domingo, 3 de janeiro de 2021


02 DE JANEIRO DE 2021
DANIEL SCOLA

Caminho para superar o conflito do nosso século

A jornalista e historiadora americana Anne Applebaum dedicou parte da sua carreira para pesquisar e escrever sobre os horrores do comunismo na União Soviética, os expurgos, as mortes e a fome que o regime produziu ao longo de décadas. Gulag, Uma História, de 2004, que ganhou o prêmio Pulitzer, é um minucioso exame histórico dos campos de concentração na Rússia. Anne foi editora e articulista da revista Spectator, um ícone do pensamento conservador britânico, defende os avanços reformistas do governo de Margaret Thatcher (1979-1990) e tem afinidade com figuras tradicionais do Partido Republicano dos Estados Unidos. No espectro ideológico, ela mesma se posiciona como "centro-direita", defensora de um sistema de democracia liberal.

Em 2020, ela deixou de lado o passado para escrever sobre o presente, com atenção especial para dois temas atuais e preocupantes: o autoritarismo e o populismo. No livro Twilight of Democracy, The Seductive Lure of Authoritarianism (O Crepúsculo da Democracia - A Atração Sedutora pelo Autoritarismo, ainda não lançado em português no Brasil) traça um quadro interessante sobre grupos políticos que, ao chegar ao poder, minam instituições, desafiam a democracia, interferem nas liberdades e promovem uma cisão da sociedade baseados em ideias nacionalistas. Seja na Polônia, governada pelo Lei e Justiça, partido de extrema direita; na Hungria, por Viktor Orbán e o seu partido, o Fidesz: na Venezuela chavista ou na América de Trump, ela consegue ver semelhanças nos métodos, seja à esquerda ou à direita. É um livro interessante, bem-escrito, aclamado pela crítica e atacado pelos radicais.

Me detive em um aspecto de comportamento que parece ter transformado a sociedade em 2020: a polarização. Não é um fenômeno recente. Ainda assim, nesse ano de pandemia, os polos ficaram mais distantes. O ponto de partido do livro é uma história pessoal da escritora, que é americana e há mais de 20 anos vive na Polônia. Na noite do Réveillon do milênio, ela e a família decidiram fazer uma festa para dezenas de amigos e familiares. Numa casa de campo, no interior do país, a virada para o ano de 2000 reuniu políticos, empresários, diplomatas e jornalistas que festejaram até o dia seguinte. Passados 20 anos, amizades se desfizeram por conta da política e aqueles que celebraram abraçados um novo milênio cheio de esperanças já não conseguem dividir o mesmo espaço e conviver em harmonia. A razão, ela sustenta, é a divisão estimulada, sobretudo, pelo partido que está no poder e transformou a Polônia numa das sociedades mais polarizadas do mundo. O retrato atual do país é realmente assustador, com a promoção aberta de ideias autoritárias, bandeiras xenófobas e teses paranoicas estimuladas por quem está no poder. Fico me perguntando o que ganhamos com isso? Por que, no lugar de debater, brigamos? Por que o consenso virou algo utópico, inalcançável? Ou, por que não podemos simplesmente discordar sem pensar na destruição de alguém? E mais: para onde todo esse ódio vai nos levar?

Ao expor o crescimento do populismo que semeia o ódio, Anne foi tachada de "inimiga do povo polonês", "espiã" alinhada com o comunismo. Logo ela, que construiu uma sólida carreira eviscerando o regime soviético. Aqui tem outro fenômeno comum nestes tempos, que são as teses baseadas em inverdades. Mentiras e ideias infundadas, sem comprovação, que muitas vezes são propagadas por agentes públicos ou órgãos oficiais. É outra praga do nosso tempo, que estimula a polarização.

Vimos isso em profusão nos últimos quatro anos nos Estados Unidos. Amanda Carpenter, estrategista política de políticos republicanos, identificou cinco passos das mentiras sustentadas por Donald Trump. O primeiro deles é "aposte em uma ideia" seja qual for, por mais absurda que possa parecer. Depois, propague a ideia, mas sem se responsabilizar pela autoria usando argumentos como "Alguém deveria verificar isso...". Na fase seguinte, cria-se suspense prometendo evidências sobre algo que nunca se confirma. O quarto passo é o ataque ao oponente, desqualificando qualquer um que criticar a sua ideia. Por último, anuncie a vitória no debate, mesmo sem ter razão. Soa familiar? O método Trump de promover o debate vingou por quatro anos. Em 2020, os Estados Unidos deram uma demonstração de que o modelo que promove a divisão entre "eles e nós" tem apelo, mas não é duradouro. Trump foi um dos poucos presidentes na história recente americana a não conseguir a reeleição.

Aqui no Brasil, o mais recente exemplo da nossa divisão é a tentativa de desacreditar as vacinas e questionar a capacidade da medicina e da ciência de encontrar uma saída para a pandemia do novo coronavírus. É um debate nacional, estimulado pelo presidente da República, que encontra eco numa faixa da sociedade já contaminada por notícias falsas. Ainda em Twilight of Democracy, Anne Applebaum oferece ao leitor uma explicação interessante. A ciência é o moderno, representa o progresso e é universal, e isso vai contra os princípios de quem quer dividir, os nostálgicos de um tempo passado, obscuro e retrógrado. A história mostra que conflitos assim são cíclicos. Um deles é caso Dreyfus, na França, em que um oficial do exército foi acusado injustamente de espionar para os alemães. Quando se provou que ele era inocente, já era tarde. Condenado com base em provas forjadas, o capitão Alfred Dreyfus foi considerado um pária e humilhado pelos franceses. Mais tarde, quando se descobriu a verdade, Dreyfus já era sinônimo de antipatriotismo e mesmo com provas de sua inocência, muitos franceses continuarem estimulando o conflito social sobre o traidor da nação. O caso Dreyfus serviu até mesmo como pretexto para justificar o antissemitismo dos franceses um pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

Ideias autoritárias dividem, polarizam e isolam as pessoas em campos diferentes cercados de arame farpado. Então, como reduzir a potência disso? Qual é a vacina? Anne Applebaum sugere que só o surgimento de novas "coalizões" que sejam mais plurais e representem melhor as comunidades em que vivemos poderá superar a polarização atual. Para ela, "juntos podemos fazer com que antigas e mal compreendidas palavras como ''liberalismo'' voltem a ter algum significado; juntos poderemos combater mentiras e mentirosos; juntos poderemos pensar em como deve ser a democracia na era digital". Que seja assim para reduzir a polarização que corrói as nossas relações.

INTERINO

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