sábado, 3 de outubro de 2015



03 de outubro de 2015 | N° 18313 PALAVRA DE MÉDICO

J.J. CAMARGO


Felicidade em fatias

Desconfie dos faceiros crônicos. com esses tipos, todo cuidado é pouco
Como não existe felicidade completa e ninguém consegue ser feliz o tempo todo, aprendemos a desconfiar dos faceiros crônicos: porque afora a monotonia irritante da eterna alegria, eles devem ser muito dissimulados e, com esses tipos, todo cuidado é pouco.

Habituados com as saudáveis oscilações de humor reveladoras da nossa condição anímica, pouco atentamos para os graus possíveis de felicidade que, para alguns felizardos, projetam-se na conquista tão fantasiosa quanto inatingível de uma Mega Sena. A maioria mais modesta se contenta com menos, por exemplo, com o resgate das pequenas perdas, essas que só dimensionam bem os que perderam.

Sempre me comovi com a alegria genuína e, geralmente, solitária, dos velhinhos quando retiram o tampão do olho de onde foi removida uma catarata e se deslumbram com o arco-íris das cores que desbotaram no tempo e que agora estão vivas outra vez. Ou com a euforia da avózinha que vinha sendo interpretada como caduca porque quase sempre o que respondia não tinha nada a ver com o perguntado e que, agora, com o aparelho novo ajustado, retoma o convívio ativo com a família e pede, com um certo orgulho na voz, que as pessoas, por favor, falem um pouco mais baixo porque, afinal, ninguém aguenta mais esta gritaria. Parece uma casa de loucos!

Ou de um paciente transplantado de pulmão por um enfisema que representara uma sucessão de perdas acumuladas durante os 10 anos que antecederam a cirurgia e que, às vésperas de ter alta, chamou-me para um pedido: “Doutor, por favor, me examine porque tem uma coisa errada comigo”. Quando quis saber o que sentia, ele surpreendeu: “A impressão que tenho é de que me entra ar por tudo quanto é lugar!”. Depois de 10 anos de esforço progressivo para respirar, era compreensível que a ausência da percepção dessa atividade gerasse a ansiedade em quem tinha esquecido do simples que é o normal.

O Geraldo fumou cigarro de palha durante os 50 anos em que trabalhou na liberdade do pampa. Nos últimos tempos, a atividade física se restringiu ao mínimo e descobriu que um simples banho podia ser uma tarefa bem desagradável. Encantado com o desempenho de um vizinho transplantado de pulmão, marcou uma consulta para saber quando poderia fazer o seu. Foi duro acompanhar seu desencanto na medida em que as contraindicações para o transplante (mais de 70 anos, infarto prévio) foram anunciadas.

Felizmente, seu enfisema comprometera menos os lobos inferiores e foi comunicado que ele era bom candidato para a chamada cirurgia redutora do volume pulmonar, que permite a retirada de áreas mais afetadas para que as menos comprometidas tenham mais espaço para funcionar. Depois de uma fase inicial de desconfiança, o entusiasmo voltou, e ele foi submetido à cirurgia depois de uma intensa preparação para que fosse operado na melhor condição possível.

Decorridos seis meses do procedimento, voltou para a revisão, e foi logo anunciando: “Não tenho ideia de há quanto tempo não respirava tão bem!”. Ele voltara a trabalhar no campo com tal euforia e a relação de proezas e façanhas era tão entusiasmante, que foi inevitável perguntar: “E como é que anda a sua vida sexual?”. Ele fez um longo silêncio e, acomodando o chapéu sobre o joelho magro, confessou: “Mas o senhor sabe que eu nem me lembro!”. Como escrevi, em algum lugar aí acima, felicidade completa é, quase sempre, uma grande fantasia.

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