sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016


05 de fevereiro de 2016 | N° 18436 
DAVID COIMBRA

Cabelo penteado para trás


Outro dia escrevi sobre os guídis. Era como chamávamos os tênis, quando guris. Havia tão somente três marcas: o Kichute, a Conga e o Bamba. Nada desse negócio de tênis com amortecimento ou para pisada supinada. Os canais de TV também eram só três: a Gaúcha, a Difusora e a Piratini. Tudo era muito diferente, era outro mundo.

Fiquei tentando me lembrar das coisas daquela época. De como víamos a vida. Não por saudosismo, mas para, quem sabe, descobrir de onde vêm nossos problemas. Nós brasileiros temos compreensões errantes do que é a democracia, de como tem de funcionar a sociedade. E, quando uso o adjetivo “errante”, faço de propósito. Porque não é que seja “errado”, é errante mesmo. É tudo meio nebuloso. Tenho a impressão de que nos entortamos mais ou menos por aquele tempo.

Na política, por exemplo. Para nós, era natural que o Exército mandasse no país. Aqueles homens solenes, que apareciam no Canal 100 antes dos filmes. Eles caminhavam eretos e inspecionavam tropas. Homens sérios.

Uma vez, o seu Hormain, lá do Alegrete, queria convencer o filho dele a pentear o cabelo para trás. Veja só a preocupação do seu Hormain... O filho dele, por acaso, é meu amigo Amilton Cavalo. Bem. Sabe qual foi o argumento que o seu Hormain usou para convencer o pequeno Amilton a pentear o cabelo para trás? Jamais me esquecerei. Ele disse assim:

– Meu filho, olha para os homens do governo. Olha bem. Todos eles têm o cabelo penteado para trás. São homens de respeito.

Aquilo me calou fundo na alma, tanto que ainda lembro, e provavelmente o Amilton e o seu Hormain não.

Homens de respeito, aqueles homens que penteavam o cabelo para trás.

Os militares naquela cidade estranha, Brasília, o governador em seu palácio, os deputados e os senadores bem falantes na tribuna, eles todos transitavam em algum lugar muito acima de nós. Eles eram “autoridades”. Nós tínhamos medo de autoridades.

Algumas instituições, como o Juizado de Menores, nos deixavam em pânico. Os agentes do Juizado andavam pela cidade a bordo de uma Rural azul-marinho que levava, nas portas, as iniciais JM pintadas de branco. Ouvíamos histórias assustadoras sobre o que o Juizado de Menores fazia com guris que encontrava vadiando nas ruas. O Jorge Barnabé me contou que, uma vez, se embrenhou nas Lojas Americanas, fugindo de dois agentes do JM. Eles saíram correndo atrás dele e ele foi empurrando todo mundo escada rolante acima e conseguiu escapulir por uma porta nos fundos do prédio. Fuga de cinema.

Uma noite de sábado, nós íamos para a festa no Gondoleiros e vimos uma viatura do Juizado parada na esquina. Saímos na tal desabalada carreira, sem olhar para trás, apavorados, e não voltamos mais.

Um vizinho nosso, ele era delegado. Ele não tinha um braço. Usava um braço postiço, de plástico, acho, que ficava pendurado ao longo do corpo. Contavam que ele havia perdido o braço andando de carro, na estrada. Colocou o braço para fora da janela por algum motivo, veio um caminhão na contramão e levou o braço embora. Ele caminhava por lá com aquele braço falso e nós o olhávamos com muita reverência – o homem era delegado. Certo dia, um dos nossos amigos, provavelmente o Diana, perguntou:

– É melhor ser “civil” com os dois braços ou delegado com um só?

Ficamos em dúvida.

Era uma relação arrevesada com o Estado. Algo torto, que continua torto, só que para o outro lado. Tenho de falar mais a respeito. Vou deixar para amanhã.

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