sábado, 10 de novembro de 2018



10 DE NOVEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Está na hora de dormir

Tenho ido dormir cedo. Contingências da vida, meu filho vai à escola de manhã e um dos programas de rádio de que participo, o Timeline, agora começa às 7h no fuso da Nova Inglaterra. Maldito horário de verão.

Então, quando o Bonner dá boa-noite, é como se escutasse aquela antiga musiquinha dos cobertores Parahyba:

"Tá na hora de dormir

Não espere a mamãe mandar

Um bom sono pra você

E um alegre despertar?".

Ainda era a época da TV Gaúcha, quando tocava essa musiquinha.

As crianças de hoje não sabem, mas nós só tínhamos três canais de televisão: a Gaúcha, canal 12, a Difusora, 10, e a Piratini, 5. Durante algum tempo, a programação dessas TVs começava apenas a partir das três da tarde. E nós não tínhamos telefone em casa. Como é que vivíamos sem TV, internet, telefone, Xbox e Netflix, isso é algo que não sei.

Houve um tempo em que a minha escola começava às sete e pouco da manhã, acho até que às 7h10min. Sabe lá o que é isso? Como é que alguém vai gostar de estudar se tem de acordar de madrugada para ir à @#$%¨&*()!@# do colégio?

Na verdade, odeio acordar cedo. Odeio com toda a minha alma. Neste exato momento, escrevo com sono. Já tomei três xícaras de café preto, estou na metade da garrafa de chimarrão e o banzo não me abandona. Irritante.

Quando trabalhava só em jornal, eu era mais feliz, por Deus. Começava às duas da tarde, as manhãs serviam para extinguir completamente o sono e as noites eram compridas, que alegria. Nunca dormia antes das duas da madrugada. Nunca. Era bom.

Se bem que, confesso, descobri prazeres em dormir cedo. O sono é mais homogêneo e, quando acordo no meio da noite, que sempre acordo, é meio da noite mesmo, não início da manhã. A vantagem disso é que fico na cama, debaixo do aconchego morno do cobertor, ouvindo o silêncio. No caso, silêncio de verdade. Não há avenidas movimentadas no entorno, os carros não passam por perto. Uma das ruas das imediações aqui de casa, sabe como ela se chama? Rua Calma. Não é lindo isso, uma rua chamar-se, simplesmente, Calma? Há muito disso nesta cidade: uma é a Rua Calma, a outra é a Rua Agradável e tem também a Rua da Saúde e a Rua Verde.

Assim, as madrugadas são quietas. Acordo e não ouço nem o latido distante de algum cachorro, som comum das noites altas do Brasil. Já contei que, uma vez, identifiquei, ao longe, alguém assobiando Moon River, e aquilo me tocou.

Dia desses, despertei pouco antes da hora de levantar. Eram cinco e tanto da madrugada, ainda noite fechada, ninguém devia estar na rua, mas ouvi, bem baixinho, um barulho que reconheci: o rangido do balanço da praça que fica em frente. Quem poderia estar sentado no balanço àquela hora? Deitado ainda, imaginei que fosse algum gaiato voltando da esbórnia. Já fiz algo do gênero, naquele tempo em que podia acordar às 10. Fiquei pensando, enquanto o balanço gemia?

Uma noite divertida com os amigos, muitas risadas, muita bobagem dita em torno à mesa e, ali, bem na frente dele, aquela Afrodite de pele dourada e olhos d?água. E ela olha com seu olhar de Capitu e começa uma conversa e parece que tudo vai dar certo e a noite vai escorrendo e, de repente, estão só os dois no bar. Para onde foram todos? Não importa, nada importa, a não ser aqueles olhos verdes. Eles saem, tomam o mesmo táxi e param na frente do edifício em que ela mora. Ele desce para levá-la até a porta do edifício e, chegando lá?

Nesse momento, tocou o alarme do celular. Era hora de levantar. Fui até o banheiro, fiz as abluções necessárias, saí, caminhei até a sala e, de lá, ouvi o barulhinho do balanço. O cara ainda estava na praça. Comecei a preparar o café imaginando o desfecho da história, ele subindo ao apartamento da semideusa, eles se beijando um beijo infinito? Peguei uma xícara de café. Decidi ir até a sacada, para conhecer o personagem da minha história. O balanço não rangia mais. Abri a porta. Fui para a rua. Vi, já saindo da praça, um rapaz de uns vinte e poucos anos. 

Era magro, alto e talvez fosse parecido comigo, quando eu tinha vinte e poucos anos. Continuei parado, observando, enquanto ele se deslocava para a calçada. Ele caminhava sem pressa, sorvendo a noite que já ia embora. Devia estar recordando os bons momentos que viveu horas atrás? No instante em que passou bem ao lado da minha sacada, olhou para cima e me viu. Calculei que, se fosse eu, na idade dele, acenaria para aquele estranho que olhava do alto da sacada. Ele chegou a tirar as mãos dos bolsos, achei que acenaria, torci para que acenasse. Mas ele não acenou. Foi-se embora, devagar. Pensando nela, supus. Ah, é certo que está pensando nela.

DAVID COIMBRA

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