sábado, 5 de setembro de 2020




05 DE SETEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

POR QUE MENTIMOS?

Mentir faz parte da nossa natureza e, se admitirmos que a alegada expulsão de Adão e Eva do paraíso começou com uma desculpa esfarrapada da Eva, ninguém dirá que estamos diante de uma novidade chocante.

Nem os ingênuos, nem os mais otimistas conceberiam um mundo sem mentiras. Normalmente vista como a vilã dos relacionamentos pessoais, a mentira existe, em muito, porque nos ajuda a cumprir um propósito essencial: a convivência civilizada em sociedade.

A propósito, como seria o mundo da sinceridade absoluta? Claro que teríamos vantagens; todas as promessas de campanha seriam cumpridas, os compromissos seriam respeitados, ninguém manteria segredos, a traição não existiria e certos políticos volúveis seriam excluídos de todos os grupos de WhatsApp, poupando-nos da náusea recorrente. Em contrapartida, você teria que ouvir, com naturalidade, o que os outros pensam da sua aparência, dos seus amores, das suas opiniões e do seu futuro profissional.

Em sã consciência, esperamos que as pessoas nos tratem com sinceridade, mas intimamente tememos o súper sincero, admitindo que as pequenas mentiras do dia a dia tornam o viver suportável, pois não precisamos enfrentar verdades que nem sempre estamos prontos para encarar. Então uma mentirinha aqui e ali pode ser um elemento indispensável na vida social.

De acordo com Mônica Portella, psicóloga e autora do divertido Como Identificar a Mentira, são dois os principais motivos que levam as pessoas a mentir: proteger-se de uma possível consequência negativa de nossas ações e preservar a autoimagem. Ou seja, quando sabemos que nossa posição poderá sofrer reprovações ou sanções optamos por mentir. Naturalmente, esperamos que a mentira cole e, mais importante, que dure, porque nada mais assustador do que a sensação desagradável de que um dia ela será descoberta. Porque todos sabemos que um dia será.

Quem tiver interesse pelo tema não pode deixar de ler o maravilhoso Why We Lie? (2009), do professor de filosofia e historiador David Livingstone Smith, que enxerga outra motivação essencial para os mentirosos: "Conseguir coisas que seriam mais difíceis de obter de outra forma". E, indicando o quanto a mentira contumaz revela o caráter, acrescenta: "Mentimos em qualquer circunstância onde manipular o comportamento do outro possa ser vantajoso para nós".

O Primeiro Mentiroso (The Invention of Lying, 2009), um filme escrito e interpretado por Ricky Gervais, mostra um fracassado roteirista do cinema que vive em um mundo ideal, no qual ninguém mente, e aceita estoicamente as opiniões sinceras (e quase sempre cruéis) dos outros. Um dia, depois de ter sido demitido e acabado de ouvir o que a garota dos seus sonhos pensava dele, voltou para casa e foi ameaçado de despejo, porque o aluguel de US$ 800 estava vencido. Foi ao banco, mentiu pela primeira vez, e a atendente, crédula como todo mundo, lhe entregou a quantia de que ele precisava. Inaugurado o ciclo da mentira, ele se torna rico e famoso. Na história, se mantém um canalha que preservou a doçura, um exemplo que virou clichê no mundo moderno.

Será que já tivemos uma época em que ninguém sabia mentir, até que alguém descobriu os poderes da dissimulação? Mônica e David acham que não, e creem que mentir é algo natural para os seres humanos. Incluindo o bebezinho, que, ao descobrir o quanto o choro lhe traz de benefícios, produz, com aquela carinha de anjo, a primeira das muitas mentiras futuras. Talvez tudo seja mesmo só uma questão de dose.

J.J. CAMARGO

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