domingo, 10 de janeiro de 2021


09 DE JANEIRO DE 2021
ALICE BASTOS NEVES

Viva o outro! 

Já na abertura do aclamado filme AmarElo, Emicida canta: "Tudo que nós tem é nós. Tudo, tudo, tudo que nós tem é nós". Ele está falando de algo básico que garante a nossa própria existência: o outro. Quando a filosofia africana Ubuntu afirma: "Eu sou porque nós somos", está tratando de união entre raças, do combate ao preconceito e do fortalecimento da cultura negra. Mas também coloca luz em algo essencial: o outro. A música Me Conta da tua Janela, do duo AnaVitória, diz na letra "Eu vi o tempo parar, para a gente se lembrar da força que é alguém do lado": o outro. O mundo parou, o tempo parou, nós todos paramos e o maior aprendizado dessa vivência maluca em pandemia, para mim, foi dar ainda mais valor ao outro.

Por isso, é tão difícil ver tantas aglomerações recentes pelo país. O compromisso com a própria saúde é opção de cada um. Tive uma lição pessoal que mostra que prevenção é sinônimo de garantia de vida. Posso dividir minha história. Não posso obrigar ninguém a "comprá-la". Mas minha consciência alerta que devo criticar quando a liberdade individual de um fere a existência do outro. Quando se colocam em risco, as pessoas que se aglomeram arriscam a vida de muitos. A vontade satisfeita de um expõe o outro ao perigo de uma forma absurda e inaceitável. É um total descaso com o viver e conviver em sociedade, e à lei, afinal. Além do egoísmo de desconsiderar completamente a existência do outro.

Aí eu me pergunto e te pergunto: por que tamanha desconsideração com o outro? Não preconizo que devamos seguir todos enclausurados. E essa está muito longe de ser uma discussão política, deixando muito claro. Existem protocolos, estudos que mostram o que é seguro, basta cumprir. Se cada um fizer a sua parte, com responsabilidade e bom senso, todos ganham. Todos, sim, porque precisamos valorizar inclusive aqueles outros de que a gente não necessariamente gosta. Eles, principalmente, nos fazem evoluir. Nem que seja pelo exemplo negativo, do que não queremos fazer.

Provavelmente muito apaixonado, Leoni escreveu na canção consagrada pelo Kid Abelha o verso "depois de você, os outros são os outros e só". Só. Porque o ser amado superou, em muito, todas as outras experiências anteriores do compositor. Mas percebam que esse "só" se aplica apenas ao passado. No presente de cada um, o outro é mais do que necessário. É ele que nos fortalece.

Durante meu tratamento no enfrentamento ao câncer de mama, fui chamada de "guerreira", "forte", "inspiração". Abria um sorriso e pensava: se SOU, então SOMOS. Porque integro um time na vida. E poderia usar este espaço tão nobre do jornal para dizer aquele tão necessário "obrigada", mas ainda assim não seria suficiente. Agradeço, então, tentando devolver através da minha presença o que eles fizeram e fazem por mim. Estou sempre com eles e por eles. Eles sabem disso. E aqui faço o alerta.

Gente precisa de gente. Muito. Urgente. As relações de afeto que construímos são de nossa inteira responsabilidade e têm impacto em tudo o que vivemos. Nos momentos difíceis, são esses afetos que se multiplicam. E eles vêm em enxurrada. O mundo escancarou o quanto o contato físico faz falta. As lives, videoconferências, ligações e chamadas por vídeo foram os artifícios que encontramos para estar perto de alguma forma. Quanta adaptação. Ora! O outro importa. E muito!

Coexistimos, palavra bonita. Ou seja, só existimos porque o outro existe. E está ali para nos dar a mão. E rir com a gente. E chorar com a gente. E viver absolutamente tudo o que vier junto com a gente. Falamos muito em empatia, em se colocar no lugar do outro, de forma genérica, como algo de que necessitamos como sociedade. Eu acredito muito nesse conceito mais amplo. Mas agora estou falando daquela pessoa ali do lado. Do seu filho que está brincando aí no tapete da sala, de alguém que está na sua cozinha preparando uma comida quentinha, do companheiro que divide os dias com você e até daquele colega de trabalho mal-humorado que sequer te cumprimenta. Valorizem o seu outro. Principalmente seus outros de pertinho. São eles que te farão forte e corajoso quando precisar enfrentar o que for. De uma quimioterapia a uma pandemia.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 15/01 - ALICE BASTOS NEVES - INTERINA

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