sábado, 2 de fevereiro de 2019




02 DE FEVEREIRO DE 2019
J.J. CAMARGO

CUIDE DO FUTURO. VOCÊ VAI PRECISAR DELE

Melhor ter cuidado com o que os afoitos chamam de futuro. Achar que tudo o que é novo significa progresso é deslumbramento, e compactuar com o que existe é comodismo. Alcançada essa fase da vida em que a crítica contundente e o elogio exagerado, de tanto andarem juntos, se fundiram, a convicção definitiva é que nada atrapalha mais o sossego da maturidade do que a cumplicidade silenciosa diante do que repudiamos.

Depois de batalharmos décadas em prol de uma medicina mais afetiva e personalizada, denunciando o distanciamento gradual dos pacientes que os estudantes já vêm experimentando, com as antigas discussões à beira do leito transferidas para a sala dos computadores, foi triste descobrir que estamos apenas iniciando uma nova era: a da medicina sem o paciente. A menos que alguém classifique como atendimento médico aquele diálogo meio esquizofrênico entre uma criatura ansiosa, porque se supõe doente, e um potencial terapeuta, mais preocupado em conseguir um bom foco do Skype, e a regulação do som ambiente, depois de resolvida a questão da validação dos dados do cadastro, incluindo a aceitação do número de parcelas no cartão de crédito.

Nem precisa ser muito criativo para imaginar a gama de situações embaraçosas, previsíveis nesse arremedo grotesco, que não consigo chamar de relação médico-paciente:

- Doutor, muito obrigado por aceitar incluir meu nome na agenda, assim de uma hora para outra. Estou vendo que o senhor é bem novinho. Estou meio nervoso, então pedi para minha mulher ficar aqui comigo, porque ela entende mais de doença e desse negócio do computador do que eu.

- Tudo bem. Mas o senhor entendeu que a consulta é para uma pessoa só?

- Sim, mas de vez em quando ela pode me ajudar, não pode?

- Vamos ser mais objetivos: qual é a sua doença?

- A doença o doutor vai ter que descobrir, o que sinto é uma coceira nas pernas, que me enlouquece quando esquenta o corpo!

- O senhor vai ter de colocar a câmera focada na sua perna. Sem ver o tipo de lesão não dá para receitar nada.

- Então vou pedir para a minha mulher calibrar esta coisa, momentinho. Paciência, doutor, ela está tentando, mas parece que o cabo está meio frouxo. Só um pouquinho.

- Bom, o que eu vejo aqui é uma perna lisa, bronzeada e sem lesão. Onde lhe coça, afinal?

- Bronzeada? Mulher, acho que a gente está mostrando a tua perna para o doutor!

- Desculpe, doutor. O suporte do aparelho está meio frouxo, mas já que o senhor viu a minha perna, pode me dizer se essas veias fininhas dá para esclerosar?

- Minha senhora, achei que tinha sido claro! A consulta é para um paciente com problema de pele. Na próxima vez, quando atenderem, peça cirurgia vascular. É o mesmo preço, e como será no nome de outra pessoa, acho que o plano não vai negar o reembolso.

Ou então:

- Doutor, deixei aí na clínica os exames que o senhor pediu na semana passada, e estou com um pressentimento ruim. Se for câncer, não me diga, doutor, sou capaz de me matar!

- Bem, eu, eu, eu acho melhor o senhor marcar uma consulta presencial, que é mais cara, mas a gente vai ter mais tempo de conversar. Se o senhor ligar agora, eu vou poder vê-lo logo depois do feriado da semana que vem. Boa tarde!

Tóin, tóin, tóin.

Não é possível que alguém ache que possa ser assim. Ninguém abraçará um computador ao sentir medo. Ficar doente já é ruim demais. Acrescentar solidão é crueldade.

Sabe por que não há outro jeito de ser médico? Porque a compaixão nunca será um sentimento virtual. Ela não se contenta em ser vista. Ela precisa ser tocada.

J.J. CAMARGO

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