sábado, 7 de dezembro de 2019


07 DE DEZEMBRO DE 2019
J.J. CAMARGO

ESPONTANEIDADE ILIMITADA


A prova de que a espontaneidade é uma condição inata é a sinceridade das crianças, às vezes tão exacerbada que não conseguimos separá-la da crueldade. 

Um colega meu, avô devotado e companheiro constante dos netos, sempre considerou que participar de todas as atividades deles era o segredo para conquistá-los. Mas um dia desses confessou ter ficado um pouco chocado com a sinceridade do menor deles, que tinha se tornado imbatível no videogame, a ponto de ficar irritado com a inabilidade do parceiro e perguntado:

- Vozinho, você sempre foi ruim assim ou piorou depois que ficou muito velho!? Segundo meu amigo, havia mais pena do que reclamação naquele comentário inocente.

Mais adiante na vida, a boa educação recomenda que sejam instalados filtros na interação pessoal e então percebemos que não há um limite muito claro entre o convívio social amistoso e a perda da liberdade de opinião, tão valorizada na mídia quando se propõe expressar ideias que têm opositores, ou seja, aquelas teses que mais valorizamos e abominamos vê-las contrariadas.

E aqui, como em toda a relação social, deve prevalecer o bom senso, que sempre está em algum ponto do meio do caminho entre o submisso crônico e supersincero. O primeiro deprime pela incapacidade de expressar uma modesta opinião, porque não quer se indispor com ninguém, e que tantas vezes dá a impressão de estar em apoplexia fulminante, e é possível que esteja. 

E o supersincero, reconhecido com um tipo assustador que deve ser evitado, banido e exilado, sob pena de comprometer o equilíbrio social de uma comunidade. Este equilíbrio, que se chama cordialidade, é convenientemente construído com doses generosas de amorosidade, simpatia, disponibilidade, sorriso fácil e, claro, de hipocrisia.

Entre os educados, circulam uns tipos curiosos, que por algumas características culturais preservam a capacidade de dizer coisas que a maioria das pessoas, no máximo, pensaria, mas não se arrisca a expressá-las. Nesse quesito, acho que os nossos imigrantes italianos mais velhos são imbatíveis, porque dizem o que dizem, sem nenhum intuito de agredir ou melindrar, mas como uma forma de humor que pode parecer tosco. Mas é inevitável sentir uma pontinha de inveja de quem não se limita com os tais filtros e consegue substituir o azedume constrito por uma boa risada.

No prédio onde tenho consultório, foi instalado um sistema de segurança com biometria, e uma tarde, em que um dos elevadores estragou, a disputa por espaço no remanescente se tornou acirrada. 

Quando o único elevador disponível aportou no térreo vindo do estacionamento, só havia vaga para uma pessoa, e a moça que organiza o sistema de acesso, pediu gentilmente que "aguardassem um pouco o Dr. Camargo", porque o sistema estava com dificuldade de ler a minha digital. Finalmente liberado, entrei no elevador de costas e ocupei, constrangido, o espaço que criaram pra mim. E então, quando a porta se fechou, veio lá do fundo o comentário com aquele sotaque inconfundível dos nossos gringos:

- Mas será que se tu pagava o condomínio isso não te facilitava a entrada? Quando a porta abriu no meu andar, o elevador ainda reverberava o efeito da gargalhada geral. Num dos andares acima desceria um tipo com baixo risco de infarto.

J.J. CAMARGO

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