018


06 DE OUTUBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

UNANIMIDADES NACIONAIS 

Aos 88 anos, Fernanda Montenegro anda cada vez mais solitária no conjunto unitário das unanimidades nacionais. Não garanto que não haja gente, neste mesmo instante, tentando reduzir essa categoria a um conjunto vazio (Fernanda, afinal, é artista, o que para alguns é sempre motivo de desconfiança), mas se a reputação da atriz permaneceu inatacada até este final de semana de eleições é possível que nem mesmo um bombardeio de notícias falsas no WhatsApp seja páreo para sua credibilidade. Ou assim esperamos.

Fernanda esteve em Porto Alegre na semana que passou para autografar sua autobiografia, receber uma homenagem da PUCRS e, ironicamente, ler textos de um autor que ficou famoso por colocar as unanimidades sob suspeita: Nelson Rodrigues (1912-1980). A frase mais citada do autor, "toda unanimidade é burra", é daquelas máximas multiuso que podem se encaixar em diferentes contextos com diferentes propósitos. Ou seja: tanto pode ser considerada vazia quanto genial. Me inclino a concordar com a ideia de que todas as unanimidades são burras (no sentido de não refletidas o suficiente), com exceção, claro, daquelas que contam com a minha devoção - pizza, Beatles e Fernanda, por exemplo.

O grande mérito da frase de Nelson Rodrigues talvez seja o de plantar a semente da desconfiança, convidando cada um a reexaminar suas convicções de tempos em tempos. Estou indo nessa direção porque a manada rumou para lá ou porque realmente acredito que esse é o caminho certo? O que pode haver de sensato em uma visão de mundo radicalmente oposta à minha? Aliás, qual é mesmo a minha visão de mundo?

Nelson nunca se conformou com a própria falta de unanimidade. Considerado pornográfico pela crítica mais conservadora, não teve, em vida, a consagração de que gostaria como artista. Politicamente, estava ainda mais longe de ser um consenso. Pai de um preso político, Nelson Rodrigues apoiou o regime militar. Era considerado "tarado" pelos conservadores e "reacionário" pelo outro lado. Nenhum dos dois rótulos o definia completamente - o que demonstra como a falta de unanimidade também pode ser burra. Foi preciso que se passassem alguns anos até que fosse possível admirar Nelson Rodrigues pelo que ele tinha de melhor como dramaturgo, memorialista e cronista - sem esquecer das contradições e das limitações que ajudaram a compor sua obra e sua personalidade.

Fernanda despediu-se do público lendo um trecho de O Mito de Sísifo, de Albert Camus (1913 - 1960), sobre o ofício do ator. Para Camus, o ator vive cotidianamente o começo e o fim de uma vida, a do personagem, percebendo, melhor do que ninguém, como tudo é efêmero - tanto no palco quanto fora dele. Ainda assim, persiste. Escrito em plena ocupação nazista da França, o ensaio de Camus reflete sobre a felicidade possível em tempos sombrios. 

O que afirmar, onde se apoiar, como existir - e resistir - quando tudo em volta parece desmoronar ou não fazer sentido? Sísifo é o personagem que continua empurrando uma pedra ladeira acima mesmo sabendo que ela vai rolar ladeira abaixo em seguida. Que seja. Em um mundo que não faz sentido, o que importa é menos o caminho e os descaminhos, mas a vontade de chegar. Neste domingo, para cima com a pedra, moçada. Com ou sem unanimidade.

CLÁUDIA LAITANO

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