sábado, 24 de novembro de 2018


24 DE NOVEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Uma história de horror


Sou fissurada em notícias. As do meu país e tudo mais que aparecer e eu puder entender. Às vezes, preferiria não entender. Outras vezes, mudo de canal para não onerar ainda mais minha alma, que não anda lá essas coisas. Mas sou, sim, curiosa, interessada, assombrada, perplexa e às vezes maravilhada com as coisas do mundo. As Coisas Humanas, provável título de um novo livro meu, que talvez apareça em meados de 2019. Mas eu falo de notícias. Guerras, carnificinas, incêndios, terremotos, inundações, tiroteios, toda a trama que nos envolve e persegue e empurra há milhões de anos. Indignação, encanto, pasmo, se alternam em quem assiste. (E insiste.)

Então, noticioso correndo na tela, mas eu lendo e abstraindo de algum modo o filme das coisas humanas que passa na minha frente - mãe de família e trabalhando em escritório em casa, cedo aprendi a me concentrar, mesmo com o chamado rumor da família por perto -, levanto os olhos e foco um rosto de criança. Todos os traços de um ainda-quase-bebê, pode ter quatro anos, pouco menos ou mais. Linda menina, olhos enormes, melancólicos e perplexos. Ela não entende o que acontece ao seu redor, no campo de refugiados do Afeganistão, tendas espalhadas no areal sem um capim nem um poço à vista, só areia, vento, secura e rostos como máscaras de severidade ou dor. Nas crianças, ainda sombras de sorriso ou traquinices.

A menininha sentada, enfeitada com colares e brincos, ao lado da mãe, de um velho com turbante torto e barba com ar de suja e um menino - de 10 anos, fico sabendo depois. Até a curtida e experiente jornalista que os entrevistava parecia não encontrar palavras, enquanto eu, aqui do outro lado do mundo, não encontrava nem pensamentos claros. Resumo da tragédia: a mãe, cujo marido tinha sido morto numa escaramuça semanas atrás, viera ao acampamento com três ou quatro filhos, e a linda menininha sendo a menor. Não tinham mais o que comer, estavam famintos, acabariam morrendo ali mesmo.

Então, a mãe relata com ar severo mas decidido, sem encarar a entrevistadora: ela tinha resolvido vender a menina. Áquila, ainda com as bochechinhas inocentes de quase-bebê, tem seis anos. A mãe, magérrima e tisnada de muito sol e sofrimento, diz com simplicidade: "Ela ainda não entendeu, porque é muito pequena, mas foi vendida para esse senhor aí". O velho ao lado, turbante torto, lacunas entre os dentes da frente, se coça com vago desconforto e diz que sim, que ali não é grande coisa, que afinal a família morria de fome, e que ele vai pagar, em três anos, provavelmente, os US$ 3 mil pelos quais adquiriu a criança.

A mãe, remexendo-se, revela meio incomodada que até agora recebeu apenas US$ 70. A criança olha, pasmada, mãozinhas ainda de bebê postas no colo, imagem da inocência diante de um mundo brutal. A jornalista se levanta, a câmera é recolhida - eu desligo a TV e fico olhando o verde do parque lá fora, querendo ter, amar, abraçar, alegrar e cuidar, aquela menininha chamada Áquila pela qual até agora a mãe recebeu US$ 70, talvez mais do que os 30 dinheiros trocados por Cristo. Mudou o mundo, ou só ficou mais pesado porque dentro da nossa sala?

LYA LUFT

24 DE NOVEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Outra pessoa em casa

Volta e meia deparo com estatísticas de pessoas que moram sozinhas. Não lembro os números exatos, mas sei que são elevados. Jovens que deixaram suas cidades para estudar, idosos que viram a família seguir o rumo sem eles, homens e mulheres que se divorciaram, que enviuvaram ou que nunca se casaram, enfim, gente que, por escolha ou contingência, hoje habita só. Talvez um cão ou gato atenue a ausência de companhia, mas o fato é que não há outra pessoa na casa.

O rádio acaba virando a outra pessoa na casa.

Essa frase impactante eu pincei do livro da Katia Suman, que acaba de lançar as memórias da Ipanema FM, revelando os bastidores do estúdio em que trabalhou por tantos anos e nos ajudando a entender como uma rádio com equipamento precário, poucos funcionários e muito improviso conseguiu, de 1984 a 1997, conquistar ouvintes fiéis que interagiam diretamente com os locutores e que se sentiam representados por aquela bagunça pulsante, criativa, descolada. Uma turma independente que colocava no ar a nova cena musical e cultural do extremo sul do país. Fez história, logo, merece ser contada.

O rádio como meio de comunicação já teve sua extinção prevista "n" vezes, mas seu obituário continua adiado. Veio a tevê, veio o computador, vieram os home theaters, os celulares inteligentes, e que fim levou o rádio? Segue firme e forte no meio rural e urbano, no interior e na capital, tocando música, dando as horas, noticiando, informando, transmitindo futebol, debates, fazendo humor, promovendo encontros - sendo a outra pessoa dentro da casa enquanto lavamos a louça ou tomamos banho.

Sem imagem, o rádio se torna "alguém" por meio de vozes que a gente reconhece pelo timbre. É presença suficiente. Na cozinha, no pátio, na garagem, no banheiro, no quarto, na sala, um homem ou mulher invisível nos faz rir, nos faz refletir, nos comove, nos tira pra dançar. É diferente da televisão, que entretém com figurino, maquiagem e texto ensaiado, entregando uma fantasia. Rádio é emoção genuína, espontânea, de verdade. O exemplo mais célebre é o de Orson Welles com seu programa A Guerra dos Mundos, que 80 anos atrás, na véspera do Halloween de 1938, fez mais de 1 milhão de pessoas acreditarem que os Estados Unidos estavam realmente sendo invadidos por marcianos, instaurando o pânico. Por sintonizarem a transmissão no meio, muitos ouvintes não escutaram a abertura avisando que se tratava de radioteatro - e surtaram. Dê um Google para recordar. O episódio firmou para sempre a potência do veículo.

Como diz a Katia em seu livro: "por mais que avance a tecnologia, humanos continuarão falando e escutando". É o que basta. Enquanto existir rádio, a solidão terá um adversário à altura.

MARTHA MEDEIROS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
PIANGERS

Mal-educados

"É por isso que essas crianças de hoje em dia não têm limites", alguém grita em algum lugar, normalmente sem que ninguém lhe peça a opinião, o que prova a falta de limites dele mesmo. "Meu pai me batia e olhem pra mim, sou uma boa pessoa!", insiste ele. Pessoal adora dizer que as crianças de hoje em dia são mal-educadas. Eu pergunto: e os adultos? Já deu uma olhada no trânsito? Já viu uma fila de Black Friday? Já percebeu como falam alto ao telefone? Como estacionam em vaga de deficientes? Como não devolvem troco a mais?

"Eu devolvo!", dirá meu leitor imaginário. Pois aprendeu com seu pai explicando, não dando um tapa na sua cara. O argumento pró tapa é sempre o mesmo: "Meu pai me batia e aprendi". Você não aprendeu por causa da palmada. Você aprendeu APESAR da palmada. A criança que apanha vai ter que escoar o tapa em alguém, no colega da escola, no irmão mais novo, em alguém mais tarde. A violência fica guardada, revoltada, pra estourar lá na frente em algum episódio. Vai voltar em tapas no próprio filho, na esposa, em um acidente de trânsito, em uma briga no estádio. Somos um país bastante violento - violento demais com as crianças.

Sou a favor de nos inspirarmos em outra técnica que os antigos praticavam, mas que está totalmente fora de uso hoje em dia: conversa. É muito interessante como a conversa explica as coisas, ajuda a criar conexão, dá entendimento. Os leitores de mais idade lembrarão de uma época em que os pais conversavam com os filhos, exercitando a capacidade de troca. Está tão em desuso, a conversa. Toda a família no celular, pais que não têm contato legítimo com os filhos não tem autoridade.

Educar dá trabalho, e esta geração de crianças não é pior do que nenhuma outra. Ela tem potencial pra ser a melhor: afinal, temos mais informação, mais pesquisas científicas, mais boas práticas para nos inspirar. Mas temos menos tempo. Estamos sempre correndo. Queremos resolver todas as questões com uma fórmula mágica, imediata. "Toma o tablet e fica quieto". "Toma um tapa e não faz mais isso". Visito escolas públicas e particulares, e todas as crianças pedem só uma coisa: "Olha, tio!". Alguns minutos de atenção genuína e ficam calmos, felizes, agradecidos.

Se você encontrar uma criança mal-educada por aí, não é por falta de palmada. É por falta de atenção.

PIANGERS


24 DE NOVEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Prontuário de meu pai

Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para a enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existe posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida. Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.

- Biotipo sanguíneo?

Eu não sabia. - Alergia a medicação? Eu não sabia.

- Já teve sarampo, caxumba, catapora?

Eu não sabia. - Realizou alguma cirurgia?

Eu não sabia. - Vem usando medicação?

Eu não sabia. Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.

Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.

Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: "Depois perguntamos para ele".

O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função "pai", em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.

Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.

Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.

Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.

CARPINEJAR


24 DE NOVEMBRO DE 2018
ENTREVISTA

"Marcas precisam e devem se posicionar"

A vice-presidente de Marcas, Comunicação e Conteúdo da Avon, Danielle Ribas, conta como a empresa tornou a diversidade uma de suas missões

Aos 45 anos, a brasileira Danielle Bibas está à frente da estratégia digital e das campanhas globais da Avon, uma das gigantes de cosméticos do mundo. E seu trabalho vem repercutindo por aí: a marca se destaca quando o assunto é abordar diversidade e representatividade em seus produtos. Com forte atuação nas redes sociais, a Avon está entre as pioneiras no Brasil a colocar trans e drag queens para estrelar campanhas. Mulheres negras, gordas, tatuadas, com cabelos curtos e dos mais diferentes tipos e estilos são regra em vídeos e fotos, e não exceção. 

No ano passado, o documentário Repense o Elogio, dirigido por Estela Renner e produzido em parceria com a marca, gerou debate na internet a ideia era refletir sobre a diferença no tratamento de meninos e meninas. A seguir, confira um papo com Danielle sobre a responsabilidade social das marcas, a necessidade de um discurso inclusivo para atingir diferentes públicos e como isso ajuda a construir uma sociedade mais igualitária e tolerante. A vice-presidente global de Marcas, Comunicação e Conteúdo (CCO) da Avon participa da quarta edição do AHEAD!, programa de debates do Grupo RBS, dirigido ao mercado publicitário, que será realizado no dia 27 de novembro.

A importância da diversidade e da representatividade está no centro do debate na última década. Como você avalia o impacto desses discursos nas marcas? Foi necessária uma mudança de perspectiva para criar campanhas que não reforçassem padrões estéticos?

Para nós, é importante que pessoas diversas ocupem espaço na publicidade, em grandes companhias e tenham visibilidade. As grandes corporações têm, sim, um papel muito importante na mudança da sociedade. Refletir a diversidade na comunicação externa é dar voz e representatividade, é ser consciente e responsável. E por parte do público, ver-se representado é se sentir respeitado. Por outro lado, praticar internamente o que se comunica é essencial, e nós fazemos isso.

Existe uma identificação maior com o discurso da marca? É essencial se "posicionar"?

É importante que a marca tenha um discurso condizente com o que prega, com a sua história. Não se trata só do modo como você comunica um produto. É preciso dar sentido para a beleza, pois é um ato social. Vivemos um momento-chave em que a transparência parou de ser um diferencial para as marcas e passou a ser pré-requisito para sua sobrevivência. Nesse contexto, a ação precisa ser maior do que o discurso. Mais do que um posicionamento, filme de TV ou ativações, o envolvimento do consumidor com a marca vem de ações concretas e verdadeiras que fazem sentido pras duas partes. A Avon tem sido exemplo em campanhas que saem do lugar-comum e atingem mulheres de todos os tipos, além de abrir espaço para as minorias. A marca se posiciona na luta contra a homofobia, o machismo e o racismo.

A Avon está entre as pioneiras no Brasil a colocar mulheres trans e drag queens para estrelar campanhas. Como foi a receptividade do público?

Com a evolução da conversa entre marca e pessoas nas redes sociais, as empresas estão cada vez mais expostas e propensas a ser alvo de críticas, elogios e comentários. Entendemos que as marcas precisam e devem se posicionar mesmo enfrentando riscos como o de ser alvo de resistência e críticas, não dá para agradar a todo mundo. Ao mesmo tempo, notamos que as pessoas têm investido cada vez mais em experiências em vez de focar apenas no produto, elas querem se conectar com propósitos e causas da marca, e levamos isso em conta cada vez que desenvolvemos uma nova iniciativa. Nós acreditamos em uma abordagem publicitária mais inclusiva e menos estereotipada e que, contemplar a diversidade na comunicação não é mais um diferencial e, sim, uma premissa básica para qualquer empresa em qualquer segmento.

O documentário Repense o Elogio teve grande repercussão ao tratar de como as construções de gênero se dão desde a infância e são reforçadas pelos adultos. Como o documentário ajuda a trazer a provocar a discussão sobre esse tema e a construir uma sociedade mais igualitária?

Como ponto de partida (do documentário), foi conduzida uma pesquisa online para checar quais adjetivos eram os mais lembrados na hora de elogiar cada um dos sexos. Quase 80% das palavras utilizadas pelos adultos para elogiar meninas estão relacionadas à aparência, como "linda", "bonita", "princesa". Já para os meninos, 70% referem-se a habilidades, como "esperto", "inteligente", "corajoso". A iniciativa recebeu muitos elogios e levou um prêmio na categoria Branded Content do Effie Awards Brasil neste ano. Mas também fomos alvo de muitas críticas de pessoas que consideraram a campanha contaminada do que determinada parte da sociedade considera "ideologia de gênero". Nós respeitamos todas as opiniões e entendemos que nem sempre vamos acertar, mas consideramos importante arriscar para levantar debates importantes para construir uma sociedade mais igualitária.

NATHÁLIA CARAPEÇOS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA


Santiago Uribe Rocha é porta-voz de uma das experiências mais bem-sucedidas da América Latina recente. Natural de Medellín, na Colômbia, ele participou da transformação que elevou de patamar a segunda cidade mais populosa de seu país - com mais de 2 milhões de habitantes. Em duas décadas, deixou de ser a mais violenta do mundo, tornando-se referência em inovação. Após passar quase uma década entre a África do Sul, onde trabalhou com Nelson Mandela, e a Colômbia, desde 2014 ele chefia o Escritório de Resiliência de Medellín, uma iniciativa da Fundação Rockefeller que conta com o apoio da ONU para investir em uma rede de cidades selecionadas - Porto Alegre entre elas - traçando estratégias

para enfrentar adversidades. Neste sábado, o antropólogo estará em Porto Alegre para palestrar no Festival da Transformação - FT18, promovido pela ADVB/RS (informações em ft.poa.br).

COMO SE DEU A MUDANÇA RADICAL DE MEDELLÍN?

Quando éramos a cidade mais violenta do mundo, com índices de homicídios de quase 391 para cada 100 mil habitantes, quase todos jovens em sua idade mais produtiva, nomeamos uma ministra conselheira para assuntos de paz. Sabíamos que o governo nacional não tinha recursos nem capacidade humana para resolver os problemas, e que não se podia mais pensar a cidade sem os cidadãos como parte do planejamento estratégico. Como ponto de partida, implantamos uma dinâmica de fóruns para discutir o futuro de Medellín. Fomos de bairro em bairro perguntando sobre qual era a cidade que nós, medellinenses, queríamos. Foram cerca de quatro anos, o que resultou em um documento com um planejamento para ser executado entre 1995 e 2015. O maior aprendizado, naquele momento, foi que o problema em si não era a violência, mas que era ela parte de um problema maior, que era a desigualdade, e que o que teríamos de resolver eram as diferentes manifestações de desigualdade como um problema estrutural: a carência de espaços públicos, de educação, de saúde, de centros comunitários.

COMO FORAM FEITOS OS INVESTIMENTOS?

Acredito que o documento elaborado na época foi uma espécie de coluna vertebral que ajudou a cidade a manter um planejamento de longo prazo. Quando Medellín entendeu que tinha de ter um enfoque diferente, não em força, mas em inclusão social, tivemos de priorizar onde investir. No começo dos anos 2000, começamos a usar os indicadores da ONU para identificar as regiões com mais necessidades, com os índices mais baixos de desenvolvimento humano. Em 2003, começamos a executar uma política pública, os chamados Planos Urbanos Integrais, que direcionavam os investimentos para essas regiões. Fizemos intervenções onde as pessoas nunca tinham tido acesso a serviços. Levamos bibliotecas públicas, centros culturais, colégios, parques e corredores estratégicos de renovação comercial a esses lugares.

COMO O GOVERNO SE APROXIMOU DAS COMUNIDADES?

Quando nomeamos a ministra conselheira para a paz, em 1991, o nome de uma mulher era estratégico. Acredito que as mulheres estão mais capacitadas em termos de resolução de conflitos do que nós, os homens. Outra coisa foi que nomeamos Maria Ema Gonzalez, uma comunicadora social. Ela percebeu que nossa maior necessidade era comunicativa: ouvir de maneira estratégica pessoas que nunca tinham sido ouvidas no processo de planejamento. Acredito que desenvolvemos uma das estratégias sociais de escuta sistemática mais importantes que já houve no país. Ouvir o outro foi inovador e sui generis para Medellín. Vocês levaram isso a níveis até mais avançados, com o Orçamento Participativo (OP).

A DESIGUALDADE SOCIAL É UM PROBLEMA COMUM A CIDADES BRASILEIRAS. QUAL É O PAPEL DO ESTADO NA PROMOÇÃO DE UMA SOCIEDADE MAIS IGUALITÁRIA?

É ser uma plataforma que permita, a partir transformações econômica, social e educativa, a inclusão social. Mas o problema de desigualdade e da segregação é da sociedade como um todo. Não adianta que os entes públicos foquem esforços enormes para tratar da desigualdade se nós, como sociedade, não atacarmos isso. Sempre me perguntam qual vai ser, no futuro, o indicativo de que Medellín atingiu a integração econômica e social - porque hoje somos uma cidade dividida em duas, uma no sul, que está bem, e uma no norte, com menos privilégios e serviços. Digo que quando uma menina do sul disser que vai na casa do namorado que mora na Comuna 13 (bairro com histórico de violência) e ninguém se assustar, termos o indicador de inclusão social. Teremos rompido barreiras. É preciso uma transformação cultural. O poder público tem de ser plataforma para isso.

MEDELLÍN DIRECIONOU RECURSOS PÚBLICOS PARA COMUNIDADES CARENTES, MELHORANDO INFRAESTRUTURA, TRANSPORTE E ACESSO À EDUCAÇÃO NESSAS REGIÕES. EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA, COMO É POSSÍVEL FAZER ESSES INVESTIMENTOS?

Uma das primeiras coisas que temos de entender é que, quando Medellín começou a transformação, não era uma cidade rica. Estava em uma crise profunda, econômica inclusive. O que deu origem à grande transformação foi construir, com diálogo social, uma plataforma de planejamento para o futuro da cidade. Os momentos de crise são os mais apropriados para construir esse diálogo e, a partir dele, tomar as decisões para desenvolver a transformação. Não é porque se tem crise que se deve perder a esperança. Se deixamos passar a crise, deixamos passar uma grande oportunidade.

O PRINCIPAL PROBLEMA DE MEDELLÍN, 20 ANOS ATRÁS, ERA O ALTO ÍNDICE DE HOMICÍDIOS...

Essa era uma das manifestações do problema. Temos uma sociedade muito parecida com a de vocês (brasileiros), com herança colonial, arraigada em uma hierarquia social de classe, com uma segregação socioeconômica e espacial. Temos de empenhar as sociedades latino-americanas em busca da redução da desigualdade. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 42 estão na América Latina. Infelizmente, Porto Alegre faz parte dessa lista (ocupa a 39ª posição). Todas têm indicadores sociais opressores. A violência não é outra coisa se não uma manifestação desse problema maior.

QUAL É O PRINCIPAL DESAFIO DE MEDELLÍN ATUALMENTE?

Reduzir a desigualdade social. É importantíssimo dar continuidade às políticas públicas. Porque, com as mudanças nas administrações, sempre há risco que parem. Em todo o mundo é assim. Infelizmente estamos tendo líderes políticos que querem o poder pelo poder, e o serviço público requer uma vocação de entrega pela cidadania. Precisamos de líderes que entendam que devem chegar ao poder para serem servidores públicos.

COMO A CIDADE TRATA AS QUESTÕES DE SEGURANÇA?

Hoje temos um enfoque diferente da linha que se vinha levando durante vários anos. É mais tradicional, com o uso da força. Sou um dos partidários de que o tema da segurança seja tratado com enfoque de prevenção. Abrir diálogo, dar oportunidade de inclusão. O uso da força deveria ter um papel cada vez menos preponderante. A segurança por meio da força legitima a violência. Pessoalmente, acredito que a prevenção é o caminho mais adequado. Mas, entre os políticos de hoje, há quem acredite que se tenha de voltar aos meios tradicionais. Os indicadores mostram que dá menos resultado e toma muito tempo.

NO ANO PASSADO, OCORREU UMA INTERVENÇÃO MILITAR NO RIO DE JANEIRO, COM O OBJETIVO DE REDUZIR A CRIMINALIDADE. O QUE SE VIU FOI UM AUMENTO NOS INDICADORES DE LETALIDADE VIOLENTA, COM MAIS DE 500 MORTES, E UM RECORDE NO NÚMERO DE HOMICÍDIOS POR INTERVENÇÃO POLICIAL. É POSSÍVEL ACABAR COM A VIOLÊNCIA COM UMA ABORDAGEM VIOLENTA?

Estou seguro que não. Vivi na África do Sul quando Mandela era presidente, trabalhei com ele. Temos encontrado evidências claras, a partir de estudos, de que violência repete violência. Não há sociedades violentas de famílias pacíficas. Acho que não temos nos perguntado: será que nossas famílias são violentas em essência, e que replicamos no público sociedades violentas? Até que não comecemos a construir famílias e ambientes pacíficos e protetores, dificilmente vamos ter sociedades pacíficas. A violência não ajuda a transformar uma sociedade, e muito menos uma família. E o que acontece em casa é o que replicamos no espaço público, que é a cidade.

NO BRASIL, A FALTA DE POLICIAMENTO É UMA DAS PRINCIPAIS CRÍTICAS DA POPULAÇÃO. QUAL É O PAPEL DA POLÍCIA EM UMA CULTURA DE PAZ?

A polícia devia ser uma força civil comprometida com outro tipo de necessidade, mais educativa, de formação, acompanhamento e prevenção. Deveria encontrar um jeito diferente de exercer a autoridade, mais pelo respeito e pelo reconhecimento dos cidadãos do que pela força. Cada vez mais deveríamos tender a desarmar as forças de segurança e torná-las forças mais civis, de controle e acompanhamento da sociedade e dos cidadãos. Mas isso vai levar um tempo. De fato, as orientações políticas, agora, vão ao contrário disso, com Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos EUA e outros. Acredito que o que fazem é gerar mais violência, de formas mais agressivas. Temos de nos perguntar quais são as raízes estruturais da violência. Por que os cidadãos, nossos irmãos, pessoas da nossa cidade, acabam exercendo a violência por qualquer motivo que seja? Eles não vieram em uma nave espacial, em um óvni, de outro planeta, e são violentos porque vêm destinados a isso. São as próprias sociedades que criam a violência. E enquanto não nos fizermos essa pergunta, não só não vamos resolver, como vamos querer eliminá-los, inclusive através do extermínio. Mas não vamos eliminar a causa estrutural, e assim sempre vão emergir novas formas de violência.

POR QUE A RESPOSTA VIOLENTA À VIOLÊNCIA TEM TANTO APELO JUNTO ÀS PESSOAS?

O que é atrativo é o poder, não a violência. E a violência, especialmente através das armas, é um mecanismo de acesso ao poder. O poder sobre o outro, para controlar a vida do outro, o espaço do outro, os lugares do outro. Armas são um meio para ter poder. E o poder exercido pela violência é a pior droga da humanidade. É a droga mais perigosa, inclusive quando se chega a ela pelas vias democráticas.

QUAIS SÃO OS RISCOS DA BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA?

Tornar a violência natural é perigoso porque lhe dá um lugar na cultura. E uma vez que se assume isso como normal é difícil fazer mudanças culturais. Leva décadas. A única maneira de mudar é com educação e formação cultural e cidadã, e leva gerações para fazer transformações.

BRASIL E COLÔMBIA ESTÃO ENTRE OS PAÍSES QUE MAIS MATAM MULHERES. COMO A COLÔMBIA TEM ENFRENTADO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO?

Só recentemente começamos a entender a delicadeza desse problema, e estamos começando a desenhar políticas públicas para evitar o feminicídio. Sociedades machistas como as nossas são onde a violência contra a mulher é mais fácil de ser vista, porque os lugares onde a autoridade se exerce pela força são onde a mulher é mais propensa a ser a ser vítima. Tem a ver com o imaginário de masculinidade que temos. Masculinidades que acreditam que têm direitos e privilégios sobre a mulher e que, com todo o respeito, parecem do tempo das cavernas. Sociedades como as nossas têm de fazer exercícios de educação profundos para construir novas masculinidades que entendam que os homens são iguais às mulheres. Não em termos de identidade, mas em termos de direitos fundamentais e oportunidades.

A CORRUPÇÃO É UM PROBLEMA ESTRUTURAL NA POLÍTICA BRASILEIRA. COMO COMBATÊ-LA?

Como combater a corrupção? (Risos.) Para responder isso, tem de fazer um doutorado... Não só no Brasil, na Colômbia também, e acredito que em todo o mundo. Há um grande mestre, Antannas Mockus (matemático, filósofo e educador, prefeito de Bogotá por dois mandatos) que nos ensinou que o público é sagrado. Acho que problema da corrupção tem a ver com termos privilegiado os interesses privados sobre os coletivos. Aí é muito fácil ter corrupção, porque seu objetivo fundamental é o lucro individual e pessoal em cima do interesse coletivo. As cidades e nações têm de retornar ao seu princípio fundamental, que é entender que somos coletivos. O que ocorre é que nas últimas décadas nossa formação tem sido sempre direcionada a primar o individual sobre o coletivo, e claro que aí emerge a corrupção, inclusive naturalizada, e torna-se cotidiana.

PARECE QUE AS MUDANÇAS NECESSÁRIAS SÃO DIFÍCEIS DE SE FAZER.

As coisas mais importantes da vida são difíceis. Mas precisamos combater a corrupção antes que ela termine tendo um impacto ainda mais negativo sobre as culturas das sociedades.

O BRASIL VIVE UM MOMENTO DE POLARIZAÇÃO POLÍTICA. COMO SUPERAR AS DIFERENÇAS PARA CONSTRUIR UMA NAÇÃO QUE CRESÇA E ENFRENTE AS ADVERSIDADES SEM VIOLÊNCIA?

O primeiro problema não é a polarização política, mas a polarização social. Não nos demos conta que geramos sociedades extremamente segregadas. A mesma coisa acontece na Colômbia: todos acreditam que a polarização política é um problema, e é parte de uma problema maior, que é que temos gerado sociedades divididas. E o que vamos obter disso são políticas extremas, que não vão ao encontro da criação de confiança, mas de divisões e de luta para exercer o poder. É um tema delicado e complexo, que nos toma muita energia para entender, porque é muito fácil responder à polarização com o ódio. Mas é só a partir de maneiras mais afetivas de se aproximar do outro, de aceitá-lo como ele é, que vamos construir pontes que reivindiquem a integração. Temos que construir sociedades integradas. Se criamos sociedades para sentir que uns são melhores do que outros e têm mais privilégios do que outros, se nossas famílias seguem replicando que há alguns que têm mais direitos que outros, teremos sociedades divididas que jamais deixarão de ser um fracasso.

BRUNA VARGAS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

CIRURGIA BARIÁTRICA NO CONTROLE DO DIABETES


As técnicas progrediram das simples reduções das dimensões do estômago para as reduções associadas a "desvios" do trânsito intestinal e das secreções biliares e pancreáticas necessárias para a digestão dos alimentos. Esses procedimentos, que causavam tantas complicações até a década de 1990, hoje são realizados com índices de mortalidade comparáveis aos das grandes cirurgias abdominais.

As cirurgias bariátricas são indicadas para a redução do peso corpóreo nos casos de obesidade refratária às mudanças do estilo de vida e aos medicamentos. Para evitar indicações abusivas, as associações médicas brasileiras e internacionais estabeleceram critérios rígidos baseados no Índice de Massa Corpórea (IMC). O IMC é calculado dividindo-se o peso corpóreo (em quilogramas) pela altura (em metros) elevada ao quadrado.

O consenso inicial era considerar a possibilidade de operar apenas os pacientes com IMC igual ou maior do que 40 kg/m2. Em seguida, essa indicação foi estendida para aqueles com IMC de pelo menos 35 kg/m2, que apresentassem problemas médicos como diabetes, doença coronariana, hipertensão grave, apneia do sono, limitações ortopédicas etc.

Nos últimos 20 anos, diversos ensaios clínicos demonstraram que esse tipo de intervenção não apenas provocava perdas de peso significantes e duradouras, mas tinha grande impacto no controle da glicemia nos pacientes com diabetes do tipo 2 (o mais comum), muitos dos quais ficavam livres dos remédios que haviam tomado durante anos.

Apesar dos resultados contundentes, os médicos demoraram pelo menos duas décadas para aceitar que uma intervenção cirúrgica fosse capaz de curar diabetes. A relutância em aceitar o óbvio tem uma explicação simples: todos nós aprendemos na faculdade que diabetes é incurável.

Em 2012, foram publicados dois estudos muito bem conduzidos, nos quais ficou demonstrado que a cirurgia bariátrica é mais eficaz no controle do diabetes do que as medidas convencionais de dieta, atividade física e medicamentos. Esses resultados despertaram a curiosidade dos especialistas: se é assim, a cirurgia não deveria ser indicada mais cedo no curso da enfermidade?

Um grupo sueco acaba de publicar no The New England Journal of Medicine um estudo prospectivo iniciado em 1987, em que 1.658 pacientes obesos submetidos à cirurgia bariátrica (diversas técnicas) foram comparados com um grupo de 1.771 obesos tratados com dieta, atividade física e medicamentos.

Os participantes tinham entre 37 e 60 anos de idade. Os homens apresentavam IMC acima de 34 kg/m2, e as mulheres, acima de 38 kg/m2. No início do acompanhamento, nenhum deles tinha diabetes. Cerca de dois terços dos participantes não entraram na análise final por não terem completado os 15 anos de evolução.

Entre os que foram seguidos por esse número de anos, 502 desenvolveram diabetes: 392 no grupo controle e 110 no grupo submetido à cirurgia. A diferença em favor da cirurgia foi altamente significante: redução de incidência igual a 78%. O valor do IMC inicial não fez diferença nos resultados finais; o tipo de técnica operatória também não.

Diabetes é uma doença que progride lentamente, na qual a sensibilidade à insulina e a capacidade de produzi-la diminuem com o tempo. O estudo sueco sugere que cirurgias bariátricas podem impedir que as anormalidades do metabolismo da glicose progridam para a instalação do diabetes.

Apesar dos resultados intrigantes, é impraticável pretender prevenir diabetes por meio de cirurgia entre os milhões de obesos do mundo inteiro. No Brasil, praticamente metade da população adulta está acima do peso saudável, número que cresce a cada censo. Há 12 milhões de brasileiros com diabetes.

DRAUZIO VARELLA


24 DE NOVEMBRO DE 2018
JJ CAMARGO

QUALQUER DESATENÇÃO

A gente sabe tão pouco do que se passa na cabeça das pessoas, mesmo daquelas - ou principalmente daquelas - que supomos conhecer. E talvez o mais desafiador do convívio esteja exatamente no imprevisto que tantas vezes resulta na sensação para lá de desconfortável de que não conhecemos a criatura de quem nos considerávamos íntimos.

Estas descobertas podem ser amargas e explosivas, deixando a sensação de terra arrasada depois de nos transformarem em terra.

Muitas vezes, os mais perspicazes anteveem a notícia ruim pela linguagem corporal, mas quase sempre a palavra é o instrumento indispensável para remover o pino da desgraça. Alguns dão a notícia aniquiladora sem nenhuma emoção, o que significa uma mistura de crueldade com experiência maligna. Em escala crescente, situam-se os sádicos que não conseguem evitar um esboço de riso, que tentam conter para cumprir as recomendações do manual de demissão, mas não conseguem dissimular aquele deslumbramento que o exercício da maldade confere ao sociopata. Outros, com um leve resíduo de humanidade, desviam o olhar, porque, circunstancialmente, imaginaram-se do lado de lá.

Dar notícia ruim é tão desconfortável que, nos EUA, existem empresas com profissionais treinados na arte de demitir, que circulam pelo país cumprindo a sua trágica missão.

Na escola, é comum que o adolescente desenvolva uma palidez de morte quando a professora, com um risinho enviesado, pergunta: "Quantas matérias você supõe que ainda será possível recuperar, meu querido?".

No trabalho, as frases emblemáticas como "Precisamos rever as metas" ou "A empresa está passando por um momento difícil" põem a vítima no cadafalso, talvez ainda com a corda frouxa, mas já no pescoço. Porque nem o mais confiante dos evangélicos se animaria em pensar: "Que bom que o chefe resolveu ouvir minha opinião sobre esta crise!".

Talvez a mais benigna das utilidades de discutir a relação, esta que é, de longe, a mais chata das convocações que a mulher pode fazer no casamento, tenha esta perspectiva: reduzir o impacto de uma conversa que muitas vezes começa amistosa até o outro descobrir que sua amada está usando um colete de explosivos. Numa discussão amorosa, os especialistas confirmam que o mais confiável prenúncio de cataclismo é a surpreendente ausência de lágrimas, que, no passado, tantas vezes escorreram pela cara, sem a preocupação de borrar a pintura, porque naquele momento só pretendiam funcionar como um desesperado pedido de socorro.

Na iminência de uma tragédia afetiva real, a falta de lágrimas, alertam os experts, significa: controle emocional completo, portanto, prepare-se para o pior. De qualquer maneira, independentemente do tipo de relação, pessoal ou profissional, todo comunicado que lhe pareça absolutamente surpreendente significa apenas que você, há muito tempo, está desatento com seus afetos. E no amor, como já alertou o Chico daquela época em que ele sabia escolher as companhias: "Qualquer desatenção, faça não! Pode ser a gota d?água!".

JJ CAMARGO

24 DE NOVEMBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Diploma de Sientista Social

Nós, do Instituto Pykaretha (do sânscrito, aquele que persegue o caminho da luz), temos diplomado sientistas (aqueles que sentem) sociais faz anos. Nosso lema é ir aonde a sabedoria espontânea se mostra, aonde nossa verdade se revela.

Começamos reconhecendo sientistas sociais de botequim, categoria mal- afamada. Preconceituosamente, tendemos a julgar as pessoas não pela profundidade de seus argumentos, mas de onde vem o discurso e se estão, ou não - dado que nos parece irrelevante -, sob influência alcoólica.

Neste momento da história, dada a contingência da Revolução Digital, temos diplomado sábios de Facebook, do Twitter, do Instagram e, principalmente, do WhatsApp. Especialmente pessoas que têm talento nato, aquelas que não precisam de outras fontes, fora sua excelsa sabedoria, para dar opinião sobre tudo e qualquer coisa. Pessoas que nasceram sabendo, que dispensam estudo, para as quais é desnecessário saber outras línguas, conhecer bibliografias especializadas. Pessoas que são capazes de nortear-se apenas por fragmentos da realidade, porque sabem deduzir o todo de pequenas partes. Esses sábios sensitivos conseguem narrar o que nos acomete e fornecer certezas sobre os caminhos do porvir.

Nascemos para você que, sem dominar a regra de três, desfila argumentos da mecânica quântica. Quem disse que para entender a física atual precisamos de matemática? Enfim, somos para você, que sem ter lido nada de coisa nenhuma, percebe os segredos do universo e revela sua sapiência, não contaminada por estudos e dados do mundo real. Você que tem a grandeza de dividir isso com todos os que se prestam a ouvir.

Conseguiremos seu diploma certificado e emoldurado em letras douradas, em troca da denúncia, óbvia, mas sempre é bom lembrar: que os jornais só contam mentiras e cientistas são todos ideológicos. De que você divulgue que todos os que tentam desautorizar suas convicções com elementos tão fortuitos e relativos como dados e estatísticas são criptomarxistas que tendem a confundir nossa mente pura e querem envenenar-nos com pesquisas e argumentos científicos, nos quais não temos nenhum motivo para crer.

Não se deixe enganar pela turma da Ursal. Eles querem que não percebamos a força do globalismo (inclusive, tentam confundir-nos falando em globalização). Esse tipo de pensamento, que nos afasta de Cristo, da Virgem Maria e das evidências da presença de ETs, coloca nossas famílias em riscos seriíssimos de dissolução moral, ao pregar a devassidão da ideologia de gênero.

Pela módica quantia de centenas de reais, dependendo do grau (mestre, doutor, pós-doutor, MBA ou PhD - veja o catálogo), enviamos por sedex seu diploma de Sientista Social Emérito em Rede Social e Assemelhados. Aproveite, chance única!

MÁRIO CORSO

24 DE NOVEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

O DESAFIO DA EDUCAÇÃO

As prioridades na área de ensino não estão em questões polêmicas, que só contribuem para mascarar as falhas e as soluções, mas em deficiências preocupantes nos níveis de aprendizado

Confirmado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, o futuro ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, tem currículo intelectual alentado e boas chances de impulsionar uma área relacionada diretamente a outras das quais depende o futuro imediato do país. Entre elas, estão inovação, ética, retomada da economia e até mesmo prevenção da violência. Mas é preciso ir bem além da pauta educacional que ganhou ênfase durante a campanha e não se inclui, de fato, entre as questões emergenciais do ensino: a escola sem partido e o ensino do respeito à diversidade nas escolas. São temas relevantes, mas não prioritários.

A educação brasileira só avançará, aproximando-se dos padrões de qualidade necessários para o país crescer de forma sustentável, quando forem colocadas em prática alterações profundas na forma como é gerida hoje, privilegiando acima de tudo a formação do aluno. Filósofo e professor, mas sem maior experiência como gestor, o novo ministro será responsável por um dos maiores orçamentos do governo federal. 

Além de buscar maior eficiência no uso de verbas, precisará enfrentar também distorções crônicas, incompatíveis com uma realidade de penúria no setor público. Entre os mais desafiadores, estão as aposentadorias precoces, que vêm se mantendo ao longo dos últimos governos por falta de disposição dos gestores públicos de se confrontar com corporações.

Um dos responsáveis pelo nó na área educacional é o desequilíbrio financeiro que drena recursos preferencialmente para o Ensino Superior, deixando a Educação Básica em segundo plano. O futuro ministro precisará também valorizar os professores, não só financeiramente, mas com providências que contribuam para maior reconhecimento a essa atividade fundamental. 

É importante que o escolhido para gerir a pasta possa enfrentar saídas de imediato para o Ensino Médio, que se constitui hoje num dos principais gargalos do aprendizado. Desde já, o novo responsável pela área precisa pensar também em alternativas para o fato de menos de um terço das crianças de até três anos se encontrarem hoje em creches.

As prioridades na área de ensino não estão em questões polêmicas, que só contribuem para mascarar as falhas e as soluções, mas em deficiências preocupantes nos níveis de aprendizado. O país não pode se conformar com os níveis insuficientes de tantos alunos em leitura e matemática. Enquanto distorções como essa não forem atacadas, dificilmente a atividade econômica conseguirá registrar o crescimento necessário para gerar mais riqueza e oportunidades de emprego. 

OPINIÃO DA RBS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
GERAL

Torneiras secas expõem crise em Gramado

CIDADE DA SERRA, que enfrenta problema crônico de abastecimento, sofreu colapso no sistema. Agora, calcula prejuízos

Destino de 6 milhões de visitantes ao ano, Gramado enfrenta crise de água há mais de década. Porém, nos últimos dias, o desabastecimento chegou ao limite: a cidade completou dois dias sem água nas torneiras, levando ao fechamento de restaurantes, à desistência de turistas, à revolta de moradores e a um decreto de calamidade pública pela prefeitura.

O colapso começou na madrugada de quarta-feira, quando a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) interrompeu o abastecimento para uma obra no sistema. Técnicos iriam interligar uma adutora para aumentar em 30% a vazão de água, mas um registro rompeu e secou a cidade.

- Foi um infortúnio incomum, mas que, às vezes, acontece - explica Eduardo Carvalho, diretor de operações da Corsan.

Devido ao desabastecimento, escolas suspenderam as aulas e postos de saúde precisaram providenciar galões para manter os atendimentos. No setor de turismo, hotéis tiveram de recorrer a caixas d?água e restaurantes decidiram interromper as atividades.

- A economia da cidade parou. Foi um verdadeiro caos - resume o vice-prefeito de Gramado, Evandro Moschem (MDB).

Para os gramadenses, o cenário acentuou-se porque a cidade está lotada para as atividades do Natal Luz - período que chega a atrair 1 milhão de pessoas. Movido pelo turismo, o restaurante especializado em fondue Chalezinho das Hortênsias calcula prejuízo de 400 jantares pelas duas noites de portas cerradas.

- Até viemos trabalhar, mas era impossível abrir - conta Carlos Ramos, garçom no estabelecimento.

Recepcionista de um hotel na área central, Guilherme Machado precisou, nos últimos dias, tomar banho no serviço. No empreendimento, uma caixa de água reserva salvou funcionários e hóspedes.

Os efeitos da "estiagem" espalharam-se às fábricas de chocolate da serra gaúcha. A Lugano, por exemplo, dispensou os funcionários na quinta e na sexta-feira.

- Gramado está pagando pelo seu crescimento. Tudo tem de ser acompanhado de infraestrutura - avalia um dos proprietários da Lugano, Francisco Terres da Luz.

PROMOTOR PREVÊ CRISE NOS PRÓXIMOS ANOS

A Corsan conseguiu restabelecer o serviço no fim da tarde de quinta-feira, quase 40 horas depois de sua interrupção. Porém, nem todos receberam a água de imediato (leia ao lado).

Hoje, Gramado desenvolve-se em ritmo chinês - a estrutura cresce 8% ao ano, segundo a prefeitura. Em atividade, são 180 hotéis e 170 restaurantes.

Firmado em 2004, o contrato com a Corsan tem duração de 25 anos. Insatisfeito com a carência de investimentos que acompanhem o ritmo acelerado de investimentos, o vice-prefeito defende a sua revisão e a implantação do Plano Municipal de Saneamento e Abastecimento aprovado pela Câmara de Vereadores em 2016.

Desde o ano passado, o contrato é alvo de ação civil pública. Responsável pelo processo, o promotor Max Guazzelli chegou a pedir a rescisão do acordo:

- O município nunca fiscalizou, e a Corsan nunca investiu. O resultado é esse. Com a quantidade de empreendimentos sendo licenciados, se nada for feito, viveremos verdadeira crise nos próximos quatro anos.

DÉBORA ELY

24 DE NOVEMBRO DE 2018
GERAL

Banho é cortado e lençóis não são trocados

Mesmo com o conserto da adutora e a retomada do bombeamento para os canos, parte dos moradores de Gramado, na serra gaúcha, seguiu sem água na sexta-feira. De acordo com a Corsan, eram casos isolados onde o fornecimento demora mais a chegar.

Entre os principais impactados, estão os moradores e comerciantes dos bairros Dutra, Floresta, Moura, Piratini e Várzea Grande. Nessas regiões, historicamente, a água termina antes e retorna depois.

Abaixo de sol a pino, as comunidades receberam a visita de caminhões-pipa. Ao longo do dia, os veículos repetiram a viagem entre Três Coroas, onde são abastecidos, e Gramado para distribuir 5 mil litros por imóvel - pelos cálculos de proprietários de hospedagens lotadas, quantidade insuficiente para sobreviver ao fim de semana.

QUEIXAS DE TURISTAS E AMEAÇA DE PROCESSO

Localizada no bairro Floresta, a Pousada Luar Serra assistiu à desistência de seis casais. Aos que resistiram, os donos tiveram de alertar que lençóis não seriam trocados e banhos seguiam impossibilitados.

- É constrangedor. Dá vontade de fechar as portas e ir embora - reclamou um dos proprietários, Pedro Tavares Júnior, enquanto um caminhão-pipa estacionava na calçada. - Olha o quanto estou pagando pelo vento - completou, ironizando a sua última conta da Corsan, no valor de R$ 660.

Uma de suas vizinhas, Elisabete Benetti, conta que precisou se desdobrar em esclarecimentos para os hóspedes cariocas e nordestinos. De alguns, ouviu queixas e, inclusive, ameaças de processo.

Já a proprietária da pousada Aardvark Inn adiantou-se. Uma semana antes, quando soube da obra programada pela Corsan, Grasiane Mossini comprou duas caixas d?água e conseguiu evitar o prejuízo de perder turistas. Para este final de semana, aos 80 hóspedes acomodados em seus 30 apartamentos, orientou o "uso racional":

- Esse colapso resume-se à falta de gestão. Sabiam que iria acontecer.

sábado, 17 de novembro de 2018



17 DE NOVEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Sempre temos as palavras

Há um tempo, ou um dia - às vezes dias -, em que a gente pensa ter dito tudo, escrito tudo, lido todas as coisas boas e belas ou loucas e mortais: "Nunca mais vou escrever nada". Pensei nisso várias vezes na vida. Mas de repente me dava conta de que eu nasci ao menos para isso: para falar, sobretudo por escrito, com esses tantos leitores que pelo país afora, alguns no Exterior, nos lugares mais improváveis, leem o que escrevo. Por mais cansativo, repetitivo, chato quem sabe, sempre alguém em alguma parte vai ler, vai se recostar na poltrona ou no sofá ou na cadeira da cozinha, e pensar: "Parece que ela escreveu pra mim". Isso, acreditem, mesmo que eu nunca venha a saber, é o que faz a escrita valer a pena.

E sempre surgem ideias, ou devaneios (que são ideias diluídas, ideias com nevoeiro), e sentimentos que a gente quer partilhar com esse em geral desconhecido amigo imaginário (no meu caso, já falei nisso), o leitor. Por que fazemos isso, por que escrevemos?

Já li e escutei respostas variadíssimas: "Porque, se não escrevo, eu morro, eu enlouqueço, porque quero ser amada, porque me sinto menos sozinha" - enfim, uma listona de respostas dos mais diversos autores e autoras. Mas, no fundo bem fundo do fundo da chamada alma humana, deve ser bom mesmo quando se nasceu para isso. Como em qualquer profissão, de cozinheiro a enfermeiro, a médico, a astronauta, a jardineiro, a professor... E como sabemos? No meu caso, porque talvez seja a única coisa que faço direito. Pode nem ser uma boa literatura, mas me dá alegria, contentamento, paz, muito mais do que dúvidas e angústia. E porque me deu esse monte de leitores, que chamo de meus amigos imaginários. E porque, se uma só pessoa no mundo ou aqui do lado disser que isso lhe fez bem, então valeu a pena uma existência inteira escrevendo.

Mesmo nesta época de tal penúria cultural, com livrarias fechando, editoras reduzindo pessoal e publicações, todos assustados e inseguros, vale a pena. Ou apenas é o que eu faço. Em livro e em colunas de jornal, que escrevo desde bem jovenzinha. Como escrevia um diário, e poemas esquisitos aos 11 anos, falando em Deus, ou mencionando os belos olhos do menino mais bonito da escola, que nem sabia da minha existência. Livros sempre foram meus grandes companheiros. Gosto de ficar quieta, sobretudo quando dolorida como ando há tempos, sabendo que o mundo continua, as pessoas amadas estão perto, o parceiro chega daqui a pouco, mas neste momento estou no meu círculo mais íntimo, meio secreto, o livro e eu. Ou meu colega escritor e eu. Esta aqui tentando adivinhar o que o outro quis dizer com essa frase, essa palavra, esse ponto, esse espaço - porque às vezes espaços e entrelinhas contêm a verdade ou a ilusão que o autor alimentava, a esperança que buscava, a alegria ou a dor que sentia.

Para quem gosta de gente, então, escrever e ler são das coisas boas de se existir: isso não exige juventude, beleza, agilidade, dinheiro, mas simplesmente interesse em ir descobrindo (ou jamais descobrir) o que o outro, ao fazer esse texto, buscava transmitir para um futuro leitor, seu parceiro sem rosto, sem nome, mas aberto e comovido: nós, eu.

LYA LUFT

17 DE NOVEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Devolva-se


Geralmente é assim: você deixa sua camisola na casa dele, ele deixa um par de chinelos na sua casa. Namoro novo, ambos empolgados. Então começa um troca-troca mais expressivo: você empresta pra ele um notebook que não andava usando, ele deixa a bicicleta na sua garagem. Você deixa meia dúzia de potes de creme na bancada dele, e ele, quatro camisetas na prateleira mais alta do seu closet. Até que um dia ele traz o cachorro para passar uns dias e, como você tem um pátio, é lá que o pet se instala. E você leva uns 35 livros pra casa dele porque não tem mais onde guardar. Até que o amor, que era pra sempre, um dia acaba e chega a hora do "devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu".

Encontrei uma amiga que estava fazendo hora para ir até a casa do ex buscar suas coisas. Eles ficaram juntos por dois anos, e nem era tanta tralha que ela havia deixado por lá, mas sempre é constrangedor bater a campainha de um apartamento do qual você já teve a chave e, 10 minutos depois, sair com uma sacola na mão e um beijo na testa - o beijo na testa seria o máximo de erotismo que poderia acontecer naquela despedida. Cheguei a sugerir que ela deixasse suas coisas por lá mesmo, mas havia um cashmere que ela economizou pra comprar e nem morta deixaria de legado. Rimos. Ela estava mais leve. Mais bonita. 

Mais brincalhona. O namoro foi uma tortura psicológica, ela havia forçado a barra naquela relação, desde o início não foi o que ela esperava, não tinha a ver com seu modo de viver, ela nem mesmo estava segura de ser hétero, confidenciou. Mas andava tão cansada de ficar sozinha que topou esticar a corda naquele namoro, até que a corda arrebentou. Agora tinha que buscar o tal cashmere e mais umas quinquilharias, só estava fazendo tempo até ele chegar do trabalho, seria avisada por WhatsApp.

Olhei pra ela. Estava realmente mais bonita. Claro, ela havia se devolvido para si mesma. Voltava a conversar sem pisar em ovos, voltava a se vestir de um jeito menos perua, voltava a olhar para os lados, e pediu cerveja em vez de vinho. Lembrei nossa adolescência. Ela era a mais maluquete da turma, a mais livre de todas, e agora nem parecia que o tempo havia passado, ela voltava a ser integralmente quem era. É chato ter que buscar nossas coisas na casa do ex, mas a devolução mais importante é a da nossa essência - estorno automático, sem precisar nos buscar em lugar algum, a não ser dentro de nós.

O sinal do WhatsApp tocou, era ele avisando que já estava em casa e ela poderia ir pegar suas coisas. No mesmo instante, uma garota entrou no café, olhou fixo para minha amiga e sentou sozinha no balcão. Percebi um clima no ar, então me levantei para ir embora. Esquece aquele cashmere, eu disse, fica aí. Depois eu soube. Ficaram naquela noite mesmo.

MARTHA MEDEIROS

17 DE NOVEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Minha saudade é uma bergamota

Quando piso em Recife, o meu primeiro ato é comer aquele abacaxi suntuoso. Não existe abacaxi igual. Ele tem mais fome de mim do que eu mesmo. O abacaxi saliva no prato.

Quando ponho os pés em Belo Horizonte, procuro o exotismo da jabuticaba. É um minério de néctar: feito do sabor das alturas, acúmulo de ventos de todas as montanhas.

Quando me encontro em Fortaleza, não abro mão da água de coco. É um verdadeiro litrão dentro da casca, diferente do raso conteúdo de outras praias. O canudo não é uma seringa, chego a me engasgar com o seu jorro.

Cada região traz a peculiaridade de uma fruta. Minha saudade pode ser medida pelo suco de cada uma delas.

Depois de longas viagens, só me sinto mesmo no pampa ao descascar uma bergamota. Não há tangerina semelhante em qualquer parte do mundo, doce como um mousse. Já entra na categoria de sobremesa.

É uma fruta possessiva, ciumenta, o cheiro da casca fica nas mãos e não sai com a água. Externa o nosso temperamento apegado e bairrista.

A tranquilidade que tenho ao repartir os gomos é incomparável. Relaxo ao extremo, transportado espiritualmente para uma estância quieta de estrelas. Nem tiro a pele, apetece-me o seu gosto rude e selvagem. Vou mastigando devagar com a língua, pressionando as pequenas bolhas até o seu estouro na garganta.

O mel esguichado na boca mata a nostalgia do meu torrão, da minha infância, dos roubos no alto dos galhos da bergamoteira no quintal dos meus avós. A memória volta com facilidade, nem preciso me esforçar para lembrar de nada.

Armo um ritual para amar o momento por inteiro: sento na varanda, de frente à rua, solitário e silencioso, e passo a cuspir as sementes ao longe, em direção à terra - imaginando que alguma delas acabará germinando, por generoso acidente, para a sorte de meus netos.

As sementes arremessadas são como pedras ricocheteando a superfície das águas. Em vez do espelho do rio, dou-me o direito de brincar em acertar as hastes das flores no jardim.

Não é uma cena educada, porém revela uma imensa e prazerosa liberdade, dotada da espontaneidade infantil de usar os lábios em estilingue. Novamente me enxergo menino desafiando os bons modos e a contenção dos gestos.

Eu sou tão eu comendo bergamota. Sou tão inteiro e sincero. Sou tão gaúcho. Talvez desfrute da minha melhor versão. Talvez o meu coração seja uma pequena e alaranjada bergamota.

CARPINEJAR

17 DE NOVEMBRO DE 2018
PIANGERS

Uma creche no escritório


Não faz muito tempo, uma empresa grande me pediu uma consultoria. É uma empresa multinacional, com milhares de funcionários, que estava tentando entender o motivo de estarem perdendo muitos talentos - pais e mães. Depois que os funcionários tinham filhos, muitos decidiam pedir demissão.

Tentei explicar para o pessoal do RH que, depois de ter filhos, sua perspectiva muda. Você quer trabalhar em algo que tenha significado. Você quer passar mais tempo perto dos filhos. Você quer empreender. Nasce um filho, nasce um blog de mãe. Nasce uma empresa de brinquedos de madeira. Nasce uma loja de papinhas orgânicas. Nasce um home office.

"E o que podemos fazer para segurar esses pais talentosos na empresa?", me perguntaram. Em primeiro lugar, ter algum senso de significado naquilo que a empresa faz. Senso de propósito. Senso de que um colaborador faz algo além do serviço diário. Algo que é maior do que cada um, algo que torna o mundo melhor. Resume-se naquela história: JF Kennedy, visitando os escritórios da Nasa, pergunta para a faxineira o que ela fazia todos os dias. "Ajudo a colocar o homem na Lua, senhor", ela respondeu.

"Ok, mas nós temos o propósito escrito nas paredes. A missão, a visão, os valores. Mas eles continuam pedindo demissão", declararam, achei o tom até um pouco desesperado. "Querem algo prático? Então lá vai: façam uma creche aqui dentro da empresa, para os filhos de funcionários em idade pré-escolar". Todos me olharam sem entender. "Quando voltamos ao trabalho, tudo o que queremos é estar perto dos filhos. Estamos com a cabeça na criança. Ficamos aflitos com reuniões perto da hora de pegar nossos filhos na creche. Façam uma creche no escritório e terão mães e pais felizes que poderão ver seus filhos durante todo o dia", sugeri.

Imagina que delícia, poder dar um cheiro no filho entre uma reunião estressante e outra. Poder amamentar tranquila, sem precisar sair do escritório. Não pegar trânsito até a escolinha pra depois ir pra casa. Sei que algumas empresas já oferecem creches no local de trabalho e sei que essas empresas retêm seus talentos em maior número, depois que viram pais. Um pai e uma mãe tranquilos são mais produtivos. Um bebê no escritório deixa todo mundo mais feliz. Espero um dia ver empresas com mais creches e menos fumódromos.

PIANGERS

17 DE NOVEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

SEDENTÁRIOS BEM ALIMENTADOS

Pela primeira vez na história de nossa espécie, foi-nos oferecida a possibilidade de comer à larga e de ganhar a vida sentados

A vida do homem na Terra nunca foi um mar de rosas. Seis milhões de anos atrás, ao perceber que em cima das árvores não havia alimentos suficientes, nossos antepassados não encontraram alternativa senão enfrentar os perigos do bipedismo, nas savanas da África.

Primatas com menos de um metro de altura, frágeis se comparados às feras carnívoras da vizinhança, os primeiros hominídeos foram obrigados a formar grupos para se defender, necessidade que forjaria o comportamento das gerações que chegaram até nós.

Os primeiros bandos habitaram cavernas. Não fazia sentido construir moradias para abandoná-las quando a caça rareasse e as frutas e os tubérculos chegassem ao fim. Milhões de anos de nomadismo fincaram raízes tão sólidas que esse estilo de vida predominou até insignificantes 10 mil anos atrás, com o surgimento da agricultura.

No decorrer desses milhões de anos, a seleção natural impôs ao corpo humano adaptações radicais. Ficamos mais altos, nosso córtex cerebral se desenvolveu, aprendemos a nos comunicar por meio da fala, da escrita e da eletrônica, fizemos revoluções na agricultura e na tecnologia de preservação de alimentos e construímos cidades gigantescas. Enquanto os trogloditas que nos antecederam viviam em média 20 anos, a expectativa atual ultrapassou 70 anos, na maioria dos países.

Esses avanços trouxeram problemas inesperados, no entanto. A explosão demográfica, a poluição e o aquecimento global colocam em risco não apenas a saúde dos habitantes, mas a própria vida na Terra.

Na hipótese de contrariarmos os estudiosos do clima e sobrevivermos às intempéries planetárias, a oferta abundante de alimentos de boa qualidade acessíveis a grandes massas populacionais e os confortos da vida moderna continuarão ameaçando a saúde individual e coletiva. Comida farta e sedentarismo criaram uma armadilha que impedirá aumentos expressivos na expectativa de vida dos nossos filhos.

Pela primeira vez na história de nossa espécie, foi-nos oferecida a possibilidade de comer à larga em todas as refeições e de ganhar a vida sentados o dia inteiro. Obesidade e sedentarismo se tornaram as principais epidemias nos países de renda média e alta, nos quais a praga mortífera do tabagismo começa a ser a duras penas controlada.

Na esteira dessas duas pandemias, caminham a passos apressados: hipertensão arterial, diversos tipos de câncer, diabetes, doenças cardiovasculares, problemas ortopédicos, articulares, renais e outras complicações que sobrecarregam o sistema de saúde, encarecem o atendimento e fazem sofrer milhões de pessoas. Nas capitais, 19% dos brasileiros adultos estão obesos e outros 35% têm sobrepeso (Vigitel, 2017), ou seja, menos da metade da população cai na faixa do peso considerado saudável.

A fila de candidatos à cirurgia bariátrica aumenta mais depressa do que as nossas condições para operá-los; muitos morrem enquanto aguardam. Nesse ritmo, daqui a pouco estaremos como os americanos: 40% de adultos obesos; quase outro tanto com sobrepeso (CDC, 2018).

A demanda por atendimento médico de uma população que envelhece rapidamente é trágica para o SUS e insuportável para os planos de saúde. O SUS não vai à falência, porque, quando falta disponibilidade, o atendimento é negado, expediente com o qual não conta a saúde suplementar.

Na contramão de outros ramos da economia, a incorporação de tecnologia na área médica aumenta o custo do produto final. A assistência a uma população que envelhece mal como a brasileira exigirá recursos de que não dispomos no SUS nem na saúde suplementar.

Esperar as pessoas adoecerem para tratá-las em hospitais e unidades de pronto-atendimento é política suicida. Não há saída: ou investimos na prevenção ou, cada vez mais, só os privilegiados terão acesso à medicina moderna.

Ministério e secretarias de Saúde, escolas, associações comunitárias, imprensa, empresas, a sociedade inteira precisa se envolver na divulgação e na aplicação prática da principal mensagem de saúde pública, no Brasil atual: "Não dá para passar o dia sentado comendo tudo o que oferecem".

Nos anos 1960, cerca de 60% dos nossos adultos fumavam, hoje não passam de 10%. Se conseguimos resultado tão impressionante com a dependência química mais feroz que a medicina conhece, não é impossível convencer mulheres, crianças e homens a comer um pouco menos e a andar míseros 40 minutos num dia de 24 horas.

DRAUZIO VARELLA

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