sábado, 28 de novembro de 2020


28 DE NOVEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Não gostar de poesia

A vida precisa de uma porta para espiar o que há dentro: um corredor, o espelho e suas criaturas, a sala da família e um claro quarto de criança; um porão de aflições que soluçam à noite (mas dizemos: é o vento); o pátio, simples, e o pequeno jardim com três árvores esguias que afinal são um bosque.

Num resto de muro, a escada de madeira que parece não levar a nada.(Pousado no último degrau, um pássaro de sombra nos observa: seu bico é curvo e afiado.)

O meu é o reino das palavras: aqui tudo pode ser dito - a cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios. Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros sem ler, sacodem a cabeça - e não entenderão. Porque eu falo para os da minha raça: os que além de racionais são também ilógicos, os bem-estabelecidos que amam o imprevisível, os que na margem concreta enxergam mais do que isso e não têm com quem o partilhar.

Por isso atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, ou simplesmente vagam alertas pela sua casa quando os outros ancoraram no sono. Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida - esta que escreve não sou eu, mas algo que transborda dos meus contornos como o mar transbordava de uma concha naquela mão, na infância dourada.

E minha alma, esse cavalo alado, inocente menina ou feiticeira perversa, fará deste novelo de caos e luz o seu porto de partida, num sopro desenrolando infinitamente o nome que é todos os nomes e é minha alegria.

Alguém joga xadrez com minha vida, alguém me borda do avesso, alguém maneja os cordéis. Mordo devagar o fruto da minha inquietação. Alguém me inventa e desinventa como quer: talvez seja esta a minha condição. Bastaria um momento de silêncio para eu ser feliz: mas do fundo do palco uma voz me chama.

Será a Vida, ou é a Morte, apenas, que reclama?

Nada entendo de signos: se digo flor é flor, se digo água é água.(Mas pode ser disfarce de um segredo.)Se não podem sentir, não torçam a árvore-de-coral do meu silêncio: deixem que eu represente meu papel. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da interpretação: se não me podem amar, esqueçam-me.

Com as perdas só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação. Mais nada. A vida corre à frente dos relógios. O ritmo das águas indica o roteiro e me oferece um papel: o coração como uma vela ao vento, ou pagar até o fim as contas já vencidas.

Abro a gaveta e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, retorce-se no labirinto das ambiguidades.

Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer. Mas ela inventa o que faço: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta, belo enigma. Eu, mediação incompetente.

Estes são os meus objetos. Este é o meu rosto: uns olhos que, de procurar demais, olham só para dentro. E se tudo desemboca na morte, esse é o meu destino. É para lá que vou, esperança e protesto, segurando o candelabro dos amores que me iluminaram na vida.

(Resistirão, singularmente, ao meu último sopro?)

LYA LUFT

28 DE NOVEMBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

OS GOMOS DO DESEJO

Jogando bola com amigos e sem camisa, Guilherme parecia ter um bom corpo. Sua namorada elogiava sua definição muscular. Ele sorria e baixava o rosto, sinal de que concordava com a fala. Porém, ele tinha um "espinho na carne", como Paulo descreve aos Coríntios. O espinho paulino é um mistério teológico. O de Guilherme é fácil de identificar: abdominais definidos. Sim, nosso jovem é magro, todavia nada indica sob a pele lisa que se agitem as rugosidades que os romanos chamavam de "pequenos ratos" (origem da palavra músculo) sob a epiderme. Inexistia o "tanquinho".

Guilherme sentia a falta dos gomos e seguia na busca. Houve dietas rigorosas, suplementos, abdominais com peso e corridas épicas. Privou-se de quase tudo de que gostava à mesa e colocou fotos de pessoas definidas na porta do refrigerador. Foram tantas imagens de modelos homens que a mãe já imaginava que não surgiriam netos a consolar sua velhice. Enganava-se. Os fisiculturistas e modelos eram um espelho para Guilherme, uma meta, e não uma inclinação erótica. A luta continuava...

Houve riscos à saúde com substâncias mais agressivas. O curioso é que toda a vida do jovem era marcada pelo equilíbrio. Em política, esportes e no trato com as pessoas ele era a imagem da ponderação. O carro da razão só tropeçava no tema abdômen. Inflamava-se. Elogiavam alguém, e ele lançava: "É, mas sem abdominais definidos". Indicavam algum ser de fealdade notável, e ele defendia: "Verdade, porém possui abdominais definidos".

Havia uma neurose a caminho e ela crescia, ao contrário do seu tanquinho. Um dia, Helena sorriu feliz para ele durante um banho a dois, de puro afeto gratuito. Ele se irritou: "Você está rindo porque eu não tenho gominhos, não é?". Ela se irritou pela quebra do "clima" e disse que ele era lindo e que ela não se importava. Era nítido que as palavras dela soavam assim ao cérebro com tal ferida narcísica: "Sim, você é bonitinho, pena que não tenha abdominais definidos. Se tivesse, eu seria feliz".

Os esforços de Guilherme atingiram todo o corpo: engrossou os braços, definiu as coxas, realçou o peitoral e desenvolveu o melhor trapézio da turma de amigos. O corpo reagia aos pesos e aos fármacos. A dieta ultrarrestritiva produziu um jovem esculpido. Tudo perfeito. Menos... os abdominais. Ele chegou a ver um site com um implante de matérias rugosas sob a pele que reproduziam os desejados músculos inatingíveis até então. A publicidade em torno de uma morte em busca similar o fez temer.

Os vídeos eram claros. As pessoas de sucesso (no vocabulário guilhérmico isso significava "os com gominhos") insistiam. O caminho estava indicado: bastava aumentar o esforço. Mais dieta, mais pesos, exercícios em ângulos cada vez mais criativos, um novo personal especializado na região. Ele fazia atividades concentradas para o oblíquo interno, tarefas da tarde para o reto abdominal, e não descuidava do transverso abdominal: nem Leonardo da Vinci soubera tanto de anatomia como Guilherme. A gordura do moço estava em índices de competidor profissional. Pernas e peito exibiam fibras felizes. Os abdominais continuavam na Terra do Nunca como um sonho de Peter Pan anabolizado.

Por vezes, ele se sentiu como o Salieri do filme Amadeus: sacrificara tudo e o talento foi dado a um devasso não inclinado ao esforço. Guilherme contemplava Mozarts na academia que já tinham vindo ao mundo com seis e até oito gomos perfeitamente desenhados. Comiam mal, treinavam errado e ganharam da Divina Providência a tal genética privilegiada. Voltava para casa triste e contemplava seu pai com certa raiva. Um dia, durante um jantar, soltou uma reclamação aos progenitores: "Odeio minha genética". E saiu chorando da mesa.

Guilherme cresceu entre os rochedos do desejo denegado e as ondas da resignação. Parou de reclamar em função da crescente irritação de amigos e familiares. Com ajuda psicológica, acabou percebendo que era possível conviver com um grau de frustração e tentou milhares de explicações psicanalíticas para o desejo tão potente. Os gomos, por volta dos 35 anos, desapareceram naquela fase em que a nau biográfica de cada um já cruzou o Cabo da Boa Esperança e está mais fácil chegar daquele jeito às Índias do que retornar a Lisboa. O diabo velho sabe mais por velho do que por diabo, asseguram espanhóis. A calma sobreveio e, cercado de filhos, de uma esposa dedicada e de um emprego estável, os anos transcorreram tranquilos. Chegaram momentos em que ele, contemplando fotos da juventude em jornadas com anilhas e corridas, pensava que fora tomado por certa psicose. Sorria, feliz, percebendo que era coisa do passado.

Já homem maduro, Guilherme foi diagnosticado com doença de Crohn. O mal resistiu a muitos tratamentos e paliativos. O sintoma de uma diarreia quase intermitente tornou a vida do nosso protagonista complexa, ainda que não trágica. Adaptou-se à perda de peso. Aquele que nunca fora obeso agora estava extraordinariamente magro. Nem assim, nem com o avançar da doença, os abdominais surgiram. O corpo cedeu à idade e a complicações variadas. Leve e magro, e sem abdominais, Guilherme foi velado por uma família chorosa. Levara uma vida honrada e produtiva. O tio escultor presenteou a viúva com a imagem de um crucifixo em bronze finamente lavrado. A bela obra foi colocada sobre o jazigo: um Jesus dependurado na cruz, com sua roupa sumária, exibindo oito claros e definidos abdominais. Para sempre, sobre o corpo de Guilherme, a lembrança de que, por vezes, há coisas que não se conseguem na vida, todavia a ironia sempre vela por todos na morte. Não tendo conseguido seu desejo maior, seria agora julgado por alguém que tinha abdominais sem nunca ter se importado com eles. Acima dele e do mundo, os abdominais divinos e a frustração terrena. É preciso sempre ter esperança, nem sempre é necessário o abdominal marcado. Há coisas que são de Deus.

LEANDRO KARNAL

28 DE NOVEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Sorte na vida

A minha querida amiga Leila Ferreira, escritora, tem uma frase ótima: "Às vezes, os melhores fins de semana caem numa terça-feira". Dito e feito: numa terça dessas, fiquei de papo com Nelson Motta (ele no Rio, eu em Porto Alegre), gravando nossa participação no Festival Saber Viver, que irá ao ar pelo YouTube em breve. E claro que falamos sobre sorte, assunto de sua recém-lançada biografia, e que eu também já tive muita. Exemplo: através do meu trabalho, acabei chegando perto de quem sempre fui fã.

Costuma-se dizer que a sorte vem colada a quem se esforça. É verdade, mas com ressalvas: tem gente que nem assim garante seu lugar ao sol. É só pensar neste 2020 em que veio uma pandemia e bagunçou tudo. Nada é absoluto, nem mesmo a sorte.

Claro que há sortes pontuais: ganhar um dinheiro na loteria, perder um voo que caiu, ou não perder e sentar ao lado de um Chico Buarque louco para conversar. São sortes que acontecem uma vez ou outra, mas não garantem uma biografia continuamente bem recheada.

Para ter a sensação permanente de que a vida flui sem obstáculos, é preciso a sorte de ser leve. A sorte de não ser paranoico. A sorte de perceber grandeza nas miudezas. A sorte de reconhecer a extrema importância dos afetos mais íntimos, antes que eles partam. A sorte de achar graça na vida. A sorte de se comover com música. A sorte de gostar de ler livros profundos, geniais, incômodos. A sorte de estar aberto para todo tipo de amor. A sorte de gostar de ficar só, que é o que nos salva do convívio forçado com pessoas chatas. A sorte de gostar de gente interessante, mais do que de gente influente. A sorte de não se entregar a expectativas mirabolantes, de ver o lado bom daquilo que deu errado, de não fazer drama por qualquer bobagem (se doer, doer mesmo, transforme em poesia). A sorte de perceber a elegância que há na inteligência, mais do que em grifes. 

A sorte de gostar de viajar, de ir ao encontro de temperaturas mínimas e máximas, de cenários do tipo "me belisca", de enrascadas que serão divertidas, de comidas estranhas e de estrangeiros com quem será impossível conversar, a não ser por mímica. A sorte de ter coragem. A sorte de sempre criar uma atmosfera boa ao seu redor. A sorte de lidar com o caos sem sofrer demais. A sorte da delicadeza e da humildade quando não se está em evidência, e principalmente quando se está. A sorte de não se agarrar à vida de forma agressiva ou petulante, mas de gostar dela de um jeito tão sincero que a faça retribuir, gostando muito de você também.

Boa sorte a todos que a merecerem neste domingo em que a biografia de tanta gente irá mudar - a de alguns eleitos e, se tudo der certo, a de milhares de eleitores.

MARTHA MEDEIROS

28 DE NOVEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Pessoas que dizem mas

Foi meu filho quem reparou. "Mãe, notou que para tudo tu tens um mas?"

Eu não havia percebido. Então, depois que ele falou, passei a prestar atenção no que eu me tornei: uma pessoa que diz mas.

O filme é interessante, mas o ator é péssimo. O restaurante é ótimo, mas o atendimento é bem ruinzinho.

Entreguei o trabalho, mas podia ter ficado melhor. Pintei o cabelo, mas acho que ficou muito claro.

Chegou a comida, mas veio fria. Comprei um vestido, mas não caiu muito bem. E, assim, ad infinitum.

Não sei em que momento me tornei essa pessoa. Sempre ouvi que eu era positiva, otimista. Talvez seja a idade, é mais fácil ser positiva e otimista aos vinte e poucos, trinta anos. Os problemas existem, apenas não parecem insolúveis na saúde e na juventude. Com um bom amor juvenil, nada é ruim o bastante. Até a falta de dinheiro é menos dura quando existe colágeno.

Claro: tudo dentro da realidade branca e classe média. O parágrafo acima não se aplica, ou não de todo, a pessoas que nasceram em outro contexto. Antes que alguém pense, ih, começou o mimimi, não se trata disso. Só é preciso reconhecer os próprios privilégios e entender que a maioria absoluta da população está submetida a condições que a realidade branca jamais viveu nem vai viver.

Esta coluna é leve, mas não é alienada.

Voltando ao presente.

Nós, as pessoas que dizemos mas, não ficamos satisfeitas nunca. Por mais que se mexa, se invente, se vá atrás, se desdobre, se vire, sempre falta alguma coisa.

Consegui o emprego, mas não era bem o que eu pensava.

Mudei de telefone, mas odiei o sistema.

Emagreci, mas fiquei flácida.

Casei, mas que tédio.

Tive o filho que eu queria, mas não durmo mais.

Mudei de apartamento, mas é muito barulhento.

Pior que o mas não é usado apenas em desproveito próprio. Pessoas que dizem mas nem percebem que estragam a alegria alheia. Gramaticalmente uma conjunção coordenativa adversativa, o mas é também uma crítica - muitas vezes, fora de hora - , uma bola nas costas, um sinal de azedume, uma demonstração de maus bofes. É o elogio com um contrapeso incluído.

Gostei do teu cabelo, mas preferia como era antes.

Teu churrasco é bom, mas tem muita gordura.

Gostei do teu livro, mas o final podia ser melhor.

Tua ideia é ótima, mas eu faria diferente.

Pode sair com essa camisa, mas a outra é mais bonita.

Agora que me reconheci uma pessoa que diz mas, tentarei diminuir o adversativo não nas minhas frases, mas nos meus pensamentos. Ainda que não seja fácil, porque o adverso tem nos acompanhado em praticamente todos os dias deste ano.

Não sei se vai dar certo. Mas assim como cheguei ao fim deste texto sem usar qualquer mas que não fosse de efeito, digamos, cenográfico, vai que consigo ficar limpa de tanto mas também na vida?

CLAUDIA TAJES

28 DE NOVEMBRO DE 2020
FABRO STEIBEL

TRAGO SUA FOTO NUA EM TRÊS DIAS

Uma inovação tecnológica, que apareceu no Telegram, permite desnudar mulheres jovens em poucos dias. Trata-se de um negócio informal que nasceu na Índia e usa essa rede social para encontrar clientes. A negociação é digital: conversando com um chatbot, você envia a foto de uma mulher com roupa e o bot devolve a mesma foto com ela pelada. Tudo por menos de R$ 10. O corpo nu é renderizado com base em mais de 680 mil fotos semelhantes obtidas sem qualquer autorização, e os impactos de um negócio tão nefasto dizem muito sobre como questões de gênero e tecnologia se conectam.

O robô que atende você pela internet faz uso de uma aplicação de inteligência artificial chamada DeepNude AI, criada em 2019 para tirar roupa de mulheres. As tecnologias inventadas pelos humanos têm o potencial de ser neutras, mas é difícil argumentar isso quando há tantos aplicativos que fazem uma coisa só. Veja o exemplo: se você quiser desnudar um homem adulto, não há algoritmo para fazer isso. Já se quiser emular uma Lolita, sobram ferramentas desenvolvidas por aí.

O uso de inteligência artificial para gerar deep fakes, ou imagens falsas, é promissor e pode ser bem empregado. Os filmes da Pixar usam esse tipo de tecnologia; na medicina, o uso de deep fakes facilita a realização de diagnósticos; e, na arquitetura, há usos tão naturais de deep fake que você pode usá-los sem nem saber. Isso sem nem entrar no universo de games, que usam a tecnologia para criar avatares ou gerar universos inteiros nos jogos de RPG.

Mas a tecnologia pode também ser muito mal aplicada. Usar inteligência artificial para simular menores de idade nuas é nefasto. E estamos cercados de exemplos similares, que passam despercebidos. Pense na quantidade de buscas de usuários por vídeos "amadores" e do tipo "jovenzinhas" em sites como PornHub e Xvideos. Use sua memória para lembrar de celebridades vítimas de fotos vazadas e pense em quantos casos são de famosas e quantos, de famosos. Isso sem entrar em questões ainda mais complexas de diversidade de gênero.

Investigações para deter essa aplicação foram abertas em países como Estados Unidos, Coreia do sul, Itália e Israel. No Brasil, não há registro de investigações do tipo. Até a Apple e o próprio Telegram implementaram restrições para banir o uso da tecnologia, mas estima-se que até hoje mais de 100 mil mulheres já foram despidas pelo serviço. Essas imagens circularam, em sua maior parte, na Rússia (que concentra 70% do uso do serviço), mas 6% dos usos acontecem em países latino-americanos. Além disso, 63% das imagens são de pedidos para tirar a roupa de pessoas da própria família ou conhecidas.

Saber que criamos uma tecnologia para tirar roupas de mulheres, e que há uma demanda para isso, nos faz refletir. Isso nos lembra a relevância de ter mais mulheres produzindo tecnologia e de aumentar a eficácia de leis de proteção de dados para proteger a privacidade. Além disso, nos obriga a perguntar: de onde surge essa demanda para criarmos tecnologia que desnude mulheres, em lote, e sem consentimento?

FABRO STEIBEL

É HORA DE TRANSFORMARA EDUCAÇÃO

Filósofo, 38 anos Futurista norte-americano nascido na Venezuela, é um dos mais populares divulgadores da ciência atualmente. Apresentador de "Jogos Mentais" e "Origins", no canal a cabo NatGeo, ele estará no Festival POA2020 na sexta-feira

É difícil creditar Jason Silva. Filósofo e futurista são atributos insuficientes. Ele se proclama performer. Suas falas, nos vídeos vistos por milhares de pessoas, em especiais jovens, nas redes sociais ou em palestras, de fato, se adaptam ao termo. Ele abusa das metáforas para fazer com que a ciência seja mais gostosa de se aprender. Nascido em Caracas, Venezuela, mas vivendo há anos nos Estados Unidos, Silva conecta história, ciência e tecnologia com uma linguagem didática e apaixonada por conhecimento por vezes com doses de neolinguística. O apresentador dos programas Jogos Mentais e Origins, do National Geographic Channel, também explora temas como criatividade exponencial e imaginação e defende o uso responsável de substâncias psicotrópicas para ativar o cérebro.

Ele será um dos palestrantes do Festival POA2020, no qual falará na próxima sexta-feira, às 9h30min. De Tulum (México), ele concedeu a seguinte entrevista por telefone.

VOCÊ COSTUMA DIZER QUE SE FOSSE VIVO HOJE, ARISTÓTELES, UM DOS MAIORES FILÓSOFOS DA HISTÓRIA, TERIA UM CANAL NO YOUTUBE. VOCÊ OCUPA VÁRIOS ESPAÇOS MIDIÁTICOS. COMO É O SEU PROCESSO DE CRIAÇÃO?

Para mim é muito importante meu estado mental, que eu me sinta estimulado e relaxado ao mesmo tempo. Não sei se você conhece o termo flow ("fluidez" em inglês). Meu amigo Steven Kotler escreveu um livro chamado Rise of Superman: Decoding the Science of Ultimate Human Performance (em tradução literal, "O despertar do super-homem: decodificando a ciência da performance humana definitiva"), inspirado na ideia de flow. Quando alguém está em flow, tem acesso a mais informações, pensa por meio associações. Quando entro em flow, diferentes ideias se conectam. Encontro conexões entre pensamentos, e isso me permite alcançar novas perspectivas e visões. Quando estou em flow, minha capacidade de improvisação se eleva muitíssimo. Não necessito sequer ter um plano. A única coisa de que preciso é focar em chegar a esse estado mental e me entregar a isso.

MAS É MUITO DIFÍCIL, HOJE EM DIA, ATINGIRMOS UM NÍVEL DE CONCENTRAÇÃO ELEVADO, UMA VEZ QUE ESTAMOS A TODO MOMENTO EXPOSTOS A DIFERENTES MÍDIAS E HIPERCONECTADOS, NÃO?

Sim, é preciso ser muito disciplinado com o seu tempo de desconexão. Quando entro em flow, desligo meu telefone, coloco meu celular em modo avião, para que não me interrompam. Porque não posso estar em um estado fragmentado, não posso ter diferentes sinais interrompendo minha consciência. Necessito estar aqui e presente. É muito importante criar o que muitos chamam de "círculo mágico", como ocorre quando as pessoas fazem meditação ou vão à Igreja rezar, por exemplo. São espaços sagrados. Para mim, a criatividade é um espaço sagrado. Trato a criatividade como ir a um templo. É um espaço sagrado para entrar em outra dimensão de consciência onde se tem acesso a mais informação.

COMO VOCÊ ESTÁ VIVENDO ESSA PANDEMIA? HÁ APRENDIZADOS?

Essa pandemia tem sido algo muito difícil para a humanidade. Ela nos forçou a nos acostumarmos a certas restrições, já bastante debatidas. Há argumentos para os dois lados: gente que diz que há exagero e histeria e pessoas que dizem que as restrições são necessárias, que não deveríamos sair de nossas casas etc. Para mim, é uma situação de tratar de avaliar a propaganda dos dois lados e encontrar um argumento que vá pelo centro. É importante ter algum cuidado, obviamente, mas não se pode viver como um prisioneiro. Tive a oportunidade de escapar para a natureza, onde não me sentia restringido, era fácil não juntar-me com grupos de pessoas em espaços pequenos. Esse foi o equilíbrio que consegui. Mas, emocionalmente, foi muito difícil para mim o histerismo e o sofrimento. Centenas de milhares de pessoas foram obrigadas a permanecer sem conexão humana. Isso é muito complicado, obviamente. Graças a Deus temos internet. Mas creio que muitas coisas boas podem sair dessa pandemia, muitos avanços tecnológicos. Por exemplo, a rapidez do desenvolvimento das vacinas, por parte da Pfizer e da Moderna (laboratórios cujos produtos estão em fase final de testes), que usam uma tecnologia do século 21, incrível, manipulando a genética para inocular-nos contra o vírus. Houve muitos outros avanços científicos durante a pandemia, que serão positivos para a humanidade. Por isso, pode-se considerar que foi um ano muito interessante.

VOCÊ TEM CONTATO COM MILHARES DE JOVENS QUE O SEGUEM EM DIFERENTES CANAIS GRAÇAS À MANEIRA COMO TRANSMITE CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS, CONECTANDO-OS COM FILOSOFIA E TECNOLOGIA. COMO FOI SUA JUVENTUDE? EM QUE MOMENTO HOUVE O CLIQUE DE CONECTAR ESSES CAMPOS DE CONHECIMENTO?

Minha mãe é professora de literatura há 40 anos. Eu me criei em um ambiente cheio de conhecimentos, de livros, de arte, de ideias. Minha mãe também é poeta e artista. Em minha casa, sempre se celebrava a criatividade, as ideias, a arte e a filosofia. A vida é explorar e expressar o que se descobre. Graças a Deus, para mim, esse foi o ambiente no qual me criei. Portanto, é natural que a curiosidade fosse celebrada em minha casa. Ninguém nunca me impôs restrições. Ou seja, se eu quisesse estudar tecnologia, filosofia, cinema, arte, sexualidade, minha mãe dizia: "Vá adiante!".

O MUNDO DO CONHECIMENTO HOJE É BASTANTE SEGMENTADO: OU SE ESTUDA MATEMÁTICA, OU FILOSOFIA, OU LITERATURA... VOCÊ DEFENDE UM APRENDIZADO MAIS HOLÍSTICO?

Sim. É o que chamamos de generalista. Uma pessoa que se interessa por um pouquinho de tudo. Gosto de encontrar as conexões entre as diferentes áreas e temas. Quero discutir o universo não só com um cientista, mas também com um poeta. Quando um cientista te explica como funciona o universo, o sistema solar, os planetas, as estrelas, imagino: "O que pensa um poeta sobre isso?". Para mim, é sempre uma questão de interconexão entre as diferentes áreas de estudo.

COMO OS EDUCADORES PODEM FAZER ESSA INTERCONEXÃO?

Havia um tempo, na Renascença, em que os cientistas e os artistas eram amigos. E os primeiros cientistas se chamavam naturalistas. Eram cientistas, mas eram também poetas, artistas. Eram pesquisadores, a curiosidade era o que lhes alimentava. Havia muito mais integração. Deveríamos resgatar essa integração.

RECENTEMENTE, CONVERSEI COM UMA PESQUISADORA DA NASA QUE AFIRMOU QUE MUITAS CRIANÇAS ADORAM CIÊNCIAS DURANTE A INFÂNCIA, MAS PERDEM O INTERESSE QUANDO SE TORNAM ADOLESCENTES. COMO TORNAR A ESCOLA INTERESSANTE?

Creio que é necessário ter um enfoque mais na paixão e no assombro. Você não pode obrigar um adolescente, que está explodindo em hormônios, que deseja se expressar, dançar, sentir-se livre, a se sentar em uma cadeira e anotar por cinco horas. A educação tem de ser desenhada para capturar a mente. E a mente se deixa capturar quando está assombrada, apaixonada, inspirada. Temos de fazer um trabalho melhor. Os educadores têm de fazer um trabalho melhor para reinventar a forma como se educa as pessoas.

MAS COMO FAZER ISSO COM UMA EDUCAÇÃO MUITO BASEADA EM UM MODELO VITORIANO?

Exato. É hora de transformar a educação. É hora de mudança.

TEM A VER COM A FRASE QUE VOCÊ COSTUMA DIZER QUE A TECNOLOGIA NOS DEU PODER DE DEUS, ENQUANTO NOSSO CÉREBRO AINDA ESTÁ NO PALEOLÍTICO?

Essa é uma ideia do naturalista Edward O. Wilson. Ele disse que temos cérebros paleolíticos, temos leis medievais e tecnologia de deuses. Aí está o problema.

COMO DESENVOLVER O CÉREBRO?

Penso que a evolução, agora, tem a ver com uma evolução da consciência. Por isso estamos vendo tantos avanços com o uso de tecnologias psicodélicas. Vários estudos, da Universidade Johns Hopkins e outras, estão trabalhando com gente de primeira, que usam ferramentas psicodélicas em sessões de terapia para transformar as perspectivas das pessoas, lhes abrindo o cérebro. Basicamente, lhes fazem algo como um "reset" e lhes curam as aflições mentais. Creio que essas ferramentas psicodélicas têm muito potencial quando utilizadas de maneira séria, para ajudar a expandir nossas mentes.

ISSO INCLUI O USO DE MACONHA, QUE VOCÊ DEFENDEU RECENTEMENTE DURANTE UM PODCAST?

Claro, a maconha é um medicamento que tem sido utilizado há milhares de anos, por várias religiões, em nível mundial. Foi utilizada por artistas: o jazz americano não existiria se não fosse pela maconha, o rock ?n? roll não existiria senão fosse pela maconha, a poesia de William Blake (poeta inglês) não existiria não fosse pela maconha. As pessoas assumem essas imagens de caricatura de um fumante sentado a seu sofá comendo Doritos todo o dia. Mas não: é preciso expandir um pouco. Aqui se trata do uso responsável e respeitoso do que afinal é uma ferramenta. Mas qualquer ferramenta como qualquer tecnologia também pode ser utilizada de forma negativa.

VOCÊ RECEBE MUITAS CRÍTICAS POR DEFENDER O USO DE MACONHA, UMA VEZ QUE FALA PARA UM PÚBLICO DE MILHÕES DE JOVENS?

Não. Lembre que vivo há muitos anos na Califórnia, onde a maconha é aceita como o vinho.

MAS VOCÊ TEM MUITOS SEGUIDORES NA AMÉRICA LATINA, UM CONTINENTE BASTANTE CONSERVADOR.

Sim, mas muitos dos meus seguidores são pessoas que chamaria de seekers ("buscadores", em inglês), pessoas que estão muito interessadas em ioga, meditação, na espiritualidade, em whellness (harmonia entre corpo e mente). E muitas dessas pessoas estudaram e entendem que, quando falo de psicodélicos e de maconha, não estou dizendo aos estudantes que devem fumar após o colégio para nada. Estou dizendo que essas são ferramentas que precisam ser respeitadas e que, usadas de forma responsável, podem ser benéficas.

VOCÊ É UM HOMEM DE CIÊNCIA E QUE EXPLICA FILOSOFIA A MILHARES DE PESSOAS POR MEIO DE CANAIS TECNOLÓGICOS. O QUE PENSA SOBRE AS IDEIAS SEGUNDO AS QUAIS A TERRA SERIA PLANA, OU OS MOVIMENTOS ANTIVACINA?

Isso é muito preocupante, porque um dos efeitos secundários das redes sociais é que a propaganda, ou o que chamam de desinformação, ou notícias falsas, está competindo diretamente com a informação legítima. Ambas dividem um espaço que já não é desigual. Portanto, é difícil distinguir entre o sério e verdadeiro e o falso, propagandístico. Isso criou uma fratura mental, que torna mais difícil se encontrar informação séria sobre a ciência, sobre a política, sobre o que está ocorrendo no mundo. E criou oportunidades para agentes que têm intenção de basicamente sequestrar nosso conhecimento.

INICIALMENTE, AS REDES SOCIAIS ERAM VISTAS COMO LIBERTADORAS, MAS HOJE TÊM UMA FACE MUITO OBSCURA, DE PROPAGAÇÃO DE FAKE NEWS, PRECONCEITO E DISCURSOS DE ÓDIO. QUAL A SUA VISÃO SOBRE AS MÍDIAS SOCIAIS?

Penso que a tecnologia sempre foi algo que estende, mas também faz uma amputação. Muitos futurólogos dizem que a tecnologia é como uma faca de dois gumes.

NÃO É MÁ NEM BOA POR SI SÓ.

Exato. Quando domesticamos o fogo, aprendemos a cozinhar nossa comida. E isso mudou o mundo. Mas, quando domesticamos o fogo, também o passamos a convertê-lo em algo para queimar nossos inimigos. A tecnologia do alfabeto, que utilizamos para criar palavras e conhecimento, também pode ser utilizada para manipular as pessoas Toda a tecnologia tem uso duplo. Por isso, é importante que nunca deixemos de ser responsáveis ao utilizarmos nossos instrumentos.

MUITOS PAIS E MÃES PREOCUPAM-SE COM O FATO DE OS FILHOS FICAREM CONECTADOS MUITO TEMPO AOS SMARTPHONES. O QUE VOCÊ DIRIA A ELES?

É necessário estabelecer uma relação disciplinada com todas as ferramentas e redes sociais. Trata-se de uma relação entre pais e filhos e dos filhos com a tecnologia, com os celulares. É semelhante à relação que temos com a comida. Se nossos pais não nos ensinam como comer de forma nutritiva, se passamos todo o dia comendo batata frita e hambúrguer, vamos nos tornar obesos e desenvolver diabetes. Mas, se comemos vegetais, a comida vai ser nutritiva. Com os celulares é igual. Como você os usa? Como batatas fritas e hambúrguer ou como vegetais?

VOCÊ COSTUMA DAR PALESTRAS A EMPRESÁRIOS E EXECUTIVOS, PESSOAS FOCADAS EM RESULTADOS E COM UMA MENTE BASTANTE RACIONAL. COMO FAZER USO DA IMAGINAÇÃO E DA FILOSOFIA PARA TER RESULTADOS PRÁTICOS?

Ao final, o mundo está sendo transformado diariamente pela tecnologia. A tecnologia muda de maneira exponencial. O ser humano pensa de forma linear. Então, há uma dissonância. Os executivos estão pensando praticamente de maneira linear, enquanto a tecnologia digital continua mudando exponencialmente. Requer imaginação. O instinto do ser humano é pensar de forma linear. Então, fica para trás. Você necessita expandir a sua imaginação para entender porque as tecnologias estão mudando de forma exponencial para que você também entenda que qualquer plano prático que tenha seja igualmente exponencial.

VOCÊ NASCEU NA VENEZUELA E VIVE HÁ MUITOS ANOS NOS ESTADOS UNIDOS. AINDA ACOMPANHA A CRISE EM SEU PAÍS? TEM FAMÍLIA LÁ?

Tenho minha avó e meu tio vivendo na Venezuela. O que está ocorrendo no país é uma tragédia humanitária, contra os direitos humanos, de incompetência e corrupção, que se converteu diante dos olhos do mundo em um governo ilegítimo. Eu gostaria que houvesse condições para eleições livres na Venezuela. 

RODRIGO LOPES 


28 DE NOVEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

MACHÕES E MARICAS

Um homem de moral não fica no chão, nem quer que mulher lhe venha dar a mão, diz o samba de Paulo Vanzolini.

Desde a tenra infância, ouvimos que "homem não chora", "não dá sinal de fraqueza" e "não pede proteção". Apanhou na rua, tem que revidar, mesmo que o adversário tenha o dobro da idade e do tamanho. Na adolescência, homem de verdade é aquele que afronta qualquer perigo. Quanto mais temerários, mais respeitados seremos pelos pares, ainda que as consequências de nossos atos ameacem a nossa e, eventualmente, a vida deles.

Como consequência, na infância sofremos mais acidentes e fraturamos mais ossos do que nossas irmãs; mais tarde, correremos mais risco de morte no trânsito e por armas de fogo; na vida adulta consideraremos ir ao médico, fazer exames e cuidar da saúde com racionalidade, "coisa de mulher".

Havemos de honrar para sempre o mito de pertencer ao sexo forte, ainda que em desacordo com as evidências mais elementares. Por exemplo: com exceção das sociedades em que as mulheres são mantidas em posições hierárquicas que lhes negam acesso à assistência médica e à alimentação de qualidade, nas demais o tal sexo forte morre bem antes. Pode escolher o país, prezada leitora: Japão, Honduras, Canadá, Coreia, Tanzânia, Marrocos, Austrália ou outro qualquer, em todos a longevidade feminina é maior.

No Brasil, a expectativa média de vida dos homens é sete anos inferior à das mulheres. É visível, basta pensar em quantas viúvas e viúvos você conhece.

Várias publicações na área da psicologia demonstram que a sociedade trata a masculinidade como um valor a ser conquistado graças ao esforço de uma vida inteira que, no entanto, pode ir por água abaixo ao menor vacilo. Em artigo para a revista Scientific American, Peter Glick, professor da Universidade Lawrence, analisa a conduta de três líderes que adotaram a postura de machões empedernidos diante da pandemia atual, em prejuízo das nações que teriam por obrigação defender: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Segundo Glick, os países governados pelos três foram prejudicados de duas formas.

A primeira é explicada pelo fenômeno conhecido como modelagem social, segundo o qual as palavras e ações de figuras públicas influenciam seus seguidores. Nos comícios da última campanha para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo, Biden e seus apoiadores usavam máscara e guardavam distância uns dos outros, enquanto Trump e os seus se acotovelavam com os rostos descobertos.

A segunda é baseada num estudo com cerca de 2 mil participantes, em que o grupo de Glick aplicou questionários para avaliar se os entrevistados concordavam ou discordavam de determinadas normas culturais que recompensam a masculinidade tóxica. Os resultados permitiram validar o que os autores chamaram de "cultura da competição".

Essa competição de "cachorro contra cachorro", que admite apenas duas posições (ou você está de acordo ou é meu inimigo), sintetiza a essência do que a sociedade considera masculinidade. Líderes que cultivam a imagem de machões partem do princípio de que conseguem resolver tudo sozinhos, e que ouvir as recomendações dos especialistas pode ser interpretado como falta de autoridade e colocar em dúvida sua macheza. Afinal, homem que é homem não fraqueja, anda pelas ruas de peito aberto sem medo da morte - principalmente quando é a dos outros. Reações tão desvinculadas da realidade impedem que o conhecimento científico seja traduzido em políticas públicas necessárias para proteger a população.

Enquanto o primeiro-ministro do Reino Unido teve discernimento para rever suas posições, depois de internado em Londres por causa da covid, os outros dois acharam mais importante manter a imagem fake de valentões bons de briga. Apesar de terem adquirido a doença, recebido a melhor atenção médica e transmitido o vírus para familiares, diversos colaboradores e sabe lá para quantos incautos que se juntaram às aglomerações promovidas por eles.

A pandemia desmascarou os perigos desse comportamento insensato e irresponsável, quando adotado por líderes nacionais. Em número de habitantes, o Brasil ocupa a sexta posição no mundo, e os Estados Unidos, a terceira. Não é por acaso que os dois países são os líderes mundiais em número de mortes causadas pelo coronavírus.

DRAUZIO VARELLA

28 DE NOVEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

ESCOLHA A MEDICINA DO FUTURO

Com o distanciamento social prolongado e sem prazos que possam realimentar a esperança, as nossas relações afetivas se modificaram. A intolerância desbancou a gentileza, e a agressividade está sempre com os dentes arreganhados, à espera que algum gesto dissonante possa ser usado como declaração de guerra. A banalização da morte se transformou em manifestação de inconformidade, não importa o tamanho do que se considere ofensivo.

Soterrados pela insegurança e chocados com a descoberta diária de empresas e serviços que literalmente desapareceram, até os votos renovados de que a vida volte a fluir sem sobressaltos soam cada vez menos convincentes.

Como sempre acontece nas grandes crises, a busca indispensável da sobrevivência trouxe sugestões, algumas precárias, mas que foram aceitas porque, afinal, era o que tínhamos. Está sendo assim na prática médica.

Durante o ano de 2019, o Conselho Federal de Medicina tinha, num primeiro momento, cedido à pressão de grandes corporações, em favor da liberação da telemedicina, mas por resistência das entidades médicas voltara atrás, até que os protocolos dessa nova forma de oferecer medicina fossem revisadas e definidos os padrões éticos da sua utilização. Com a pandemia, e por absoluta falta de alternativas, as barreiras foram removidas temporariamente, ou seja, até que a crise sanitária terminasse.

O que vai ocorrer quando a vacinação em massa banir o fantasma do contágio é a grande questão. Os planos de saúde, com certeza, alardearão os benefícios de uma medicina mais expedita e disponível, valorizando ao máximo o teórico encurtamento da distância entre doença e a saúde, e omitindo, por puro constrangimento, o fato de que o simulacro de medicina que já se faz nos sobrecarregados e deprimentes ambulatórios da saúde pública pode sim ser reprisado, de maneira até mais higiênica, pela convivência impessoal do computador. Os problemas burocráticos, como remuneração profissional, agendamentos de consultas e exames, receitas eletrônicas, profilaxia de judicialização e atestados virtuais, serão facilmente solucionados, e o braço empresarial da questão festejará.

Tudo resolvido, seremos eternamente agradecidos à pandemia que abriu os nossos olhos, mofados de sectarismo, para o quanto a medicina podia ser mais simples e efetiva?

Receio que não. Porque, dessa praticidade sedutora, terá ficado de fora um grupo importante: o das pessoas doentes. Não os que gostariam de fazer um check-up de rotina ou aqueles que resolveram aproveitar a gratuidade da consulta pelo plano de saúde para ver se tem alguma maneira de esclerosar estas veinhas que, com a idade chegando, teimam em aparecer logo acima do tornozelo. Estou falando das pessoas que adoecem de verdade, quando o medo da morte não tem nada de exagero ou fantasia.

Quero saber se há alguma expectativa ou projeto de substituir a compaixão, este sentimento que, por enquanto, precisa do toque do outro, para se completar?

Ou seremos forçados a acreditar que o fascínio das máquinas modernas poderá tornar o abraço dispensável?

Se for assim, já estou indo liberar a minha vaga no estacionamento.

J.J. CAMARGO

28 DE NOVEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

A pergunta no café da manhã

Estávamos à mesa do café da manhã. Dei uma encompridada no olhar por cima de uma jabuticabeira que tem aqui em casa, lancei-o lá para longe, bem alto, mergulhei-o no azul plácido do céu, e a Marcinha perguntou:

"No que que tu estás pensando?" Pousei a xícara no pires. Olhei para ela, surpreso: "Que é isso? Parece o Facebook!" Porque o Facebook sempre pergunta em que estou pensando, além de me incentivar a dizer como estou me sentindo. O que o Facebook quer com essas informações tão pessoais? É irritante.

Tive uma antiga namorada que era assim. A todo momento perguntava no que eu estava pensando. No que tu estás pensando? No que tu estás pensando?

Que te interessa? Será que nem os pensamentos podem ser exclusivamente meus?

É que nem o banheiro. Vou ao banheiro e, em um minuto, alguém começa a falar comigo do outro lado da porta. Não dá para esperar que eu saia do banheiro? O assunto é assim tão urgente?

Nunca é urgente. Sempre é uma besteira. Mas a pessoa acha que TEM de falar comigo mesmo quando a porta está fechada diante dela e eu estou no recôndito daquele lugar sacrossanto, onde um ser humano lida com suas intimidades mais profundas, como os movimentos intestinais e peristálticos.

A propósito, deixe-me falar de algo que me escandaliza: casais que fazem necessidades fisiológicas de porta aberta. Para tudo há um limite. A privacidade não é apenas saudável: ela preserva os relacionamentos do desencanto. Há certos mistérios que precisam ser mantidos. Por mais que eu goste de alguém, há determinadas coisas sobre essa pessoa que não quero saber. Não me conte! E, principalmente, não me mostre!

Agora, se a pessoa quiser mesmo se expor, pelo menos que haja um pouco de critério. Tome uma atividade mais amena como ilustração, como a higiene bucal. Os americanos se espantam com a quantidade de vezes que os brasileiros escovam os dentes. Para eles, é muito estranho alguém levar escova e pasta para o trabalho, e limpar os dentes após uma refeição. Até porque o almoço, para os americanos, deve ser engolido em frente ao computador, em meio ao trabalho, sem cerimônia, sem garfo, sem faca. Bárbaros.

Mas tenho a impressão de que o hábito de escovar os dentes no ambiente de trabalho é recente inclusive no Brasil. Uma vez, eu estava em meio à escovação no banheiro da Zero Hora, depois do almoço, e o Sant?Ana entrou. Ele me viu e comentou, não sem desdém:

"As novas gerações escovam os dentes..."

Bem, escovamos. Nós, jovens.

Mas um colega tinha o hábito de sair do banheiro usando o fio dental. Sério, o cara fazia isso. Ele ia passando o fio dental entre os dentes enquanto caminhava pela redação. Os restos de comida saltavam-lhe da boca como torpedos, às vezes atingindo o olho de algum incauto que estivesse por perto.

Para você ver como a privacidade protege não apenas quem dela desfruta.

Há, no entanto, belas exceções. Havia uma moça, numa praia que eu frequentava, em Santa Catarina, que gostava de escovar os dentes na janela. Ela era morena e lânguida, de uma languidez de quem domina o mundo em que vive, de quem está pouco ligando para opiniões, teses ou causas. É a languidez do bicho ao sol, de quem sabe que é, de quem sabe que não precisa provar nada, pois está tudo dito.

Pois ela gostava de escovar os dentes na janela.

A casa tinha dois pisos e seu quarto ficava no de cima. A certa hora incerta da manhã, ela abria a janela do quarto com as duas mãos, segurando, entre os dentes, a escova. Depois, fincava o cotovelo esquerdo na janela e, com a mão direita, escovava calmamente os dentes alvos, ao mesmo tempo em que mergulhava o olhar em algum ponto além da segunda arrebentação.

Era uma cena boa de se ver. Uma moça bonita, exercendo uma atividade íntima praticamente em público, mas de modo tão natural, tão casual, que dava na gente uma paz, um amolentamento dos ombros, um peso nas pálpebras, uma suave vontade de se embalar na rede, ouvindo o bramido distante do mar.

No que estou pensando? Em escovar os dentes numa manhã de sol, olhando para o azul do oceano. É nisso que estou pensando.

DAVID COIMBRA

28 DE NOVEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES - Jornalista e escritor

Novo exército

Outra vez, nos últimos anos, o Rio Grande do Sul ecoou mundo afora pelo horror. O assassinato de João Alberto, em pleno Carrefour, junta-se ao crime que, anos atrás, matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria. Nos dois casos, o tétrico levou nosso Estado às manchetes no país e no Exterior, como se o crime fosse nosso rei.

A diferença de um a outro é sutil, apenas. Na Kiss, o crime nasceu do desdém por algo previsto há muito - o fogaréu transformado em incêndio. No Carrefour, tudo foi preparado por esse "novo exército" das tais empresas "de segurança", batalhões privados com poder de vida ou morte, agindo como se estivessem acima das leis e, até, de Deus.

O que é a tal de Vector, se não um miniexército cujos "soldados" (sem solucionar a querela) reprimiram e castigaram até a morte? Nada vale mais do que a vida, mas as cenas do "castigo" imposto a João Alberto mostram uma sanha inigualável, só comparável aos campos de extermínio nazistas. Não cabe sequer dizer "sanha animalesca", pois nem dois leões famintos matam um terceiro com tanta fúria.

Esse novo exército privado das ditas "empresas de segurança" impõe suas próprias regras de perversa brutalidade. Seus membros mostram-se acima dos cidadãos comuns, portam arma de fogo e têm apoio de quem os contrata. O modelo de agora foi a funcionária do supermercado que, impassível, assistiu ao desenrolar do crime.

Por isto, está presa também, junto com os autores diretos do assassinato. Ela foi surda aos gritos de "socorro" da vítima, concordando, assim, com a brutalidade.

O mal tem origem no poder que desfrutam os tais "exércitos privados", nos quais a ânsia de lucro inculca um comportamento rude e agressivo, que leva ao assassinato.

As tropas dos "exércitos privados" têm milhares de soldados.

O racismo foi apenas um dos aspectos do horror, nunca o único. No caso, foi oficializado pelo presidente e pelo vice-presidente da República.

Mesmo sem o citar especificamente, Bolsonaro o levou à reunião do G-20 e o espalhou pelo mundo alegando ser uma consequência "importada", talvez porque os protestos adotaram, aqui, o lema "vidas negras importam", já usado nos EUA. O vice Mourão afirmou "não haver racismo no Brasil", atenuando a perversão do crime.

Houve lamentos, mas nenhuma palavra oficial condenou a atrocidade em si, nem identificou o poder dos tais "exércitos privados" que, todo dia, aumentam suas tropas. O racismo multiplica o horror, mas não é a causa única da perversão que (em nome da "normalidade") mata num país em que não há pena de morte.

FLÁVIO TAVARES

28 DE NOVEMBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

Vitória da democracia

A democracia brasileira amadurece a cada eleição. A despeito de todos os desafios impostos pela pandemia, dos contratempos na divulgação dos resultados do primeiro turno e dos ataques cibernéticos que tentaram em vão semear dúvidas sobre a segurança do sistema eleitoral, o pleito municipal de 2020 se aproxima do fim com a sensação de dever cumprido. Mesmo antes de serem conhecidos os resultados do segundo tuno nos 57 municípios do país onde os eleitores voltam às urnas neste domingo, há razões concretas para reconhecer o papel da Justiça Eleitoral na organização de uma eleição marcada pela crise sanitária.

A começar pela alteração das datas, fruto de uma decisão ponderada e sensata, tomada a partir do diálogo e da busca de consenso entre profissionais da área da ciência e do Direito e o Congresso. Tudo para dar segurança aos públicos envolvidos, inclusive aos dos grupos de risco, que ganharam horários preferenciais. E, ao mesmo tempo, assegurar o rito sagrado da democracia - o voto -, com a eleição de novos prefeitos e vereadores, mesmo que isso acarretasse o encurtamento do período de transição em função do adiamento do pleito. Ao fim, foi executado com êxito o planejamento para levar todos os equipamentos de proteção individual (EPIs) e materiais de limpeza e desinfecção às 483.665 seções eleitorais espalhadas pelo imenso território nacional.

Mesmo com o barulho da contestação inconsequente e desprovida do mínimo amparo, protagonizada por uma minoria beligerante, o primeiro turno se encerrou com a certeza de que os números da votação expressaram de forma incontestável e transparente a vontade popular. A segurança da urna eletrônica foi outra vez comprovada. O episódio do atraso da divulgação, fruto de problemas técnicos, não deixou uma mancha sequer sobre a lisura do pleito, embora a lição precise ser aprendida. Maior diversidade dos candidatos eleitos principalmente nas Câmaras e uma presença mais significativa de mulheres é outro legado positivo de 2020. Está longe do ideal, mas o perfil da população brasileira estará melhor espelhado na política municipal a partir de 2021.

O combate à chaga das fake news, outro desafio da democracia, avançou nas eleições de 2020, com a criação de uma série de ferramentas para denunciar desinformação, disparos em massa e propagadores de mentiras. Mesmo assim, há ainda muito o que fazer para minimizar os danos causados por este mal que se configura em um atentado ao voto consciente. A grande arma é a educação, mas esta é tarefa geracional. Pelo lado negativo, está o aumento da violência por motivação política contra candidatos, em uma proporção cinco vezes acima da de 2016, conforme o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E ainda a abstenção elevada, resultado inevitável do receio dos eleitores idosos de exposição a aglomerações.

As urnas deram ainda o importante recado da busca pela moderação e rejeição de extremos. Não deixa de ser mais um sinal eloquente de evolução da consciência coletiva do eleitor brasileiro. Todos esses avanços observados em 2020 são passos preciosos na tortuosa jornada do aperfeiçoamento da democracia brasileira, que, apesar de jovem e sujeita a acidentes históricos, demonstra perseverar na trilha do amadurecimento.

OPINIÃO DA RBS

28 DE NOVEMBRO DE 2020
MARCELO RECH

Daqui a cinco anos

Em gestões de carreira, uma tática recorrente para se aferir o grau de ambição, visão e realismo de um possível futuro executivo é perguntar como ele se imagina dentro de cinco anos. O prazo é distante o suficiente para ricos exercícios de oportunidades mas também próximo o bastante para que não se descole de tendências perceptíveis. Pois, em meados de outubro, GZH e Zero Hora indagaram aos então 13 postulantes à prefeitura de Porto Alegre como eles vislumbravam a cidade em cinco anos caso fossem eleitos. Em artigos, as candidaturas descreviam, com eles ou elas no comando, uma cidade mais feliz, humana, inovadora, segura ou eficiente.

Nada de errado nessas cartas de boas intenções, mas é pouco para o que vem por aí. O debate eleitoral em Porto Alegre, como de resto em todo o Brasil, passou ao largo do mundo novo que se desenha no horizonte, com potencial de devastar ou impulsionar as economias locais. Inteligência artificial, internet das coisas, bio e nanotecnologias, 5G, veículos elétricos e autônomos, cidades sustentáveis e trabalho remoto são apenas algumas das tendências da economia 4.0, que, se goste ou não, dominará nossas vidas em futuro nem tão longínquo.

Nada de errado nessas cartas de boas intenções, mas é pouco para o que vem por aí. O debate eleitoral em Porto Alegre, como de resto em todo o Brasil, passou ao largo do mundo novo que se desenha no horizonte, com potencial de devastar ou impulsionar as economias locais. Inteligência artificial, internet das coisas, bio e nanotecnologias, 5G, veículos elétricos e autônomos, cidades sustentáveis e trabalho remoto são apenas algumas das tendências da economia 4.0, que, se goste ou não, dominará nossas vidas em futuro nem tão longínquo.

No passado, os acendedores de lampião pareciam ser parte da paisagem urbana para sempre, e desapareceram. Algo semelhante está por acontecer com dezenas de milhares de empregos. Mesmo sem pandemia, setores inteiros vão sumir, outros vão surgir. Porto Alegre, sob liderança e inspiração de seu prefeito ou prefeita, precisa estar no controle desse movimento, inevitável como a chegada da energia elétrica que levou luz aos postes.

As duas candidaturas que serão avaliadas neste domingo nas urnas têm seus méritos, mas o Pacto Alegre, uma aliança de universidades, iniciativa privada e poder público, que é a melhor aposta de futuro da cidade, mal foi mencionado na campanha. Vamos torcer para que as propostas previsíveis e demagógicas tenham sido apenas espasmos eleitoreiros, porque, em cinco anos, o tsunami não vai poupar cidades governadas por quem não tenha tido dimensão, senso de estratégia e visão para surfá-lo. As creches, a saúde e o transporte dependem disso.

MARCELO RECH

28 DE NOVEMBRO DE 2020
J.R.GUZZO

O PSOL e a empreiteira

Eis aqui mais um retrato da vida como ela é, e não como imaginam que ela seja nas mesas-redondas que discutem política na televisão. Um dos maiores doadores para a campanha do candidato que se apresenta como de "esquerda-raiz" para a prefeitura de São Paulo não é nenhum sindicato de trabalhadores - e o dinheiro não vem de nenhuma vaquinha de "pessoas em situação de rua", os grandes clientes nominais do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Quem aparece na papelada da Justiça Eleitoral como a terceira maior doadora da campanha paulistana do PSOL, com um total de R$ 88 mil, é uma herdeira da empreiteira de obras públicas Andrade Gutierrez. E daí? Milionário também é gente; tem todo o direito de doar seu dinheiro para quem bem entende. O problema não está aí. Está numa razão social: "Andrade Gutierrez".

A construtora, como se sabe, é uma das empresas mais corruptas do Brasil - não porque costumava aparecer regularmente no noticiário da ladroagem nacional, mas porque são seus próprios diretores que dizem que ela é corrupta. Tanto é assim que eles mesmos, por sua livre e espontânea vontade, confessaram os crimes da empresa no assalto geral ao dinheiro público empreendido durante os governos Lula-Dilma.

Mais: fizeram "delação premiada" na Operação Lava-Jato. Mais ainda: devolveram ao erário R$ 1 bilhão do dinheiro roubado. (Alguém, "na jurídica" ou "na física", devolve voluntariamente dinheiro que não roubou? Ainda não se sabe de nenhum caso.)

É a velha história: quando se trata de dinheiro, dizia Voltaire, todo mundo é da mesma religião. A diferença entre os altos propósitos socialistas do partido e o dinheiro da herdeira é igual a zero; política real é isso, e não conversa que só aparece em jornal, rádio e televisão.

O PSOL tem o direito de receber e a doadora tem o direito de doar, é claro, mas sempre é bom ficar claro que as coisas são assim - e que não têm nada a ver com o palavrório de campanha. É o "mecanismo". É assim que ele funciona.

O maior doador da campanha do PSOL em São Paulo é o cantor Caetano Veloso, outra estrela da nossa elite capitalista, com R$ 100 mil. Mas há uma diferença, aí. Caetano ganhou esse dinheiro unicamente com o seu trabalho - e não se chama Andrade, nem Gutierrez.

J.R. GUZZO*

sábado, 21 de novembro de 2020


21 DE NOVEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Medo do medo 

Os medos espiam, espreitam, na parte escura do nosso inconsciente... com os anos crescem ou se esfumam, ou nos atormentam mais (ou menos).

Os meus eram enormes na infância, que foi a um tempo cheia de encantamento e de terror. Nunca soube por que, mas acredito que nascemos mais ou menos prontos, com uma bagagem psíquica que nos define. Algumas coisas podemos melhorar, outras farão parte da nossa personalidade e vida.

Já adulta jovem, morria de medo de atravessar sozinha o corredor da casa dos pais, ou mais tarde da minha. Seguidas vezes, eu adolescente, meu irmão pequeno me dava a mão, caminhava comigo até a porta de meu quarto e morria de rir. Eu me dividia entre rir de mim mesma e continuar com medo.

Acho que com os filhos chegando me obriguei a sacudir dos ombros essas escuras asas, pois era minha vez de cuidar dos meus pequenos amados. Hoje, não tenho medo nem de fantasmagorias, porque já tenho do lado de lá tantos mortos queridos.

Hoje vivemos numa era de medos: da violência, das maldades, dos desmandos e desgovernos, do empobrecimento, das dores do mundo que chegam em nossa casa o tempo todo. Sou adepta da internet, com a qual tenho me comunicado incessantemente nesses oito meses de confinamento - que respeito com alguma secreta rebeldia de menina batendo pé, eu quero, eu quero. Porém sinto no ar, no planeta, o medo óbvio dessa doença diabólica, desse vírus, de que muitos ainda debocham, que muitos desafiam e outros muitos têm direito - e dever - de recear.

Mesmo informada de tudo, em certos dias me desanima o ficar em casa, não receber quase ninguém, até família chegando, rara, mascarada e "alcoolizada" (uma amiga me perguntou, inocente e querida: "Mas eles chegam bêbados?").

Sinto uma falta dos convívios normais de antes. De poder sair para almoçar no meu clube, pequeno e discreto, único que frequento, onde todos formamos uma família. De poder reunir no refúgio de Gramado, no mato, pessoas queridas, quando lá agora os vizinhos se cumprimentam acenando de longe.

Sempre fui um bicho da minha toca, uma mulher da minha casa, com meus livros, meus discos, meus amores - e por mais incrível que tenha sido a viagem, o momento de abrir a porta e chegar é sempre de uma profunda sensação de abrigo.

Estamos navegando todos nesse mar escuro, traiçoeiro, estranho, que até aos cientistas tem causado trabalho e perplexidades, e temos medo, sim. Não está em meus planos ir para uma UTI, ser entubada, enfim, não determino eu, mas me cuido, às vezes contrariada, revivendo tolamente a criança mimada que fui, mas a maioria das vezes curtindo tranquila os encontros virtuais, meus livros, minhas tintas e pincéis.

Tudo isso, tão pouco original, escrevo para dizer que o medo se justifica, é digno e necessário, precioso conselheiro, e por favor, amados leitores, amigos meus, cuidem-se. Perdoem-me, mas estes tempos de festas vão ser difíceis, intrigantes, incômodos... perigosos. Vamos inventar jeitos de amar, celebrar, sem perigo. A gente merece viver. E viver direito.

(Sim: eu também estou me achando muito chata escrevendo isso...)

LYA LUFT

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