sábado, 3 de fevereiro de 2024


03 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Na minha época de formação, no fim dos anos 70 e início dos 80, havia três turmas: aqueles que usavam o Kichute, os adeptos do Conga e os aficionados do Bamba. Todos feitos de lona, inteiramente fechados, excessivamente transpirantes. Não havia como não acabar com chulé, não havia furinhos no tecido para arejar o suor. Vinha a ser um pesadelo dormir com o par debaixo da cama, cheirava a bicho morto.

Não adiantava que as sacras mães o lavassem semanalmente no tanque com sabão de coco, jamais ressuscitavam o perfume de brim original da fábrica. Os três tampouco contavam com amortecedores. Você pulava e sentia o joelho estalar.

O Conga era o povão, a base da pirâmide. Resumia-se a um tênis esportivo, simples, acessível. As crianças que recorriam a ele não apresentavam condições financeiras privilegiadas. Não deixava de ser uma maneira disfarçada de andar descalço.

O solado se caracterizava por ser fininho, sem aderência. Fazia qualquer um deslizar no chão molhado, patinar nas calçadas. No inverno, com as lajes sebosas do orvalho e das folhas caídas, equilibrar-se virava uma proeza.

Devido à sua superfície quase inexistente para proteger a planta dos pés, havia a lenda de que, se você pisasse numa moeda, descobriria se estava virada na cara ou na coroa. Já o Kichute, um pouco mais caro do que o Conga, popularizou-se por imitar as travas de uma chuteira. Com a sua natureza dois em um, vendeu 9 milhões de pares entre 1978 e 1985.

A gurizada que sonhava em ser jogador de futebol já acordava fardada para entrar em campo. Com intuito de aumentar a segurança da passada, amarravam-se os cadarços nas canelas. Kichute não combinava com nenhuma roupa, só com Kichute.

Seu maior problema consistia no rápido desgaste dos seus cravos de borracha, na erosão de suas garras, o que gerava desnível nos passos. Com o tempo, o andar mancava, pesando para um lado. Era bem possível ter um Kichute para aula e um Conga para passeio, situação ideal para não concentrar os danos num único calçado e não surgir estropiado nas festividades familiares.

Ambos constavam como itens obrigatórios no material escolar para as aulas de educação física.

O Bamba, por sua vez, lembrava um All Star de cano baixo. Simbolizava o topo da pirâmide, destinando-se à elite escolar. Você pisava nas nuvens com ele, arrebatava as alturas da influência popular, destacava-se nas excursões e se sobressaía nas coreografias de Thriller, de Michael Jackson, nas reuniões dançantes.

Oferecido no clássico branco, costumava ser cobiçado por permitir o "batismo", aquela pisadinha de leve para estrear o calçado. Esse gesto de interação, de orgulho de tênis novo, não tinha como ser praticado com o Kichute, de cor preta, ou com o Conga no tradicional azul-marinho.

Eu fui da patota do Kichute. Ele morria em mim sem nunca ter sido batizado. 

CARPINEJAR

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