sábado, 3 de novembro de 2018



03 DE NOVEMBRO DE 2018

J.J. CAMARGO

NA MORTE NÃO SE IMPROVISA

As circunstâncias em que convivemos com alguém interferem diretamente na possibilidade de conhecê-lo profundamente ou seguir sendo um desconhecido completo. Na saúde plena, podemos ser inexpugnáveis e seguir como estranhos pela vida afora.

Coloque uma doença na relação e a couraça se romperá numa velocidade proporcional ao medo que esta enfermidade provoca na sua vítima. O processo será violentamente acelerado se houver o risco, real ou imaginário, de morte. Quando esse medo se materializa, há uma verdadeira convulsão familiar, sacudida por uma mistura imponderável de revolta, angústia, culpa e remorso.

A percepção sempre traumática de amores não confessados, de afetos negligenciados ou de gratidão omitida explica por que alguém, muitas vezes subvalorizado no contexto de uma família considerada normal, ao adoecer, se transforma em catalizador das reações emocionais mais imprevisíveis, a demonstrar que ninguém adoece sozinho e que o efeito que essa situação desencadeia é revelador de como se viveu até então, porque ninguém vive de um jeito e morre de outro.

Recebi o Cezar para avaliar um quadro de aparente disseminação pulmonar de um câncer, de primário ignorado. A biópsia de um dos nódulos mostrou tratar-se de metástase de um tumor neuroendócrino indiferenciado, de origem em aparelho digestivo. Naquele ano, a quimioterapia, com sua agressividade inespecífica, recém começava a ser confrontada com a imunoterapia, indicada para pacientes portadores de determinadas mutações, e que revolucionou o tratamento oncológico com o surgimento de drogas novas, capazes de "ensinar" as células de defesa do organismo a reconhecer as células cancerosas como estranhas e a combatê-las, com resultados impressionantes.

Perfeitamente enquadrado no protocolo, o Cezar teve alta cheio de esperança, com um imenso alívio da ansiedade de todos. Passados quatro anos, recebi dele uma carta, com a delicadeza de ter sido escrita à mão e com uma letra de quem teve o privilégio de ter sido educado numa época em que a caligrafia era indicativo de sofisticação:

"Meu querido doutor, desejei muito que esta carta nunca tivesse chegado às tuas mãos. Como isto está acontecendo, é porque os meus temores se confirmaram. Mas, apesar do pior desfecho, a minha intenção é só agradecer. Desde aquela internação, vivi pelos menos três anos e meio muito bons. Organizei minha vida, viajei com meus filhos, fui a Praga duas vezes e até tive várias noites em que dormi sem pensar na minha doença, que me deixou crer que tinha sumido. O mais importante deste tempo conquistado foi a minha chance de reconciliação com a minha família, com Deus e, muito, comigo mesmo.

Há seis meses, senti uma tontura depois de um jantar em que tinha tomado meu sauvignon blanc preferido e atribui a ele aquele sintoma. Na noite seguinte, tudo se repetiu com água mineral e fui deitar mais cedo e não consegui dormir. O medo, que eu até esquecera, estava de volta. Bem cedo da manhã, já fiquei sabendo de uma metástase cerebral, as drogas foram substituídas e iniciei radioterapia do crânio. Estou escrevendo esta carta no último dia do novo tratamento e disse aos meus médicos que não estou bem, mas desisti de explicar que estou sentindo minha vida saindo de mim, porque percebi que eles já estão sabendo: nenhum dos dois me encarou. Obrigado pelo encaminhamento para profissionais tão competentes e carinhosos.

Eles são ótimos. Mas muito mais obrigado por teres sentado na minha cama, há quatro anos, e, com os laudos na mão, teres dito a frase que eu precisava ouvir naquele sábado do maior pavor da minha vida: ?Tenho uma boa notícia pra ti. Se estás pensando em morrer, prepara-te para uma grande decepção, porque não vais conseguir!?. Uma pena que aquela profecia tivesse prazo de validade, mas este tempo extra me permitiu planejar minha despedida. Ao portador desta carta, pedi que te contasse que eu morri em paz".

J.J. CAMARGO

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