sábado, 5 de janeiro de 2019


05 DE JANEIRO DE 2019
MÁRIO CORSO


Milagres

Em sua coluna no caderno Vida desta edição, o doutor Dráuzio Varella afirma que em suas várias e densas décadas de clínica nunca viu um milagre. Correto. Mas como nos situamos frente a quem diz que experimentou um milagre?

Conto um caso de muitos anos atrás, que creio possa ser padrão de tantos. Não fui testemunha direta, sei por terceiro. Uma senhora, na casa dos seus 60 anos, recebe um diagnóstico de câncer. O mesmo que já vitimou sua irmã e outros parentes. O peso genético da doença, neste caso, se confirma.

Com esse diagnóstico, faz um tratamento longo e penoso. Consegue um êxito inicial, mas tem uma recidiva. Insiste nos conselhos médicos e obtém uma segunda vitória, dessa vez duradoura. Mas, entre as terapêuticas, foi visitar João de Deus. Volta encantada e diz a todos que a cura veio dele. O que pensar disso?

Não preciso lhes dizer que, entre os deuses em questão, acredito que a cura veio da equipe do hospital Mãe de Deus. Mas, como psicanalista, acreditaria nessa senhora, pois sempre existe uma verdade dentro de um engano. Minha questão seria mais saber por que ela desenvolveu esse mito sobre sua cura e menos culpá-la por ser ingrata com quem lhe devolveu a saúde. O palpite sobre o desfecho vem do meu informante e eu assinaria embaixo.

Quando caímos doentes de uma forma grave, temos uma queda não menos espetacular na condição psíquica. Surgem quadros que genericamente ficam classificados como depressões, e são, mas com marcas particulares. A ameaça de morte, a impotência em relação à doença, o corpo decaído e dolorido, a vida muito limitada, arrasam qualquer um. A urgência pede que se repense a vida e abre-se, involuntariamente, um momento de reflexão.

A senhora em questão deve ter feito um mergulho em si mesma e recuperou sua vontade de viver depois de ter passado em Abadiânia. Possivelmente se reconectou com suas raízes religiosas perdidas. Portanto, a experiência espiritual lhe curou "também". A questão é que ela sobrepõe uma cura à outra. Vale lembrar que sem a primeira cura não haveria a segunda.

Mas voltando ao milagre, que não é milagre, mas contado como tal. A experiência da doença nos deixa numa passividade absoluta, a fé instala-se como a parte ativa possível. É como se a pessoa dissesse: graças à força da fé, consegui me tirar do buraco, fiz a minha parte. Deus voltou a sorrir para mim.

Voltar das trevas da depressão, da desesperança completa, parece um milagre para quem passou por isso. É como um renascimento, cria-se um gosto pela vida, que se apresenta como nunca antes experimentado. Afinal, se forças ocultas nos destinaram a tanta dor, por que não poderíamos torcê-las ao nosso favor?

Ora, a gratidão que essas pessoas sentem é na verdade pela magia de ter voltado a desejar, pela esperança. A questão é que nem sempre agradecemos da forma correta.

MÁRIO CORSO

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