segunda-feira, 9 de novembro de 2020



07 DE NOVEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

A IRONIA DE LUCIANO

Jazem sob as águas de uma barragem no sudeste da Turquia as ruínas da antiga cidade de Samósata, outrora às margens do rio Eufrates, em sua extremidade norte, próxima do Mediterrâneo. Fundada por armênios no século IV a.C. e conquistada por Roma em 17 d.C., Samósata era passagem estratégica para a Mesopotâmia. Como muitas cidades antigas, tornou-se cosmopolita e poliglota; além da língua armênia, original, falava-se ali a língua franca do Oriente próximo antigo, o aramaico, e também o grego, língua culta na era helenística (sécs. IV a I a.C.) e durante o império romano. Foi ali que nasceu e escreveu em grego um dos autores mais irônicos e lúcidos da história da literatura, Luciano de Samósata (120-192 d.C.).

É de Luciano a mais antiga obra de ficção científica conhecida, a História Verdadeira, em que o escritor declara, no prólogo, a única verdade do livro, a de que ele é um mentiroso, e dá início a uma fantasia ironizando as obras de poetas épicos e historiadores. Em dois capítulos, narra-se uma viagem do autor e amigos ao nosso satélite, onde envolvem-se na guerra entre o Rei da Lua e o Rei do Sol, disputando o planeta Vênus, antes de voltarem à Terra e serem engolidos por baleia com mais de 300 quilômetros de comprimento, de cuja barriga escapam fazendo a fogueira que a mata, para logo topar com um mar de leite e uma ilha de queijo e, por fim, a ilha dos bem aventurados, onde encontram heróis míticos da Guerra de Tróia, como Ájax e Ulisses, e homens ilustres, como Homero, Pitágoras e Sócrates, e veem os tormentos de grandes mentirosos, como o historiador Heródoto, e o autor alivia-se, com ironia, por nunca haver mentido.

A História (ou conto, melhor tradução para diegémata) Verdadeira é um livro de fácil leitura e compõe o corpus lucianeum, o conjunto da obra de Luciano de Samósata, no Brasil admiravelmente comentado no livro A Poética do Hipocentauro (2001) pelo erudito Jacyntho Lins Brandão (também tradutor do épico Gilgamesh, direto do acádio). Nesse livro, Jacyntho analisa o estilo inteligente e rápido de Luciano e aponta como este influenciou autores como Erasmo, Rabelais, Cervantes, Voltaire, Dostoievski, Eça de Queiroz e Machado de Assis. Vem dele uma das melhores funções da ficção: analisar a realidade com humor e ironia.

Também de Luciano são os Diálogos dos Mortos, que narram 30 breves encontros entre personalidades já falecidas, nas cavernas do Hades, onde dizem verdades que soíam ocultar quando vivos. Em um diálogo, Alexandre é interpelado por seu pai, o rei macedônio Felipe, que ataca uma das mentiras de seu filho, dizer-se cria de um deus egípcio: "Ora, Alexandre, não podes negar ser meu filho, pois terias morrido se fosses filho do deus Amon!", ao que Alexandre responde que era boa política para ele usar a farsa para dominar os povos que conquistou. Eis a mais antiga compreensão de como o mito é, desde sempre, manipulado pela demagogia política, e a verdade que custamos a aceitar, de que os mortos hoje falam melhor do que os vivos sobre o mundo em que vivemos.

FRANCISCO MARSHALL

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