sábado, 7 de dezembro de 2019


07 DE DEZEMBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

SAFO E OS AMORES

Na aurora da cultura, em uma ilha remota do Mediterrâneo, brilhou Safo com sua poesia, e desde então ela ilumina a arte e a condição humana, inspira, seduz, provoca. Escreveu Platão: "Alguns dizem que as Musas são nove, que descuido! Vejam, também há Safo de Lesbos, a décima!". É espantoso que ainda falemos dela com encanto, 27 séculos após sua vida, nós em um arrabalde da América, em uma era em nada similar àquela em que ela floresceu.

Era cerca de 630 a.C., antes de a filosofia de Tales abrir caminho para a ciência, antes da democracia de Atenas inaugurar a era moderna e de a estrangeira Aspásia de Mileto dominar a pólis de Péricles com seu saber e com sua beleza. Foi antes de Eurípides incendiar o imaginário feminino com sua maga Medeia; antes de tudo e de todas, lá estava Safo, sensível, enluarada. Safo não construiu palácio, não cunhou moeda, não teve riqueza ou poder, mas era pura poesia, e é essa aura quase intangível da beleza que sobrevive após tantos séculos. Que força misteriosa, o poder de uma mulher poeta, o enigma e a beleza de Safo.

Lesbos é uma ilha a nordeste do Mar Egeu, próxima da Tróade, a península em que se deu a mãe de todas as guerras, Troia, no século XII a.C.. Caminho do Mar Negro, a ilha abrigava ricos guerreiros e mercadores de que hoje não se sabe o nome, mas que incomodavam à poetisa: "Os que me condenam,/ Que o vento e suas aflições os carreguem", disse, milênios antes de Mario Quintana. Ela teria passado alguns anos no exílio, na rica e distante Siracusa. Naquela era, os gregos fundavam cidades com o sabor de utopias, e muitos, como Safo, singravam mares com o vento na proa penteando olhares e sorrisos de esperança.

Safo cantava e dançava com suas amigas, com ternura e entusiasmo. "Adormecendo/ No seio de uma terna amiga". Era, provavelmente, confraria de devotas de Afrodite. "O doce feitiço destes cantos/ Eu vou tecer para as amigas". Seu feito: dançar ao luar, e converter esse encanto em versos, e estes versos em símbolos da condição feminina e da alma humana. Ao parar de falar de guerra e de heróis, como fazia Homero, Safo volta o olhar para o seu coração cheio de desejos e angústias, fragilidade e dor. O indivíduo moderno começa a brotar nos versos daquela mulher cantora.

Em suas canções, aparece, pela primeira vez na história, a imagem do homoerotismo feminino. Em imagens delicadas, esse afeto contrasta com o homoerotismo masculino, praticado (e condenado) pelos gregos. O filósofo francês Jean-Jacques Wunenburger, em recente conferência no StudioClio, bem distinguiu: entre os homens, hierarquia e poder, o amante sênior (erastés) e o amado juvenil (erômenos); entre as mulheres, comunidade, ou seja, o que os gregos chamavam philia, uma atração cordial, que aproxima para unir, horizontalmente. É outro modelo de amor e de cidade. Todas as formas de Eros desafiam e ensinam. Hoje, muitos homens se amam ao modo de Lesbos, diferente do modo ateniense, e todos os homens e mulheres podem se amar com delicadeza sáfica.

Safo sobrevive. Nós também sobreviveremos, com amores e poesias.

Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | marshall@ufrgs.br - FRANCISCO MARSHALL

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