sábado, 8 de junho de 2019



08 DE JUNHO DE 2019
PAULO GERMANO

O dia em que fui demitido

Um dia, meu editor aqui na Zero decidiu me demitir. Eu tinha 24 anos, já contei essa história. Ele me chamou na salinha envidraçada, onde havia só uma mesa e um telefone para entrevistas, sentou-se à minha frente e disse assim:

- Você ainda vai voltar. Então por que me demite, ô filho duma égua?

Mas só pensei, não falei. Até porque as razões para me dispensar eram bem razoáveis. Não que minhas reportagens fossem ruins, pelo contrário, o problema é que eu sofria. Deus do céu, como eu sofria. Verdade que sofro até hoje - tenho déficit de atenção, tomo remédio e tudo mais, mas já acumulo alguma experiência.

Naquela época, além de lerdo e ansioso, sentia-me o repórter mais inseguro, apavorado e aflito de todos os jornais da história da imprensa mundial. Acordava todo dia de manhã repetindo o edificante mantra:

- Não vou conseguir, não vou conseguir, não vou conseguir.

Aí, bem, eu não conseguia. Por isso, meu editor discursou na salinha, os cotovelos fincados na mesa.

- O trabalho precisa ser uma realização, não um martírio - ele franziu a testa e eu quase chorei. - Mas um dia você volta, porque ninguém tira este patrimônio que é seu: o talento, o bom texto, o domínio da língua - o cara agora me elogiava, era só o que me faltava, qualquer idiota sabia que eu era um fracasso. - É que algumas pessoas demoram mais para amadurecer: Luis Fernando Verissimo, por exemplo, só foi lançar seu primeiro livro aos 37 anos - ele disse, e eu enfim me senti consolado.

O maior cronista do país não era ninguém quando tinha a minha idade? E, se Luis Fernando Verissimo não era ninguém, quem era eu para ser alguém? Foi bom saber daquilo.

Quando cheguei em casa naquela tarde, já desempregado, fui pesquisar a história do Verissimo e descobri que, antes dos 30, ele jamais havia escrito uma única linha sobre nada. Pensava em ser arquiteto, mas nem quis fazer faculdade, jamais foi além do colégio, e toda essa indefinição profissional preocupava o velho Erico, seu pai. Aliás, Luis Fernando levou para a casa do pai, aos 30 anos de idade, a própria mulher e uma filhinha a tiracolo.

Não era um vagabundo, era um perdido.

E eu ali, com 24 anos, passei a aceitar o conforto do meu carrasco. Quem sabe eu demorasse um pouco para engrenar, talvez meu tempo fosse outro, talvez um dia até retornasse ao jornal, como de fato retornei no ano seguinte. E agora, mais de uma década depois, veja que coisa, não sou nenhum Verissimo, mas tenho até uma coluna. Quem sabe no ano que vem, já com 37, eu não lanço um livro?

Sei que essa é uma história pessoal, não quero soar ególatra. É que no mês passado, em uma conversa com estudantes de Jornalismo na PUC, pude sentir a ansiedade, a inquietação e o medo do futuro escorrendo das perguntas que alguns me faziam.

Esse imediatismo é próprio dos jovens, claro, já era assim na minha época. Mas, com a moda de "largar tudo para ser feliz" - como se morar em Dublin fosse necessariamente mais construtivo do que lidar com frustrações -, em uma era regida pelo Instagram, com todo mundo parecendo alegre, bonito e bem-resolvido, como aceitar que minha realização talvez demore um tempinho?

Então, vá que alguém leia meu texto, se identifique - seja um jovem no alvorecer da carreira, seja um pai preocupado com ele - e compreenda a importância da paciência, que só fui assimilar com o editor que me demitiu. Hoje, agradeço a ele. Porque, no mundo possível, não no ideal, realização é coisa que dá trabalho.

PAULO GERMANO

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