domingo, 10 de janeiro de 2021


09 DE JANEIRO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

A INOCÊNCIA FELIZ 

Dizem que só os inocentes são felizes, aqueles que não sabem, os que, de certa forma, conseguem estar à margem e não absorver os acontecimentos. Ser feliz seria, portanto, ignorar a realidade.

Penso nisso com constância. Nessa máxima de que não é possível achar a felicidade consciente do mundo real. Que, diante do dilema entre saber e desconhecer para evitar que a dor nos invada, ficamos nessa gangorra de emoções.

Como ser feliz com a realidade que nos cerca? Aqueles que se blindam e ignoram o mundo propositalmente criam apenas um fosso entre eles e o resto e, ao cortar essa comunicação, sentem um imenso vazio. Não compreendem que o separatismo corta o fluxo de energia e ninguém será feliz sendo ilha pois, como disse John Donne, somos todos um grande continente.

Existem inúmeras realidades nesse planeta. Mas, como seres de percepção egocentrista, acreditamos que aquela que conhecemos como realidade é a única. E para proteger ou reforçar nossa visão, a tendência será ignorar todas as outras.

Classificamos como estranho, étnico, exótico aquilo que desconhecemos, o que não nos traduz. E só existe como real para nós o eco da nossa infância, origens, memórias sensoriais.

A realidade para quem nasceu no interior de Minas ou no norte da Lapônia, no sul da Irlanda ou nos pampas gaúchos, em Upolu na Samoa, em Katmandu, na Bósnia ou em Andorra, tem semelhanças? As lembranças de quem são mais reais?

Ou mesmo quem nasceu em alguma realeza, cercado de luxos descomunais, vai negar sua própria realidade?

Quem largou tudo para se fechar num convento ou viver num templo no alto do Nepal ou no Butão é fora da realidade?

Ser feliz sem motivo é a mais autêntica expressão da felicidade. No entanto, essa ideia se afasta de nós, quando a interpomos com as notícias diárias, com os pensamentos nefastos, com a crueldade do mundo.

Um verso de Drummond falava em manter a inocência mesmo depois de tudo tão atrozmente explicado. Sendo a tal inocência, assim como a felicidade, um ato de resistência.

Num mundo dividido em grandes fossos de desigualdade, miséria, vidas anuladas e a indiferença silenciosa, a mudança só será possível através da educação, da compaixão, da empatia. Somente uma mudança de valores intrínsecos pode ser transformadora.

Sem bons valores, se os oprimidos tomarem poder, se tornarão opressores, numa roda perpétua, onde a realidade se desloca, mas não muda, porque não mudou o pensamento, nem o sentimento.

Todos os dias vejo estarrecida no noticiário a dor do mundo, que também me dói inevitavelmente. Preservo minha inocência por acreditar que já começamos a mudança e que é possível. Acredito no processo e sei que podemos ser agentes de transformação e fazer uma pequena diferença na nossa vida e na dos outros.

Manter a inocência diante de tanta coisa significa criar o paraíso dentro de nós, mesmo se algum inferno estiver fora. Carregue o paraíso dentro de você e espalhe essa energia para que a realidade seja mais feliz. E que todos descubram um paraíso interior que os proteja.

BRUNA LOMBARDI

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