domingo, 10 de janeiro de 2021


09 DE JANEIRO DE 2021
MARCELO RECH

A Grande Peste de 2019/21

Estamos no ano de 2696, exatos 675 anos à frente. Historiadores da época ainda debatem as falhas na contenção da Grande Peste de 2019/21 e os comportamentos de alguns povos naquele início do milênio. Intriga-os, por exemplo, a recusa ao uso de máscaras que evitassem o contágio e a crença em medicações milagrosas, como um vermífugo, para prevenção da mortífera covid-19.

Os historiadores de 2696 procuram entender como se disseminavam certas crendices sem base na ciência, já relativamente avançada sete séculos antes. E tentam definir o grau de retardo no controle da doença em razão de governantes ambiciosos e populistas que se aproveitavam do desespero popular para propalar superstições e reforçar projetos de poder político. Especialmente estarrecedoras eram as concentrações de pessoas, a maioria jovens, que se aglomeravam em farras que iam até o amanhecer e que, desdenhando da possibilidade de levar a morte a outros, chegavam a enfrentar forças policiais destacadas para intervir naqueles festins macabros.

Agora vamos retroceder exatos 675 anos. Estamos em 1346, na Itália, por onde uma doença devastadora originada na China se introduz na Europa a bordo de galés de comerciantes genoveses. Viajantes espalham a praga, que chega a dizimar 600 pessoas por dia em grandes cidades como Veneza. Ao fim da peste, em 1352, mais de 20 milhões terão morrido apenas na Europa.

Os habitantes da Europa Medieval não imaginam, mas eles são vítimas de uma bactéria transmitida pela picada de pulgas hospedadas em ratos. Sem base científica, charlatães dizem que a doença passa pelo olhar, enquanto outros apregoam que o mal está no ar empesteado. Os poucos médicos sobreviventes receitam curas milagrosas, como poções de ervas, melaço e serpentes picadas, ou sangrias em que se furam os bubos - tumores inflamatórios de cor escura. No futuro, talvez por isso, o surto de peste bubônica viria a ser batizado de Peste Negra.

Apavorados, os que podem fogem das cidades e se isolam nos confins de florestas e montanhas remotas. Outros, segundo descrição de Boccaccio em Decamerão, desprezam a morte e vão à noite de taverna em taverna, em bebedeiras e farras desenfreadas. Os moderados procuram seguir uma vida relativamente normal, mas o preço de alimentos, como o trigo, dobra em Florença em seis meses. Para driblar a fome generalizada, a prefeitura distribui, em abril de 1347, rações de pão a 94 mil habitantes.

Melhor sorte têm os moradores de Milão, onde a prefeitura adota rígidas medidas de isolamento dos doentes, e de Nuremberg, na Alemanha, que determina uma extensa higienização de casas e ruas. Não por acaso, as duas estão entre as grandes cidades europeias menos atingidas pela peste.

De volta ao ano de 2021. Felizmente, 2696 é ficção e 1346 é passado.

MARCELO RECH

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