sábado, 16 de janeiro de 2021


16 DE JANEIRO DE 2021
LYA LUFT

Não são só palavras

Minha coluna do sábado passado chamava-se "São só palavras". Esta, hoje, diz o contrário, e explico. Pois na anterior coloquei em prosa poemas meus, um pouco provocativamente, brincando com leitores que ainda dizem não gostar de poesia, mas em geral acabam elogiando essa pequena armadilha que lhes preparo. Já fiz isso outras vezes, e gostei do resultado: não gostar de poesia pode ser, mais do que ignorância, preconceito.

Um querido amigo me disse que é preciso esperança por piores que sejam os tempos, ou até nos tempos piores. Sim. Mas confesso que em certos dias, há 10 meses confinada em casa - o que não me desgosta de todo, só sinto falta dos abraços, da família, das presenças -, tudo me vai cansando, sem grande luz no fim do túnel. Nessas conversas palavrosas e conflitantes sobre vacina, lá longe, quem sabe, a luzinha de um vagalume qualquer. Estou pouco otimista. Mas esperançosa, sim, do contrário, não seria suportável viver.

Cada dia mais doença e morte, cada dia mais pessoas saindo, trabalhando, se divertindo, porque ninguém é de ferro - por isso mesmo a Peste se espalhando e rindo com seus dentes de caveira.

Não tenho nada mais agradável para escrever hoje, no meio de tanta desolação, irritação, debates ou briguinhas que seriam adolescentes se não magoassem tanto. Pouca coisa a dizer, tipo, cuide do que é seu. Cuide de quem você ama, ame mais e melhor, e diga isso às vezes.

Procure ajudar a quem precisa, se não puder ser concretamente pela presença, que seja com palavras, telefonemas, uma flor, um bombom, uma escuta: escutar pode ser mais curativo do que falar.

Sobretudo, não brinque com a Peste, não diga que não é tão grave, que é exagero, que mais gente se cura do que morre (o que é verdade. Mas a quantidade dos sequelados, às vezes semanas depois de serem dados como curados, é enorme). E, mesmo que fosse uma pessoa só, não brinque, repito de novo, leve muito a sério.

Pânico? Não resolve e tira a lucidez. Cuidado, porque devemos, sim, ter medo. Medo que traz cautela, respeito a si e ao outro, medo de adoecer, sofrer, morrer quem sabe.

Também me ressinto dos meses confinada, porque, sinto muito, sou de alto risco. E meu confinamento não é dos piores, numa casa aconchegante, com belas paisagens diante da janela, companhia que amo, mas... a liberdade de abrir a casa para família e amizades, de tomar meu gim-tônica no British, de alguma pequena viagem, de perambular por alguma livraria... porque, sim, tenho medo. Que, digo de novo, traz cautela. Mas que cansa, ah, sim. A vida vai se cobrindo de uma sem-gracice, os livros parecem ter sido todos lidos e relidos, o computador anda sem imaginação para produzir algo de original e bom, e não sou dada a tarefas domésticas.

Então, na internet, no telefone, e sempre nos livros (alguns ótimos programas de televisão), luto contra meu grande inimigo: o tédio. Que não tem nome, não tem rosto, não tem cheiro, não tem roupas nem voz, mas vai nos cobrindo com um doce, enjoativo, jeito de inércia e indiferença. O que também é um tipo de doença. Não são só palavras: Take Care.

LYA LUFT

16 DE JANEIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Lugar de repouso 

Outro dia uma amiga me telefonou para compartilhar uma crise. Ela escreve sobre relacionamentos há bastante tempo, é reconhecida pelo seu trabalho, e está iniciando mais uma obra. Só que, de repente, travou. Ela não consegue escrever sequer mais uma linha, pensa inclusive em jogar no lixo os capítulos iniciados. Perdeu o interesse em discutir ciúmes, desejos, frustrações, paixões, desencontros e interrogações inerentes ao processo todo: será que é o cara certo? Será que vai durar?

Ela escolheu bem a porta em que bateu. Depois de muita dedicação ao tema, também exauri. Há uns dois anos que virei o disco, por vários motivos: o país mudou, outras pautas começaram a me interessar e, além disso, veio essa pandemia que fez com que tudo o mais parecesse desimportante, nossa sobrevivência e nossa capacidade de adaptação passou a ser o foco de nossas vidas. Todos nós trocamos de assunto.

Mas há algo mais. Minha amiga, depois de alguns namoros, está feliz, vivendo uma relação estável e prazerosa aos 50 anos. Eu, idem. Por ora, "interrompemos as buscas". Lembrei do verso do Nei Duclós: "nenhuma pessoa é lugar de repouso", mas, contrariando o poeta, me aquietei, e ela, ao que parece, também, e isso não podia ficar de fora da nossa conversa: será mesmo que só conseguimos escrever sobre o que nos atormenta?

Somos pessoas maduras que um dia casaram, tiveram filhos, separaram, amaram de novo, tudo dentro de um cenário que hoje é habitual e que provoca identificação imediata nos leitores. Estamos em constante movimento e colecionamos dúvidas, projeções e tentativas que ora funcionam, ora não. E nos habituamos a debater sobre os bastidores dessas experiências. Até que, sem mais, a fonte seca. E agora? Sabemos que o amor é um grande inspirador de músicas, filmes, óperas: será que todos os seus autores estão passando por perturbações internas? Como se viram aqueles que não estão se sentindo angustiados? Talvez devamos reconhecer que ninguém nunca está plenamente realizado e que sempre há algum ideal que parece inalcançável ou incompreensível: é para onde devemos direcionar nossa criação artística.

Neste ano, lançarei um novo livro de poemas, todos inspirados por algum romantismo, mas, no presente momento, no terreno cotidiano da crônica de jornal, que tem por costume retratar a vida mundana, fui subtraída da vontade de entender tudo sobre o amor, de investigar todas as suas variações. Cortesia da bendita maturidade, que me convenceu de que jamais iremos entender nada, o que é libertador. Meu coração outrora desatinado agradece o repouso bem-vindo e mais que merecido. Mas duvido que se acostume. Qualquer dia ele retorna com suas pulsantes questões irrespondíveis.

MARTHA MEDEIROS

16 DE JANEIRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O cupim e a autoajuda 

Esses primeiros dias do ano, com as consequentes boas intenções que vêm junto, não deixam de ser uma oportunidade para abrir o coração a outras causas que não as nossas. Ainda mais depois de um 2020 solitário e desesperançado. Por aqui, tenho passado sob o efeito daquela música do Zeca Baleiro, lembra? Ando tão à flor da pele/ que qualquer beijo de novela me faz chorar.

Mentira, não choro com beijo de novela nem com propaganda de banco ou de supermercado. Em compensação, ler o jornal é uma choradeira só. E alguns vídeos que passam pela minha timeline provocam uma cachoeira de quase inundar a tela. Um dos últimos foi o de uma mãe levando o filho já adolescente, com paralisia cerebral, para tomar chuva na frente de casa. A alegria dos dois. Naquele momento, possivelmente, eu estivesse reclamando dos cupins que têm entrado em revoada nos finais de tarde, ou de qualquer outra dessas coisas "desimportantíssimas" que costumam ocupar um espaço bem maior do que merecem.

Se esta parecer uma coluna de autoajuda, mil desculpas. Tenho pavor de autoajuda. Acredito mesmo que a autoajuda só ajuda os autores de autoajuda a se autoajudarem. Estava apenas refletindo sobre o tempo que se perde com os cupins - no sentido figurado. A eterna reclamação sobre o ar-condicionado que não dá conta do calor de Porto Alegre, e tanta gente passando perrengues incomparavelmente maiores que isso. Só para citar um exemplo.

Putz. Esta coluna vai a passos céleres no caminho da autoajuda.

A mãe e seu filho na chuva me transportaram para um vídeo da Lau Patron, autora de 71 Leões - Uma História Sobre Maternidade, Dor e Renascimento, também em um dia chuvoso, fazendo seu filho João andar de skate com um aparato que só não segurava a alegria do menino. Antes disso, provavelmente, eu reclamava dos pulgões nas plantas da sala que, por mais que se trate, não desaparecem de jeito nenhum.

Alguém tem uma receita que só mate os pulgões e não as plantas?

Há pouco estava lendo sobre um grupo de portadores de albinismo que vivem na Ilha da Maré, na Bahia, em uma comunidade quilombola isolada, e que só chegam a Salvador de barco para conseguir protetor solar e tratamento de saúde. Viagem que eles são obrigados a fazer no sol - e sem protetor solar. Ainda assim, uma das entrevistadas, Angélica Bonfim, de 27 anos, concluiu o Ensino Médio, está estudando espanhol e quer fazer faculdade. Caiu uma lágrima enquanto eu reclamava do pó que os cupins deixam na soleira.

Que não é pó, caso alguém esteja passando pelo mesmo problema. Diz a biologia: "Devido ao ambiente muito seco em que vivem, os cupins eliminam bolinhas fecais desidratadas, que normalmente ficam acumuladas no ninho e podem servir como material para fechar canais que não estejam sendo usados, ou como proteção contra inimigos. Quando as fezes se acumulam, os cupins se livram delas de uma só vez pelos orifícios do ninho, deixando a tal poeirinha em volta dos móveis atacados".

Ou seja, o cupim come a mesa, o armário, a cadeira, a janela, a porta, e deixa o cocô de lembrança. Qualquer semelhança com o modo de agir de certos políticos não deve ser coincidência. Mas diferente de, por exemplo, um impeachment - que nem entra na pauta -, por aqui a coisa terminará na marra. Vem aí uma empresa para descupinizar a casa.

Depois de eliminar os desgraçados que são minha atual ideia fixa, se não encontrar tempo para praticar a empatia e a solidariedade, então esse olhar para o próprio umbigo é só uma desculpa.

CLAUDIA TAJES

16 DE JANEIRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

OS HERÓIS DA RESILIÊNCIA

É conceito da moda. Usam em encontros motivadores. Na física, é a volta à forma original após uma deformação. O termo se origina da capacidade de ricochetear, de saltar novamente. Por extensão, usamos para falar de quem sofre pressão e consegue manter seus objetivos.

Uma pessoa resiliente ideal teria três camadas. Na primeira, suporta: recebe o golpe sem desabar. Ouve a crítica e não "desaba", vive a frustração sem descontrole, experiência a dor e continua de pé. A primeira etapa da resiliência é administrar o golpe, o revés, o erro, a decepção. O tipo ideal que estamos tratando sabe a extensão da dor, mas se considera (ou é de fato) mais forte do que as ondas das adversidades.

O segundo estágio é a recuperação/aprendizagem. Combinam-se os dois conceitos. Sinto o golpe, não desmonto (fase um) e ainda recupero a posição anterior ao golpe com o acréscimo de algo novo. Toda dor contém sua lição. Ninguém duvida disso. O resiliente consegue aprender com o golpe sentido.

O terceiro momento do modelo perfeito é a ressignificação da estratégia e da consciência a partir do aprendizado. O tipo aqui descrito nunca se vitimiza, mesmo se for a vítima. Não existe lamúria ou sofrimento para o mundo. A dor existe, foi sentida, houve reação com aprendizado e dele surgiu um novo ser, mais forte e mais sábio.

É bom descrever tipos perfeitos. Quase sempre são inexistentes. São como a biografia de santos medievais: sem falha, diamantes sem jaça; modelos e, como tal, inatingíveis. Existe um propósito didático de mostrar a perfeição para nós que chafurdamos no lodo da existência banal. Todos temos graus variados de resiliência diante da vida. Ninguém é o tipo ideal. Uma coisa não invalida a outra.

Etapa um: recebi um golpe. Resisto? Eu já resisti a vários e já desabei com outros. Depende da força e do tipo do agressor. Sou ótimo com debates entre inimigos. Desabo quando a estocada é de alguém de confiança. Sou forte com os dardos adversários. Fragilizo-me com fogo amigo. Como um jacaré, tudo que ataca pelo casco duro e externo é recebido com certa indiferença. O baixo-ventre é liso e vulnerável.

Etapa dois: a aprendizagem sempre existe, porém, é comum que venha com dor e mágoa, produzindo amargor quase infindo. Mais do que uma lição, é uma ferida aberta, que me deixa com menos ousadia, com trauma, com medo. Algumas dores provocam medo, apenas. Não saio melhor, emerjo mancando e gemendo, teatralmente.

Última etapa do resiliente clássico: eu tenho momentos de aguda vitimização. Parece que a exposição teatralizada da dor é um tipo específico de grito de socorro que lançamos ao círculo íntimo. O versículo de tais ocasiões é o das Lamentações de Jeremias: "Ó vós todos que passais pelo caminho, parai e vede se há dor semelhante à minha dor" (Lm 1, 12). Eu quero que me vejam e que lamentem muito, reconhecendo a extensão atroz da minha tragédia única. A pena alheia serve como um pífio consolo, todavia é o que temos para o momento. Como carpideiras, chorem todos e todas pela minha miserabilidade. Após seu choro, tendo comungado do vale de lágrimas, minhas feridas estão lá, agora com a diferença de serem públicas e lamentadas. Por vezes, só restam a autopiedade e a reclamação ao machucado.

Creio que existe algo entre os dois modelos: o da resiliência ideal e o da vontade de desistir ou de chorar apenas. Como narrativa de santos, o modelo perfeito serve como para indicar o ponto no qual não me encontro, porém devo reagir para almejá-lo. Sempre é bom ser resiliente, e todos os palestrantes e livros têm razão: sem resiliência em algum grau, épico ou homeopático, é impossível enfrentar o mundo.

Resiliência é virtude, sem dúvida. Está ao lado da sabedoria, do equilíbrio e da paz perfeita. São metas corretas, elevadas, estátuas de deuses gregos em comparação com meu corpo de gorduras muito bem localizadas e com usucapião. Devemos estudar, falar e incentivar o modelo perfeito de quem deveríamos ser. Precisamos pensar sobre quem somos de verdade ou não haverá resiliência que dê conta da frustração entre o que gostaríamos e o que vivemos.

Oscar Wilde garantiu que, quando resistimos a alguma tentação, é porque ela era fraca. O doce não comido, o drinque recusado, a cantada evitada eram focos tênues que não me abalaram de verdade. Se fossem extraordinários, eu teria caído da minha fortaleza de virtudes. Talvez eu possa ser resiliente com as dores que, de fato, não me desestruturam. Posso até me orgulhar de ser mais forte do que outras pessoas em casos análogos. Mais interessante ressaltar minha virtude superior do que avaliar que aquela não era uma área sensível para mim.

O conto extraordinário de Kafka, Um Artista da Fome, fala de um homem com extrema resiliência para aguentar jejuns prolongados. Era um herói! Ao final, emitiu a verdade surpreendente. Ele não era um homem de vontade férrea, apenas nunca havia encontrado um prato que... o seduzisse realmente. Seu paladar nunca fora tentado. Creio ser a receita geral da resiliência: a serenidade diante das coisas que, na verdade, não nos atingiram. Esperança ajuda sempre.

LEANDRO KARNAL

16 DE JANEIRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

O HERÓI

Das tramas entre religião, cultura e política, eis palavra-chave, o termo herói, com que os gregos designaram tipos entre o humano e o divino, por vezes chamados semideuses (hemitheoi). Era signo de identidade e distinção para a aristocracia grega, que se queria próxima de deuses e deusas, com quem combatiam e copulavam, como se lê nos poemas de Homero, a Ilíada e a Odisseia (séc. IX a.C.). O termo héros era então um título de nobreza, de personagens que almejavam realizar feitos notáveis para obter fama e perenizar-se na memória, bem como para exercer prestígio e comando. Sujeito de uma relação particular com os deuses e o destino (Torrano), o herói evidencia os limites da condição humana e presta-se para pensarmos a liderança, nem sempre nos termos pretendidos pela aristocracia. Você quer ser herói ou heroína? Vejamos, antes, para quem serve esse destino.

Ao mito do herói, forte no folclore arcaico, correspondeu o culto heroico, em que a potência dos ancestrais era evocada em defesa da comunidade. Assim desenvolveu-se uma tradição religiosa ligada ao território, política por natureza. Hinos, imagens, festas, altares e sacrifícios situavam a religião heroica na vida das aldeias e, posteriormente, da pólis, gerando uma relação muito forte entre mito heroico e cidade, na estatuária equestre e cívica, nos bustos e nos topônimos, nos espaços de poder, nas ruas e nas necrópoles. O motivo heroico pertence ao genoma de nossa cultura e, por isso, aparece com plena força na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas e especialmente no cinema e nos quadrinhos, como bem examina Hugo F. Bauzá em El Mito del Héroe (FCE, 1998); o padrão heroico de 22 episódios de narrativa, fundamental, foi decifrado na análise de Lord Raglan (The Hero: a Study in Tradition, Myth, and Drama, 1936) e sumarizado em In Quest of the Hero (Alan Dundes, 1990), obras que vão bem além do livro popular de Joseph Campbell (O Herói de Mil Faces, 1949).

Com toda essa parafernália histórica, cultural e teórica, o herói é também uma máscara que pode ser vestida, como parte dos estereótipos e vocabulários do poder, em formas eficientes da demagogia, bem conhecidas de marqueteiros e ambiciosos. Os gregos cedo o perceberam e iniciaram o ataque às ambições heroicas da aristocracia, como se lê na obra de Arquíloco de Paros (680-645 a.C.). Do herói glorioso de Homero, chega-se à era do herói problema, na Tragédia Grega (séc. V a.C.), onde o protagonista, no centro do palco, solitário e teimoso, sofre análises que evidenciam sua incompatibilidade com o regime cultural e político do diálogo e da partilha do poder, a democracia. Além disso, o herói paga por sua ambição, pois o líder é o responsável que tem a culpa dos infortúnios, quando a crise aparece. Eis Édipo diante da peste.

É preciso distinguir o herói que salva vidas do líder metido a herói, de Collor ao presente vilão, sobretudo quando omite-se de salvar, torna-se responsável pela morte de seu povo e clama por seu próprio sacrifício, para o bem da nação. E uma heroica flor nascerá das cinzas.

FRANCISCO MARSHALL

16 DE JANEIRO DE 2021
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

JOÃO JARDIM,

cineasta, 57 anos Diretor de filmes como "Janela da Alma" (2002), "Lixo Extraordinário" (2010) e "Getúlio" (2014), acaba de lançar "Atravessa a Vida", documentário que acompanha alunos de uma escola pública realizando o Enem

Estreia da semana de reabertura das salas de cinema em Porto Alegre, o documentário Atravessa a Vida entrou em cartaz quinta-feira no Espaço Itaú. O filme do carioca João Jardim acompanha alunos do 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública do interior do Sergipe que se preparam para o Enem, retratando a pressão e as angústias que sentem com o exame e refletindo sobre temas urgentes - perspectivas para o futuro, depressão, abandono do pai, entre outros. Jardim, que volta ao universo estudantil que havia abordado em Pro Dia Nascer Feliz (2005), também tem no currículo documentários premiados como Janela da Alma (2001, codirigido com Walter Carvalho) e o indicado ao Oscar Lixo Extraordinário (2010, com Lucy Walker e Karen Harley), além da ficção Getúlio (2014) e de programas como Liberdade de Gênero e Nelson Por Ele Mesmo. Nesta entrevista, fala sobre o atual momento do cinema nacional e sobre as inquietações juvenis com as quais deparou, tendo ou não a ver com a experiência de preparo para o Enem.

COMO FOI A CONCEPÇÃO DE ATRAVESSA A VIDA?

Após Pro Dia Nascer Feliz, eu quis fazer outro filme sobre o adolescente na escola. O documentário anterior abordava uma faixa etária um pouco mais jovem, entre 14 e 15 anos. Neste, pensei em retratar o 3º ano, o momento de sair da escola, o Enem, a possibilidade de entrar na universidade. A ideia foi evoluindo até esse formato de passar três meses em uma escola. Não foram três meses diretos; foram várias semanas intercaladas nesse período, em que a gente foi e voltou. Minha preocupação principal é o lado subjetivo, o que o jovem pensa nesse contexto. Há um potencial enorme nessa faixa etária, horizontes de abrindo. E como o país lida com isso, que perspectiva a gente está dando para as pessoas nessa faixa etária? Ainda: o quanto as questões emocionais influenciam muito a vida da gente nesse momento? A criação do filme foi uma mistura de várias inquietações como essas. Pesquisei várias escolas, mas concluí que seria melhor trabalhar com uma única, grande, pela balbúrdia que pode ter. E não queria trabalhar em uma grande cidade para evitar temas paralelos, como a questão da violência. Tampouco queria mostrar jovens sem nenhuma perspectiva, pois não acho que isso seja real no Brasil hoje - ao menos era assim antes da pandemia. O Enem (implementado em 1998) abriu a possibilidade de o jovem de baixa renda entrar na universidade, algo que era bem mais limitado anteriormente. Então, está diretamente ligado à possibilidade de melhoria de vida, o que mexe com as perspectivas desses jovens.

QUE CONTEXTO ERA AQUELE EM QUE VOCÊ REALIZOU PRO DIA NASCER FELIZ E QUAL FOI O CONTEXTO DE ATRAVESSA A VIDA? SÃO DOIS MOMENTOS DIFERENTES DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA?

Acho que, quando o primeiro documentário foi filmado, em 2004, entrar na universidade pelo Enem não era uma perspectiva. Ao chegar aos 15 anos, a coisa era um pouco assustadora. O que eu vou fazer depois da escola? Agora já existe essa perspectiva, já se solidificou o Enem e também o Fies e o ProUni. Você teve, nos últimos 15 anos, políticas de inserção do jovem de baixa renda no Ensino Superior. Ainda falta muita coisa a ser feita, logicamente. Não há universidade o suficiente para dar conta de todo o mundo. Mas as universidades pelo menos se interiorizaram. Há universidades mais baratas, que os pais ou alunos de uma classe média com padrões do interior do Brasil conseguem pagar. O próprio celular e a popularização da internet trouxeram um jovem mais antenado com o que está acontecendo no mundo. Esse jovem tem mais informação do que aquele de 2004-05. Talvez isso provoque uma alienação, mas esse jovem está conectado ao celular em qualquer lugar do Brasil, mesmo com uma internet ruim ou precária...

COMO VOCÊ CHEGOU AO CENTRO DE EXCELÊNCIA DR. MILTON DORTAS, QUE FICA EM SIMÃO DIAS, CIDADE DE 40 MIL HABITANTES NO INTERIOR SERGIPANO?

Na época em que comecei a pesquisar as escolas, falei com o Paulo Saldaña, que é um jornalista de educação da Folha de S.Paulo. Li uma matéria sobre essa escola, que ele escreveu. Com a ajuda dele, consultei um censo escolar. Queria uma escola grande de mil alunos de uma cidade pequena. Porém, há apenas entre 10 e 20 escolas grandes assim em municípios interioranos no Brasil que têm notas médias de aprovação de Enem entre 20% e 30%. A média de aprovação no Enem nas escolas públicas brasileiras é baixa. No caso de uma escola com mais de mil alunos, é mais difícil ainda achar uma que tenha uma média boa. Essa escola era uma exceção, algo impressionante em uma cidade de 40 mil habitantes. Ela também tem uma característica que está no filme, que é o fato do prédio ser todo aberto. Não tem corredor. As salas de aula dão todas para o pátio, e os alunos não ficam fechados dentro de um prédio. Isso, para o filme, ajudava muito. A ideia era fazer um filme todo na escola, mas ao mesmo tempo que não fosse claustrofóbico, porque escola não é prisão.

COMO FOI ACOMPANHAR ESSES ALUNOS POR TRÊS MESES? COMO ELES LIDARAM COM AS CÂMERAS?

Passamos sete semanas com eles, entre agosto e novembro de 2018. Foi um movimento de ir chegando perto, de ganhar a confiança deles, deixando acontecer um processo de sedução para irem se abrindo para o documentário. Logicamente, eles desconfiavam da gente no princípio. Teve muita conversa e explicação. Foi preciso muita paciência, mas deu muito prazer. Tinha muito medo de que não acontecesse, que ficasse na superficialidade. Quando se começa, as conversas são muito superficiais. E vem a dúvida: "Será que tem filme aqui? Será que de fato vai gerar conteúdo?". Aos pouquinhos foi acontecendo.

O FILME TRAZ EPISODICAMENTE TEMAS QUE PERMEIAM A ADOLESCÊNCIA. UM DELES É O SENTIMENTO DE PRESSÃO PARA SER APROVADO POR UMA UNIVERSIDADE. QUE EFEITOS ESSA PRESSÃO PODE CAUSAR NOS JOVENS?

É uma pressão muito grande, que acho difícil segurar. Sair da escola e perder a convivência com os amigos é impactante. Há também aqueles que não têm vontade nenhuma de ir para o Ensino Superior - o que não vejo problema. Há vários bons empregos que não precisam de graduação. Claro, o ideal é que todos tenham a melhor formação possível. Mas há outras perspectivas. De qualquer maneira, essa pressão é algo que faz parte do aprendizado. Uns se deprimem, outros sofrem com ansiedade, desenvolvem um sentimento de inferioridade, o que pode levar a algo ainda maior.

HÁ TAMBÉM AS INDECISÕES COM AS ESCOLHAS DA VIDA ADULTA, O QUE É COMUM NESSA FASE. HAVIA ALGUNS JOVENS INDECISOS ENTRE OS ALUNOS QUE VOCÊ ACOMPANHOU, NÃO?

Sim. Na verdade, quase todos (risos). Eles até dizem o que gostariam de cursar, mas, quando a gente se aproxima, percebe que têm dúvidas, pois não entendem muito bem o que são aquelas profissões. Mas são dúvidas normais, dúvidas sobre que tipo de vida eles querem, e que pode acompanhá-los até o final da vida... Uma das coisas que sempre tentei colocar nos meus filmes é isso. A ideia de que não existe uma verdade absoluta, não existe um único caminho. A subjetividade de cada pessoa é muito rica. Estar atento o que cada pessoa tem, sente ou acredita, é sempre muito interessante.

HÁ PROBLEMAS RECORRENTES ENTRE OS PERSONAGENS DO FILME, INCLUINDO FALTA DE DIÁLOGO NO AMBIENTE FAMILIAR, AUSÊNCIA DO PAI... VOCÊ ESCOLHEU JOGAR LUZ NESSA QUESTÃO DA FALTA DA FIGURA PATERNA DELIBERADAMENTE OU O ASSUNTO ACABOU SURGINDO MAIS NATURALMENTE NAS FILMAGENS?

Esse assunto nós percebemos nas entrevistas. Fomos perguntando como era a casa dos estudantes e isso foi aparecendo. No roteiro original, não havia as entrevistas. Mas, quando estávamos lá, resolvemos fazê-las para ver o que sairia. Dos 12 estudantes que fomos ouvir, nove falaram desse assunto sem precisarmos ter perguntado. Quem costuma segurar a onda nas famílias é a mulher, é a mãe. Imagino que isso aconteça de maneira recorrente por todo o Brasil. Essa ausência do pai é uma das dificuldades que os jovens enfrentam no estudo, porque se sentem desamparados. O que me parece que mudou nos últimos tempos é que eles conseguem verbalizar isso. Isso nos chamou a atenção: como eles falam bem sobre o tema, sem muitos receios.

UM DOS JOVENS (RAMON) FALA SOBRE A AUSÊNCIA DO PAI E SOBRE O QUANTO A MÃE É IMPORTANTE PARA ELE. DIZ QUE AS DIFICULDADES SERVIRAM DE COMBUSTÍVEL PARA ELE SE ESFORÇAR AINDA MAIS NOS ESTUDOS. E ARREMATA: A TRISTEZA TEM UM LADO BOM, QUE É O APRENDIZADO.

Todos os depoimentos foram muito emocionantes. Estávamos fazendo o filme na mesma época das eleições de 2018. A escola era um local de votação. Ela teve que fechar brevemente nesse período para a eleição. Foi quando fizemos as entrevistas. Foi muito forte. Eram conversas de uma hora que vinham com uma carga emocional que a gente não esperava. Um tipo de depoimento sincero e sofrido, mas muito bem articulado. Foi difícil escolher só três para a edição final, até porque eu não queria fazer um filme com entrevistas.

A CERTA ALTURA, UMA PROFESSORA LEVA A MÚSICA PAIS E FILHOS, DA LEGIÃO URBANA, PARA OS ALUNOS DEBATEREM, E A CONVERSA ACABA SENDO SOBRE SUICÍDIO, COM VÁRIAS QUESTÕES VINDO À TONA: FAMILIARES QUE NEGLIGENCIAM OS SINAIS, AUTOMUTILAÇÃO, A INCOMPREENSÃO DE UMA MÃO DIANTE DO QUE A FILHA SENTE. COMO FOI ADENTRAR NESSE DEBATE DELICADO?

A questão do suicídio é um assunto que as escolas tentam abordar quando é possível. É um debate muito importante. Você vê que a professora estava com a aula superpreparada. Ela sabia o que estava fazendo, uma coisa bem direcionada. Há campanhas como o Setembro Amarelo, com a intenção de prevenir situações como essa. Isso está latente na escola, constatamos isso. No filme, o assunto surgiu organicamente. Nós permanecíamos na escola várias horas e íamos observando, e deparando com isso. Quando esse assunto veio, conversamos com estudantes perguntando se ficariam tranquilos em expor suas histórias nesse sentido. Tudo o que está no filme é orgânico, simplesmente veio para nós. E aí lidamos com cada assunto conforme a demanda surgia. Nada foi plantado, "vamos falar de automutilação". Fomo abertos para encontrar o que aparecesse.

NÃO HAVIA TEMA PRÉ-ESTABELECIDO?

Achei muito relevante que a polarização política não tenha aparecido. Como filmamos na época das eleições, achamos que apareceria. Obviamente, havia o debate e havia defensores dos dois polos políticos na escola. Mas não presenciamos nenhum desrespeito, nenhum tipo de intolerância. Não vimos um antagonismo mais forte. Até teve uma aula em que uma menina fala: "Sou preta, pobre, mulher, nordestina, se estou aqui, é porque pessoas morreram na ditadura militar. Como posso votar na ditadura?". Ali eles estavam falando sobre o Bolsonaro, mas nem citaram o nome dele.

EM OUTRO MOMENTO, CHAMA A ATENÇÃO QUE JOVENS SE MANIFESTAM A FAVOR DA PENA DE MORTE. TAMBÉM HÁ QUEM DIGA SER CONTRA ABORTO. EMBORA O DEBATE NAQUELA AULA ACABE VIRANDO, PARECEU-ME ALI QUE ESTAVA CLARA UMA FORTE DESILUSÃO. VOCÊ SENTIU ISSO?

Há uma tendência de desacreditar nas instituições, sim. Pareceu-me que há uma descrença na Justiça. E também de que o governo vá dar conta dos problemas. Acho que até por isso não havia polarização: há, sim, desilusão com as instituições. Mas não há falta de perspectivas, isso me pareceu bem claro.

A DESILUSÃO E TAMBÉM UMA CERTA APATIA PARECE MAIOR NAS AULAS DO TURNO DA NOITE. COMO ERAM ESSAS TURMAS?

A educação à noite do Ensino Médio é muito difícil. Normalmente, o aluno trabalha durante o dia e vai ao colégio cansado. O professor também, pois já deu várias aulas ao longo do dia. Além disso, o espaço da escola é grande e a presença de alunos é menor no período noturno, o que dá uma sensação de vazio, de que alguma coisa não está adequada. Ao mesmo tempo, é muito importante haver o ensino noturno, pois muitos estudantes precisam trabalhar ou ajudar em casa.

A DIRETORA DANIELA SILVA É UM CAPÍTULO À PARTE. ELA VIVE SOBRECARREGADA, ATUA COMO PSICÓLOGA E ATÉ COMO COSTUREIRA. PELO QUE VOCÊ OBSERVOU, O QUE É SER DIRETORA EM ESCOLA PÚBLICA?

Muitas escolas acabam tendo essa figura do diretor-gestor. Para dar conta de tudo, a pessoa tem de se virar em mil. Precisa realmente fazer um pouco de tudo. Tem que ter esse lado afetivo, tem que ter esse lado organizacional, o lado de entender os conteúdos das aulas. E a direção precisa ser comprometida para a escola dar certo. Isso eu já tinha percebido em Pro Dia Nascer Feliz. Ou a direção atua como gestora, em todas essas pontas, ou a escola naufraga.

COMO VOCÊ VÊ A REALIZAÇÃO DO ENEM EM MEIO À PANDEMIA?

Creio que é importante que seja realizado. Com certeza há um risco, é preciso tomar cuidado. Mas não adianta seguir adiando, não vai fazer muita diferença, pois a crise sanitária segue. E, se não fizer, como se vai preencher as vagas que vão surgir? Há uma quantidade muito grande de pessoas que podem entrar no Ensino Superior para você abrir mão dessas vagas. Além disso, tudo está funcionando: bar, supermercado, praia. Se a educação não pode, por que o resto pode? É claro, tem a questão da desigualdade: pessoas de escolas privadas ou com acesso melhor à internet têm melhores condições de aprendizado. Mas você tem o sistema de cotas, que vai continuar permitindo que pessoas de outros grupos entrem na universidade. É preciso encontrar soluções.

O CINEMA BRASILEIRO VIVE ENTRE TENSÕES COM O GOVERNO FEDERAL, SEJA POR SUSPENSÕES DE EDITAIS OU DESMANCHES QUE DEVEM DIMINUIR BASTANTE A PRODUÇÃO NOS PRÓXIMOS ANOS. COMO VOCÊ ENXERGA O FUTURO NESSE CENÁRIO?

Estamos num momento muito difícil com a Agência Nacional do Cinema (Ancine) paralisada. Não gosto de politizar, mas o governo Bolsonaro imobilizou completamente a Ancine. Parou a produção. Há 700 filmes parados. Ainda mais com a pandemia, ninguém está conseguindo filmar. Tudo o que vinha acontecendo, com nosso cinema sendo reconhecido, parou de uma maneira assustadora. Há uma política de destruição de coisas que levaram muitos anos para serem construídas.

POR OUTRO LADO, DEMOCRACIA EM VERTIGEM CONCORREU AO OSCAR ANO PASSADO, E NESTE ANO BABENCO FOI SELECIONADO PARA REPRESENTAR O BRASIL NA SELETIVA DO OSCAR DE MELHOR FILME ESTRANGEIRO. SÃO DOIS DOCUMENTÁRIOS...

Sou uma pessoa otimista: espero que os serviços de streaming tenham a sensibilidade de encomendar documentários. Creio que as pessoas estão assistindo cada vez mais aos documentários. O futuro desse tipo de filme, para mim, é o streaming.

QUANDO ATRAVESSA A VIDA CHEGA AO STREAMING?

Em fevereiro, no Globoplay.

COMO É LANÇAR UM FILME NESSE CONTEXTO DE PANDEMIA?

Não saberia te responder. Eu, pelo menos, estou com muita vontade de ir ao cinema livremente de novo. Acho que, quando acabar a pandemia, irei muito ao cinema. Não aguento mais ficar vendo filme em casa. Quero a experiência coletiva. Não imagino que as pessoas vão seguir sempre em casa. O ser humano é feito para viver de maneira intensa. As pessoas querem a emoção, a experiência que as salas de cinema propiciam. Até aquela coisa de se desligar em um cinema. É uma experiência tão gostosa. Você senta ali e entra em outro mundo.

WILLIAM MANSQUE


16 DE JANEIRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

ATIVIDADE FÍSICA E METABOLISMO

ESTUDO NORTE-AMERICANO MAPEIA BENEFÍCIOS CONTRA AS DOENÇAS CARDIOVASCULARES

Se existe uma panaceia na medicina moderna, é a atividade física. São incontáveis seus benefícios: redução da mortalidade por doenças cardiovasculares, prevenção e controle do diabetes e da hipertensão, do número de casos de diversos tipos de câncer, da obesidade e de suas consequências, do declínio cognitivo associado ao envelhecimento e até do risco de desenvolver as formas graves da covid-19.

Embora a prática de exercícios com regularidade diminua a mortalidade geral e o risco de doenças cardiovasculares, os mecanismos responsáveis por esses resultados não são claros.

Matthew Naylor e colaboradores do Massachussets General Hospital acabam de publicar na revista Circulation um estudo para avaliar os padrões da arquitetura da resposta metabólica ao exercício em seres humanos.

Foram realizados testes da função cardiopulmonar e do perfil metabólico antes e depois de alguns minutos de exercício extenuante (em bicicleta estacionária), entre os participantes do Framingham Heart Study, uma coorte dessa cidade próxima de Boston, que vem sendo acompanhada há décadas para avaliar os fatores envolvidos nas doenças cardiovasculares.

As idades variaram entre 45 e 61 anos (sendo a média 53), e 63% eram mulheres.

Os participantes tiveram 588 metabólitos dosados no sangue colhido antes e depois de pedalar à exaustão (em média, 12 minutos). Em 502 deles, houve mudança do perfil induzida pela atividade física.

Os níveis de metabólitos presentes na circulação antes da prática do exercício guardaram relação direta com o preparo físico anterior.

As alterações induzidas pela atividade física incluíram redução das concentrações de metabólitos implicados na resistência à insulina (que predispõem ao diabetes), aumento daqueles relacionados com a lipólise (envolvidos na "queima" de gordura), na biodisponibilidade de óxido nítrico e do tecido adiposo marrom, entre outros fatores relevantes para o risco cardiometabólico.

Essas modificações variaram de acordo com a quantidade de exercício realizado, o sexo e o índice de massa corpórea. O impacto na produção de alguns metabólitos protetores foi menor nos participantes que estavam na faixa da obesidade e mais alto nas mulheres, mesmo quando praticaram exercícios menos intensos.

Com base nas respostas obtidas, foi possível identificar quatro "assinaturas" metabólicas, duas das quais associadas à mortalidade geral, num período médio de observação de 23 anos.

Os autores concluíram que, em indivíduos da comunidade, exercícios intensos, mesmo quando praticados por um período curto, são capazes de causar alterações no metabolismo centrais à saúde cardiometabólica e à proteção contra doenças cardiovasculares.

Diferentemente das panaceias egípcias, greco-romanas e as mais populares da Idade Média, prescritas durante séculos sem evidências de eficácia e do mecanismo de ação, o exercício físico, panaceia moderna, começa a ter sua fisiologia desvendada.

 


16 DE JANEIRO DE 2021
MONJA COEN

A SABEDORIA CONTRA O EGO

O verdadeiro e puro corpo dos ensinamentos não aparece nem desaparece. Essa frase faz parte de uma homenagem budista, uma dedicatória a uma pessoa sábia.

Sem ir nem vir. A sabedoria é maior do que um ser humano, mas se manifesta em um ser humano. E a pessoa verdadeiramente sábia não se considera sábia. É humilde, capaz de ouvir a todos e entender a todos, capaz de criar causas e condições de afeto e respeito.

Falta-me muito ainda para ser sábia.

Tenho dificuldades infinitas com discípulos e discípulas. Quando penso que está tudo certo, surgem notícias alarmantes de erros, faltas, desvios do Caminho.

Nada tão grave como o que temos tido conhecimento em outras tradições espirituais. Mas, um certo descaso, desrespeito, falta de gratidão. Não querer ouvir conselhos, como adolescentes rebeldes.

Por quê?

Talvez, como muitos pais e mães podem estar pensando neste momento: onde foi que errei?

Talvez não soubesse transmitir o essencial: o respeito aos nossos pais, avós, professores e professoras.

Tantas crianças e adolescentes precisaram estudar a distância. Difícil. Os educadores e as educadoras se reeducaram. Voltaram a ser alunos.

Aprender a usar as redes sociais, abrir e fechar plataformas, dar aulas virtuais.

E aulas virtuais não podem ser como aulas presenciais. É preciso maior interação, participação de quem aprende - ou tenta aprender.

Como provocar as pessoas ao prazer do estudo, da leitura, do conhecimento que diverte, estimula muito mais do que jogos, trabalho, bebidas, drogas, sexo?

Nossas aulas, palestras, eventos precisam ser mais dinâmicos, interativos.

Como superar os obstáculos da vergonha e medo de falar, fazer comentários, responder ou fazer perguntas com seus colegas assistindo? Percebem? Queremos impressionar nossos amigos e amigas, queremos ser raros, especiais, divinos. Ou queremos nos esconder e não ser vistos. Tudo isso é o amigo ego, o euzinho. Ele pode ser um problema em nossas vidas. Fica emburrado, bravo, vai embora. Não admite qualquer crítica, qualquer riso. Quer sempre ser admirado, mas faz pouco para isso. Portanto, insisto, vamos meditar. Vamos sentar em silêncio em meio a tanta turbulência e barulho que esses poucos 15 dias de ano nos trouxeram. Sentar em silêncio, sem aglomerações, de máscaras, distantes, à beira do Guaíba, com um chimarrão só seu, água quente e o entardecer que nos torna doces e amorosos. Ouvir os quero-queros afastando intrusos de seus ninhos e se expondo para salvar os pequeninos. Você é capaz dessa querência? Da querência de se expor pelo bem verdadeiro? Pelo amor incondicional? Pelo respeito a vida e o direito à vida, saúde, justiça de todos?

Está na hora de despertar. Janeiro de 2021.

As vacinas hão de chegar a todos os rincões. Pouco a pouco a humanidade ganhará anticorpos e poderá conviver com o coronavírus. E você, poderá conviver com erros, faltas, maldades sem ser contaminado? Será capaz de criar anticorpos resistentes à ganância, raiva e ignorância?

Que possamos ser gratos a quem segurou nossa mão para desenhar nosso nome pela primeira vez... A quem nos convidou a caminhar e com ternura, sorrindo nos chamava... A quem nos permitiu estudar, praticar e desenvolver nossos talentos (com sangue, suor e lágrimas). E nossos colegas que facilitaram nossos estudos e nos provocaram com suas dúvidas?

Você pode, eu posso, nós podemos.

Ir além.

Transcender o eu menor e despertar em gratidão, amor incondicional, respeito verdadeiro por todos que nos trouxeram até aqui, agora.

Desperte! Agradeça e reconstrua sua vida. Sempre é momento de reiniciar essa jornada. Este ano será tão bom quanto cada um de nós o fizermos bom.

Mãos em prece.

MONJA COEN

16 DE JANEIRO DE 2021
J.J. CAMARGO

MORTES NÃO CONTABILIZADAS

A angústia de quem está esperando é inevitável. Qualquer que seja a razão da espera. O quanto teremos que esperar gera mais ansiedade do que irritação, mas esta acaba se impondo, quando o esperando desespera.

Se isso é rotina nas atividades cotidianas, onde com frequência temos a nossa tolerância desafiada e protestamos com veemência sempre que achamos que a protelação decorre de desconsideração (logo conosco que somos pessoas tão importantes!), imagine-se o sentimento desesperador de quem, completamente fragilizado pela doença, porque dependente de ajuda para as atividades mais elementares, se encontra numa lista de espera para um transplante de órgãos, esta condição de vulnerabilidade máxima, porque está em jogo nada menos que a vida do desafiado.

Em um país que ainda não tem a cultura da doação de órgãos, a espera por um transplante ainda tem agravante: não há como prever que tempo será, porque não há ritmo nas doações, condicionadas a estímulos externos, em geral midiáticos, para que as doações ocorram ou minguem.

Seguindo o aforismo de que quando está ruim, sempre é possível piorar, de repente um chinês distraído se esqueceu de cozinhar o morcego e incendiou o mundo com uma pandemia sem antecedentes na civilização contemporânea.

A ameaça desconhecida, subvalorizada no início, porque se supôs se comportaria como as outras infecções por coronavírus, assumiu enormes proporções, disseminando-se pelos cinco continentes, democratizando o pânico, banalizando a morte e introduzindo um elemento desconhecido para quem sobreviveu ao século 20: o sofrimento coletivo.

Com forte participação da mídia, promovendo a contagem constante das vítimas e mostrando vídeos de covas rasas para mortos que nem tiveram a chance de serem pranteados por suas famílias, a atividade médica perdeu o foco para todas as outras doenças que não tivessem no nome, o número 19.

Instruções equivocadas do Ministério da Saúde recomendavam que, diante de sintomas de infecção respiratória, devia-se evitar o hospital, porque lá, em emergências lotadas, haveria, sim, o risco de adquirirem a doença. Desse disparate, resultaram duas consequências danosas: 1) os pacientes crônicos passaram a morrer em casa de doenças curáveis, por temor de irem ao hospital, ou seja, por medo de adquirirem a doença nova, centenas de pessoas morreram da doença velha; 2) doenças prevalentes, como câncer, por exemplo, tiveram seus diagnósticos negligenciados, implicando certamente em morte por enfermidades originalmente curáveis se o diagnóstico tivesse sido feito precocemente.

Neste contexto, e com as Unidades de Terapia Intensiva destinadas quase inclusivamente ao tratamento da pandemia, as doações caíram drasticamente, levando-nos a uma condição nunca observada em 31 anos de implantação do Programa de Transplante Pulmonar no nosso país: pela primeira vez tivemos menos pacientes transplantados do que mortos na lista de espera.

A cumplicidade entre os candidatos ao transplante, estimulada pelo convívio diário na fisioterapia, com o desenvolvimento espontâneo de solidariedade e empatia entre eles, exerceu então um efeito devastador. Cada morte na lista de espera se multiplicava no grupo como um rastro de desesperança, expresso claramente pelo desinteresse em fazer, durante muitos dias, qualquer tipo de exercício.

Muitas vezes fomos pressionados por pacientes, procedentes de outros Estados brasileiros, com dilemas terríveis. Um deles me perguntou diretamente: "Doutor, sinceramente, o senhor acha que tenho mesmo chance de ser transplantado, porque, se não, eu prefiro ir embora e morrer perto dos meus. Faça alguma coisa por mim, doutor. Me ajude, eu morro de medo de morrer sozinho!".

Deprime saber que esses dramas e muitas dessas mortes poderiam ser evitados.

Só resta-nos esperar que as vacinas nos devolvam a vida normal e que a sociedade se dê conta de que todo esse sofrimento coletivo só terá algum sentido se nós, os sobreviventes, ao fim de tudo, percebermos o quanto somos vulneráveis e carentes de generosidade e compaixão.

J.J. CAMARGO

16 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Um livro que você precisa ler

Rebrilha, nas prateleiras das boas livrarias, um livro que você precisa ler. E, quando digo "precisa", não exagero. Trata-se de uma necessidade para qualquer brasileiro que pretenda conhecer um pouco do seu país e da realidade em que vive. Estou falando de A Organização, da jornalista Malu Gaspar.

Nesta obra-prima do jornalismo, Malu faz mais do que jornalismo: faz História com agá maiúsculo. Ela conta um pedaço da história do Brasil de um ângulo diferente. É como olhar para Manhattan a partir da ilha da Estátua da Liberdade ou para Porto Alegre a partir de Guaíba. Porque Malu narra a saga da maior empreiteira que já existiu na América do Sul, a Odebrecht, e, desse ângulo único, descreve o que aconteceu no país desde Geisel até Bolsonaro.

Muito do que Malu relata já é sabido, principalmente depois da explosão da Lava-Jato, mas o seu grande mérito é organizar os fatos e descrevê-los como se estivesse compondo um romance policial. Além disso, durante três anos e meio ela submergiu no vasto mundo da Odebrecht, conheceu seus personagens mais importantes, arrancou-os das sombras e sobre eles jogou a luz de um texto preciso, que não derrapa uma única vez nas quase 600 páginas da narrativa.

Entre esses personagens, o mais fascinante é Marcelo Odebrecht, um homem inflexível e atormentado, eivado de ressentimentos, vítima de seus próprios dramas emocionais, que o fazem parecer duro, quando na verdade é frágil. A trajetória de Marcelo, que vive pela e para a Odebrecht, é espantosa, porque tudo o que acontece com ele poderia ser evitado ou suavizado, se ele não fosse quem é. Marcelo é prisioneiro da sua personalidade. Por mais que os fatos apontem para uma nova realidade, ele não consegue enxergá-la e caminha resoluto para o outro lado. Para o abismo.

Ninguém está a salvo da verdade no livro de Malu. Corrupção grossa e fina salta de todos os espectros políticos. Em meio a bilhões de dólares que são entocados em instituições financeiras esquivas mundo afora, aparece, por exemplo, o peculiar caso do irmão de Lula, Frei Chico, que foi indicado pelo próprio ex-presidente para trabalhar como uma espécie de espião da Odebrecht nos sindicatos de trabalhadores. Frei Chico recebia um salário para desmontar greves pelo Brasil. Depois que Lula foi eleito, ele, obviamente, não podia mais continuar exercendo essa tarefa, mas a empresa prosseguiu lhe dando uma remuneração só para mantê-lo sob controle. Frei Chico recebia R$ 9 mil por trimestre, depois reajustados para R$ 15 mil. Um homem barato.

Se você é petista e ficou agastado com essa informação, calma lá. A Odebrecht também se relacionou intimamente com o PSDB. Leia esse trecho sobre José Serra, quando ele era governador de São Paulo:

"Serra não falava apenas de ideias e projetos. Também pedia (e levava) dinheiro para as campanhas. Na eleição presidencial de 2002, recebeu da empreiteira R$ 15 milhões no caixa 2. Em 2004, quando disputou a prefeitura paulistana, também contou com a organização. O mesmo aconteceu em 2006, quando se elegeu governador de São Paulo. Agora que estava eleito, esperavam-se os dividendos do ?investimento?".

Os principais dividendos eram as obras do Rodoanel, uma via expressa de 182 quilômetros que contornava a região metropolitana. Serra mandou um emissário, Paulo Preto, para negociar com a empresa: "Ele explicou que o governador ia mesmo forçar uma queda nos preços, mas deixou claro que os descontos podiam ser compensados depois, com modificações nos contratos - desde, é claro, que as empreiteiras aceitassem recompensá-lo também. ?Já que vocês vão ter essas melhorias, eu preciso de 0,75% dos valores para poder pagar campanhas passadas e futuras?".

Acerca da escandalosa construção do estádio do Corinthians, Malu traz bastidores da polêmica que a obra motivou na empresa: o pai, Emílio, amigo de Lula, defendia o projeto; Marcelo, o filho, era contra. O capítulo 15 abre com um debate entre os dois:

"?Meu pai, eu nunca trouxe para você um problema do Aécio. Por que você quer que eu resolva seus problemas com Lula?!? A discussão entre Marcelo e Emílio já levava alguns minutos, galgava os decibéis e ameaçava terminar mal. Então o pai sacou uma de suas frases-coringa: ?Rapaz, nós vamos ganhar muito mais lá na frente!?. Marcelo detestava quando Emílio dizia aquilo. Ouvira o mesmo nos embates das usinas do Madeira, quando tinham começado as perdas com etanol, e em várias outras ocasiões em que o grupo perdera dinheiro. E agora Emílio insistia em construir um estádio para o Corinthians, contra todos os obstáculos, só porque Lula queria".

Poderia preencher dezenas de páginas com pedaços interessantes do livro de Malu. Trata-se de um cartapácio, afinal. Mas seu enfrentamento é leve, apesar do tema pesado. Leia. Você precisa ler.

DAVID COIMBRA

16 DE JANEIRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

OS FORDECOS

O fechamento das fábricas da Ford no Brasil não é só um problema empresarial. Vai além e reflete uma situação da modernidade. O carro pessoal facilitou o estilo de vida, mas acirrou o individualismo e alterou o comportamento e a relação familiar.

Hoje, o carro é parte da família. É o "filho metálico", com aposento próprio na casa ou apartamento, que se deprecia sem garagem. A Ford foi pioneira no Brasil e está aqui há mais de um século. Nasceu dela até a velha forma de chamar o automóvel. Nos anos 1940-50, era comum dizer "tenho um fordeco da Chevrolet" ou de outra marca. "Fordeco" era a denominação de carro em si.

A tal "lógica do mercado" (ou a queda nos lucros e os prejuízos) levou ao fechamento. As "multinacionais" farejam o lucro fácil, mais do que nos desenvolver. Nos últimos anos, a Ford recebeu R$ 20 bilhões em isenções fiscais, mas investiu aqui muito menos do que isso. Agora, o gigante encurta as pernas para dedicar-se aos carros elétricos na matriz nos EUA. Os atuais, a gasolina, serão joias raras, disputadas no futuro como diamantes, mas não se produzirão.

O fechamento coincide com dois outros desastres. A pandemia e a decisão do Banco do Brasil de fechar centenas de agências e desfazer-se de 5 mil funcionários para dedicar-se ao atendimento virtual.

Eis aí uma mudança mais brutal que a da Ford, pois nos leva a um perigoso mundo desconhecido. A "virtualidade", em que a máquina substitui a presença humana, tende a nos fazer meros robôs, tristes objetos sem alma ou sentimento, que só sabem apertar botões. O telefone celular já mostra o poder dos botões que nos dizem tudo o que o sabichão Dr. Google nos indica como verdade absoluta e nem sempre verdadeira.

Não há mundo ou vida virtual. Nenhuma virtualidade substituirá jamais o amor, síntese de vida. Tanto no terno amor pela humanidade quanto no roçar erótico dos corpos, só há o concreto.

???

A maldade e a perversão social são concretas, também, mas se escondem, às vezes. Tal qual dias atrás, quando Bolsonaro reiterou que vai "armar a população", pois - disse à saída do Palácio - "a arma é liberdade". Assim, ele inocenta o horror e abre portas para que simples discussão no trânsito vire crime e morte.

Nada é mais perigoso, porém, do que os projetos que dão autonomia, de fato, às polícias militares estaduais, tirando o controle da sociedade exercido, hoje, pelos governadores.

As fábricas fechadas dos "fordecos" são, apenas, a moldura do imenso quadro infestado de cupim, colocado na sala como adorno.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

16 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

FORA DE FOCO

Manobras diversionistas fazem parte do jogo político, mas não podem servir de cortina de fumaça quando o Brasil chora mais de mil mortes diárias por covid-19 e Manaus agoniza diante da segunda onda da pandemia. Enquanto tenta enviar um avião para a Índia em busca de 2 milhões de doses de vacina, o ministro da Saúde, Eduar- do Pazuello, culpa a falta de tratamento precoce pelo caos na capital do Amazonas, onde mais de 300 pessoas aguardam por leitos, falta oxigênio nos hospitais e contêineres refrigerados recebem cadáveres à espera de sepultamento.

Militar experiente e de capacidade comprovada na sua atividade original, Pazuello peca ao não deixar claro que a maior motivadora da contaminação é a exposição ao vírus e que os riscos são bem menores com a adoção de cuidados conhecidos por todos, mas alvos de negação e de deboche por homens públicos que deveriam oferecer um exemplo construtivo e inspirador. Nem seria necessário repetir, mas, em meio ao negacionismo e ao oportunismo político, a insistência se faz necessária. Utilização de máscaras, distanciamento entre pessoas, uso de sabonete e álcool gel, somados à etiqueta respiratória, são atitudes simples e que, uma vez adotadas, reduzem em muito a necessidade tanto de tratamentos precoces quanto de UTIs.

O colapso de Manaus, por outro lado, contraria as teses amplamente divulgadas pelos defensores de uma suposta imunidade de rebanho, que teria sido adquirida durante a primeira onda da covid-19. Essas previsões, infundadas e irresponsáveis, prestaram um desserviço ao país, assim como gera dano a defesa intransigente de tratamentos sem qualquer comprovação científica como solução milagrosa para uma epidemia que já ceifou as vidas de mais de 200 mil brasileiros.

Espera-se de autoridades responsáveis e cientes do seu papel que liderem, em harmonia, o planejamento e a execução do enfrentamento à pandemia. No Brasil, esse esforço é pontuado por bravatas, inverdades e descalabros que legitimam campanhas contra a vacina e contra a ciência.

Quando, finalmente, surgem sinais de que a imunização dos brasileiros começará nos próximos dias, não há qualquer previsão sobre a data em que o processo estará concluído, o que devolveria ao país as condições necessárias para estancar as mortes e para retomar as atividades econômicas que garantiriam renda e dignidade a mais de 14 milhões de desempregados. Em vez disso, o que se vê é o rebaixamento da política a uma das suas dimensões mais rasas, resumida à disputa egoísta pelo protagonismo e pelo poder.

 


16 DE JANEIRO DE 2021
MARCELO RECH

O vento mudou

O refluxo na maré populista-ególatra-autoritária que varreu uma parte considerável do planeta na última década tem local, data e horário para o marco inaugural de novos tempos à frente. Às 14h da próxima quarta-feira, nas escadarias do Capitólio, o juramento de posse de Joe Biden representa muito mais do que uma troca de comando na nação mais poderosa da Terra. Por seu peso e significado, ele delimita o instante em que as correntes do “eu primeiro”, do nacionalismo exacerbado, das mentiras e conspirações e do estímulo ao ódio como forma de conquistar e manter o poder começam a deslizar para o acostamento da História. 

A posse não tem o condão de reverter instantaneamente, e em escala mundial, a política do rancor. Primeiro, Biden precisará absorver e neutralizar a cólera provocada pelo cultivo da desavença que rachou os Estados Unidos em duas metades que mal se falam e não se reconhecem mutuamente.

Apesar dos obstáculos, a Europa do pós-guerra comprova que a reconciliação é possível – e que a períodos de guerra e ódio intensos podem se seguir eras de prosperidade e grandes avanços da civilização. Dois exemplos: Alemanha e Japão, países nos quais a ambição e o desprezo por outros povos foram levados ao extremo, transformaram-se em símbolos da defesa da paz, da civilização e da estabilidade econômica mundial.

Como ocorre nos ocasos de períodos atribulados, o traumático e melancólico crepúsculo do governo Trump acelera as mudanças dentro e fora dos Estados Unidos. Com Biden na Casa Branca, saem as ofensas e humilhações de adversários, entram o diálogo e o respeito por posições contrárias. Saem também a impulsividade, a agressividade e a idolatria como forma de fazer política e volta-se a uma era de equilíbrio e moderação, que, pela força dos EUA, tende a isolar ainda mais os remanescentes do trumpismo.

Ainda é cedo para se definir como a Era Biden de ponderação e racionalidade vai impactar o Brasil, mas a nação é muito maior do que seus governos – sejam eles à esquerda ou à direita. É previsível, porém, que Jair Bolsonaro não terá vida fácil com os ventos da mudança que varrem o planeta. No tabuleiro externo, nem potenciais aliados fazem questão de ostentar proximidade com um presidente que desdenha de vacinas e vira o rosto para a devastação da Amazônia.

Para o imenso Brasil distante dos desvarios emanados do Planalto, o mais recomendável é reforçar a separação entre governos e nação. Tentar não ser desembarcado do comboio da História e deixar na estação o Brasil que trata discordâncias à base de pancadarias pelo Twitter já seria um bom alento.

MARCELO RECH

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