sábado, 1 de setembro de 2018



01 DE SETEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Alguidar

Quando era miúdo, a minha mãe me convidava a ajudá-la no alguidar. Na realidade, não representava bem um convite, não vinha a ser exatamente o escolhido para a tarefa, mas o que correspondia ao seu grito pelos corredores.

No fim do dia, depois da escola e do trabalho, eu terminava sendo o que sobrava, o que atendia solitariamente ao seu chamado para a cozinha. Os meus irmãos não gostavam da obrigação e fingiam que estavam ocupados com os temas. O estudo representava o argumento invencível - e o único admissível - para não participar das lidas domésticas.

Interessavam-me as histórias que vinham com o entardecer. As verdades são feitas para o crepúsculo. Ninguém acorda sendo sincero, a sinceridade vem aos poucos, ao longo das horas, até a culminância da lua. A consciência demora para se acordar - desperta apenas de noite.

Enquanto o sol se punha no horizonte do Guaíba, eu e a mãe, debruçados numa vasilha grande, separávamos os feijões sadios dos doentes. Havia encantamento e cumplicidade na peneira, perguntava se o examinado estava em boas condições e se seria selecionado.

- Esse pode? -, conferia.

Entre pode e não pode, a mãe me concedia um afago no cabelo, admirada por um menino ceder o seu tempo de brincar.

Lembro exatamente dos cotovelos maternos, plantados como um tripé do seu rosto na mesa. Lembro de seus comentários sobre a vida, intercalados com suspiros e longos silêncios, de como confiava nas pessoas pelo tamanho da esperança delas. Aquele que espera, escuta. Aquele que tem fé, muda de lugar na experiência para entender melhor.

Entre assuntos aleatórios, reservávamos as pedras bonitas, negras, redondas para despejar na panela.

Aprovávamos na triagem um exército de grãos, de couraça brilhante, para contentar a meia dúzia de pratos.

Mas a mãe não descartava, como de costume, os grãos abatidos, machucados, feinhos.

Ela colocava num saquinho para plantar.

- Todos têm direito a uma segunda chance.

Naquela peneira, eu me sentia eleito para a horta. Nunca fui posto fora. Havia outras fomes para saciar nesta vida.

CARPINEJAR

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