sábado, 27 de março de 2021


27 DE MARÇO DE 2021
LYA LUFT

Os bonzinhos

Não, não quero que me julguem boazinha. Nem em criança eu quis ser, embora tanto me exortassem, seja uma menina boazinha, fique quieta, não pergunte tanto, não corra tanto, não sonhe tanto, não desobedeça tanto... Eu achava os bonzinhos chatos, mas também não queria ser das piores.

Não sabia o que queria, e nem sei se hoje, tanto tempo depois, eu sei. Lembro de meu pai, quando lhe perguntávamos: "Pai, você quer alguma coisa?". A resposta era bem-humorada: "Quero o meu sossego".

Talvez seja isso que eu queira, embora há um ano exato em casa, por ser de alto risco, e por querer respeitar essa norma chata mas essencial, o meu sossego, embora tenha sossego demais. Concretamente talvez, mas a cabeça gira em conflitos, perplexidades, intervalos de paz. O que vai ser de nós se as coisas não mudarem depressinha para melhor? Há quem me elogie quando sou mais sincera, há quem julgue que eu devia "espalhar felicidade e esperança"... e lograr meus leitores, meus amigos imaginários, tão presentes na minha vida?

Não creio que otimismo demasiado seja uma boa arma nesta hora, que, com a quantidade de mortos, e a pouca perspectiva concreta, está mais para macabra do que felizinha. O meu recado deve ser entendido como CUIDE-SE.

Desde que comecei a escrever crônica de jornal e artigo de revista, e novamente crônica de jornal, tive o sentimento de que, se tenho voz, devo usá-la para algum fim realista: seja em poemas, seja em prosa, seja falando de amenidades, seja de assuntos como este momento de carnificina, cinismo, insanidade e perplexidade.

Então lá vamos nós, neste abre-e-fecha, faz-não-faz, pode-não-pode, morre-não-morre - mas pode ficar sequelado. Um dos meus mais amados amigos, fraterno, brilhante, generoso, ficou entubado meses, voltou para casa, com cuidadores, mas, me disse um deles outro dia, "nunca mais será o mesmo, aquele que a senhora conheceu não existe mais". E chorei por um morto ainda vivo, tão importante para mim e muitos.

Recebemos ordens contrárias, ou vagas, ou que a toda hora mudam, e assim facilitam a desobediência. Se ele não faz, por que eu tenho de fazer? Por que eu tenho de me privar, de sofrer? Porque de verdade é sofrimento, por exemplo, afastar-se da família. Meus sete netos e netas, mais a esposa de um deles, portanto oito, são uma de minhas maiores alegrias. Dia em que um vem almoçar, outro também, as presenças jovens, bonitas e amorosas, a amizade dos filhos, iluminam a casa, e a vida de alguém para quem família sempre esteve acima de tudo, mesmo quando falhei, bobeei, sei lá.

Está ruim, está chato, está cada vez mais assustador, e assustadoramente impreciso. O jeito é ficar quieto quando se pode, sair e trabalhar com o maior cuidado do mundo, sentir as mãos secas de tanto álcool, ter vontade de pular pela janela e voar nas nuvens, ou como disse uma amiga, praticar salto com vara quando era proibido pisar na areia, mas permitido banho de mar. E não me conformo com a expressão "distanciamento social". Sugere distância entre classes sociais, não é?

Palavras... importam.

LYA LUFT

27 DE MARÇO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Flower power

Em meio ao desespero pandêmico, foi baixado um decreto autorizando supermercados gaúchos a venderem apenas produtos essenciais - o que fosse supérfluo deveria ser coberto por um plástico ou qualquer outra coisa que impedisse o acesso dos fregueses. Entre os supérfluos, estavam equipamentos de áudio e vídeo, eletrodomésticos, presentes, artigos de decoração e flores.

Junte 10 pessoas (hipoteticamente, por favor) e pergunte o que é essencial a elas, e você escutará 10 respostas diferentes. Gestantes, veganos, freiras, nutricionistas, executivos, diabéticos, modelos - cada um elegerá o seu fundamental, seja alimento ou objeto. Isso sem citar o que nos é indispensável ao espírito: amor, fé, amigos, sol, arte - o verdadeiro império dos sentidos, sem os quais nem vale a pena levantar da cama de manhã.

Este longo preâmbulo é para dizer que costumo comprar flores no súper e só não fiquei nervosa com o novo decreto porque dias antes havia investido em orquídeas e elas duram bastante. Não sei como estão as coisas hoje. Os protocolos mudam tão rápido que talvez as floriculturas estejam abertas enquanto você lê este texto, e os supermercados estejam novamente comercializando astromélias, antúrios, margaridas. Não podemos comê-las, não são produtos de limpeza nem contribuem para a higiene pessoal, então seriam essenciais por quê?

Não pergunte a quem prescinde delas. Pergunte a quem, como eu, rastreia com o olhar qualquer ambiente, não em busca de um Van Gogh na parede, mas de um girassol junto à janela. Nasci nos anos 60, fui adolescente nos 70, tenho com o flower power uma relação de paz e amor que vai além das frases de camiseta. Nunca morei em casa, sempre em apartamento, e na falta de um jardim, trazia da rua qualquer pequena espécie que tivesse pétala, caule, cor. 

Quando fui morar sozinha, aos 20 e poucos, o dinheiro era contado, e entre leite e flor, comprava flor, nem que fosse uma violeta. Nunca tive nenhuma inclinação para a botânica, nem muito natureba eu sou, mas não lembro de nenhum momento em que as flores não me tivessem sido essenciais como representação de vida, de apreço ao belo, ao simples, à consciência dos ciclos: murchar e florescer, uma constância. Compreendo perfeitamente a importância delas num cemitério.

Os anos de paz e amor terminaram. Estamos vivendo num mundo doente, raivoso, violento. Nunca foi tão necessário contra-atacar com o alaranjado de uma gérbera, com uma azaleia cor de fúcsia, com o perfume de uma dama da noite, com um lírio branco e sua elegância, com buquês que declaram paixões, que pedem desculpas, que celebram aniversários, com flores valentes que nascem em meio às lajotas das calçadas ou entre as pedras de um muro e que, silenciosamente, imploram: basta.

MARTHA MEDEIROS

27 DE MARÇO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Não fotografei você na minha rolleiflex

Crianças, houve um tempo em que não se tirava foto assim, a torto e a direito - expressão que é de outros tempos. As famílias tinham, em geral, uma só máquina fotográfica, analógica, do tipo que funcionava se dentro dela houvesse um filme. Sim, antes a coisa era desse jeito. Além de o filme ser caro, para comprar precisava saber a asa, o índice de sensibilidade dele. E também precisava saber, em último caso, fotografar.

Crianças, houve um tempo em que não bastava apontar a câmera do celular e click, habemus foto. A câmera analógica exigia uma certa familiaridade com a imagem, o que nem todo mundo tinha. Filho com a cabeça cortada, árvore pela metade, cachorro tremido, noiva desfocada. Os arquivos de fotos analógicas, aqueles guardados em caixas com cheiro de décadas passadas, estão cheios desses registros tão sinceros quanto engraçados. Há mesmo quem nunca tenha conseguido tirar uma foto boa com câmera analógica na vida, entre os quais me inscrevo.

E havia os slides, que vinham da loja de revelação em montinhos de negativos separados das molduras brancas. Encaixar negativo na moldura podia levar uma tarde inteira de trabalho infantil, dependendo da quantidade. Os slides demandavam projetor e uma superfície clara para serem exibidos. Era um tal de tirar os quadros e as tapeçarias - caprichosamente bordadas pela mãe prendada ou por uma tia habilidosa - da parede da sala, deixando só os preguinhos. Que depois figuravam, inconvenientes, no olho de um primo ou no pastel que alguém comia na imagem.

Feito isso, família e amigos sentavam rapidamente para garantir um lugar no sofá ou nas cadeiras da mesa. Retardatários iam para o mochinho. Ao apagar das luzes, começava o 17º Festival das Férias em Capão da Canoa. Sim, porque os slides serviam unicamente para isso: mostrar as férias em Capão. Não sei o que as famílias faziam com o projetor no resto do ano. Talvez ficasse guardado junto com os enfeites de Natal, esperando o momento de brilhar.

Minha casa não tinha um projetor de slides, nem a gente passava férias em Capão. O que não nos livrava de ver as exibições anuais de parentes, amigos dos pais ou pais dos amigos, quando se dormia na casa de uma coleguinha de aula. O slide era a Netflix de então, cada imagem descrita em seus detalhes para uma audiência que, no final da interminável sessão, lutava contra o sono. Os muito novos e os mais velhos, já vencidos.

Nos slides alheios conheci praias próximas ou um tiquinho mais distantes, o antepassado de um parque de águas e até a freeway, grande novidade nos anos 1970, que um pai qualquer fotografou quilômetro a quilômetro, exibindo a viagem em stop motion para a plateia entediada. E se o cara continuou e é hoje um famoso cineasta experimental premiado em Berlim? Pena não lembrar o nome dele.

Crianças, o mundo na era do slide foi assim, mais amador, mais ingênuo, mais tosco. E, embora sem a tecnologia de agora, dá para acreditar que existia vacina para todos no Brasil? Infelizmente, ainda não havia flogão, vlog ou Instagram para provar. E eu sempre fui ruim na câmera analógica, nem retrato mal enquadrado tenho para mostrar.

Mas fotografei na memória, e imprimi nas marquinhas do braço. Essas posso comprovar.

CLAUDIA TAJES

27 DE MARÇO DE 2021
LEANDRO KARNAL

IMPOSTORES

A SÍNDROME DO IMPOSTOR/ DA IMPOSTORA É SINTOMA DE NOSSOS TEMPOS. COMPETIÇÃO EXTREMA, COBRANÇAS, TEOLOGIA DO EMPREENDEDORISMO, O MUNDO DAS REDES SOCIAIS E SEUS ESPELHOS QUE NOS MOSTRAM SEMPRE MAIS FEIOS DO QUE NOSSOS PARES.

Descobri, há pouco, a Síndrome do Impostor. Foi mapeada no final dos anos 1970 por psicólogas norte-americanas. O tema cresceu na pandemia. Trata-se de uma condição curiosa e terrível ao mesmo tempo na qual pessoas em posições de sucesso em seus empregos se sentem um embuste. Quem sofre dessa síndrome não consegue aceitar que é bem-sucedido pelos seus méritos. Pelo contrário, acha que ascendeu enganando colegas e chefes. Uma pesquisa da USP revela que a síndrome atinge todos, particularmente mulheres: quanto mais poderosas e respeitadas, maior a pressão por desempenho e, por isso, maior a ideia de que estão apenas enganando todo mundo.

A Síndrome do Impostor/da Impostora é sintoma de nossos tempos. Competição extrema, cobranças, teologia do empreendedorismo, o mundo das redes sociais e seus espelhos que nos mostram sempre mais feios do que nossos pares. Some isso a uma sociedade da performance, que Byung-Chul Han descreveu: vivemos em torno da ideia de aparentar superprodutividade, sempre lidando com excelência (no trabalho, no lazer, na vida sexual...), sempre comunicando.

A história é cheia de outro tipo, sem síndrome: são os "trambiqueiros" se passando por outro para ter vantagem. Alguns são tão notórios e com histórias tão insólitas que tiveram suas vidas biografadas e filmadas, como João Estrella e Frank Abagnale Jr. Ambos se fizeram passar por tanta gente que suas próprias personalidades parecem ser múltiplas.

Também notamos o candidato a alguém famoso, poderoso. Em 1578, o rei de Portugal, D. Sebastião, sumia em batalha no norte da África. Havia relatos que confirmavam que ele morrera junto de dois importantes líderes muçulmanos, igualmente em combate. Muitos juraram que ele sobrevivera. Durante as décadas seguintes, incontáveis Sebastiões apareceram reclamando o trono de Portugal. A maioria nem sequer falava português e acabou encontrando a forca e não a coroa. Mais curioso é pensar que alguns chegaram a ganhar apoio de nobres que juravam estar vendo as feições do jovem rei desaparecido. Em época anterior à fotografia e ao DNA, como comprovar que alguém era quem dizia ser? Confiando apenas na memória? Você acha possível, caro leitor e estimada leitora? Pois tente, sem ajuda de fotos, lembrar-se do rosto de alguém que não vê há 10 ou 20 anos e perceba que ele não é nítido. Imagine a pessoa, envelhecida pelas décadas, esfumaçada pela memória, batendo a sua porta e reclamando um abraço. Será ela mesma?

Pois, se entre a nobreza era possível, entre os comuns também. Esse dilema foi vivido numa pequena vila francesa em 1560, na qual um homem, Martin Guerre, afirmava ser um antigo morador que fora à guerra anos antes. Ele foi reconhecido pela esposa, sobre quem sabia detalhes íntimos, e morou com ela por muito tempo, tendo filhos. Anos depois, foi desmascarado e morto. A esposa sempre afirmou preferir o impostor ao verdadeiro. Essa história foi narrada magistralmente pela historiadora Natalie Zemon Davis, virou filme com Gérard Depardieu no papel do Martin impostor. O cinema norte-americano adaptou a história para a Guerra Civil no filme Sommersby (O Retorno de um Estranho, 1993), com Richard Gere e Jodie Foster.

O Delfim, príncipe Louis-Charles, filho de Luís XVI e de Maria Antonieta, morreu em decorrência de maus-tratos, aos 10 anos, na prisão. Era 1795. Ele foi enterrado sem cerimônia, na lógica de que pertencia aos inimigos da Revolução, dois anos depois da decapitação de seus pais. Pois tão logo a guilhotina sossegou e o furacão Bonaparte sumiu, candidatos a herdeiro pipocaram. Mais de cem deles. Todos queriam a coroa e afirmavam ser o jovem herdeiro que ninguém mais vira, alegando que haviam fugido ou sido soltos. A França teve que criar uma lei proibindo que pessoas se apresentassem ao cargo! Pois, em 1817, um sujeito vindo de Nova Orleans foi preso em Paris, para onde tinha ido reclamar seu trono por direito. Morreu na cadeia. Pelo menos nisso se pareceu com o malfadado Luís XVII.

O mesmo se passou com outra família de sangue azul muito conhecida. Os Romanovs foram fuzilados em um porão obscuro. Candidatas a uma das quatro princesas não faltaram. O mesmo para o czarevich Alexei, um menino hemofílico que era o herdeiro direto da coroa. De todos esses impostores, a que mais fama ganhou foi a polonesa Franziska Schanzkowska, também conhecida como Anna Anderson, que chegou a ganhar notoriedade e admiradores como a princesa Anastásia. A lenda de que a mais nova das meninas havia sobrevivido se tornou incontrolável e até desenho animado da Disney foi produzido explorando a vida que ela teria levado. Em 2008, exames de DNA confirmaram as ossadas encontradas como sendo da família imperial e eles foram sepultados com a lenda de que haviam sobrevivido miraculosamente.

Toda moeda tem anverso e reverso. Talvez, caso você se sinta um impostor e tenha vergonha disso, na verdade, caro leitor e leitora, você já demonstra caráter. Provavelmente, está errado. Por outro lado, caso você se sinta um impostor e tenha certo orgulho de enganar os outros, lembre-se, você tem companhia histórica bem mais competente. Boa semana a autênticos e a impostores. No fundo, somos todos humanos.

LEANDRO KARNAL

27 DE MARÇO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

BRASIL ESTRUTURAL

O livro de Sílvio de Almeida, Racismo Estrutural (2018), atualizou o debate sobre a violência no Brasil, a partir da análise de um dos horrores de nossa sociedade, o racismo histórico. Essa obra concede lucidez para encararmos desafios éticos inadiáveis e, ao mesmo tempo, recoloca em circulação a palavra estrutura, que tem longo histórico nas Ciências Humanas. Assim, como parte da estrutura desta crônica, pergunte-se: o que pode significar estrutura, para a análise das sociedades?

Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) usaram o termo estrutura para contrastar dois níveis da sociedade, a partir da base (em alemão, Bau), ou infra-estrutura, em que o embate nas relações de produção decide a natureza do regime social; é onde a luta de classes tem dimensão econômica. Em livro de 1859, Marx designou como superestrutura (Überbau, edifício) o conjunto de relações sociais determinadas pela base, tais como a cultura, a religião, a política, as instituições, os papéis sociais e a forma do Estado. 

O conceito de ideologia complementa essa descrição, e foi consagrado no livro Ideologia e os Aparelhos Ideológicos do Estado (1970), de Louis Althusser (1918-1990). Desde então muita coisa mudou, mas intelectuais atuais, como o francês Thomas Piketty (que o Fronteiras do Pensamento trouxe a Porto Alegre em 2017) tratam de revisar e difundir o valor desses conceitos, que nos permitem compreender porque o Brasil é a pátria da iniquidade e da miséria - e não é por falta de riqueza, mas sim pela forma com que esta é apropriada e concentrada.

Paralelamente, os estudos etnográficos e linguísticos aplicaram o conceito de estrutura para analisar comparativamente fatos culturais, encontrar invariantes e descrever regras. Assim compreenderam-se muitos fatos, memórias e comportamentos, como se lê, e.g., no livro The Hero (1936), de Lord Raglan (1885-1964), em que o mito do herói é decomposto em 22 episódios que evidenciam a estrutura de narrativa que aproxima a muitos personagens do folclore e da literatura, como Moisés, Édipo, Rômulo, Jesus, Arthur e outros. Aqui, estrutura significa um quadro de regularidades que ordenam os discursos e os fenômenos culturais.

A revolução no uso desse termo veio no livro Antropologia Estrutural (1958), de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), onde demonstra-se como funciona um quadro comparativo de narrativas heterogêneas, em que cada episódio dos mitos é desmembrado e alocado em uma posição correlativa, em uma grade com várias linhas e colunas. Ao final, as histórias comparadas produzem explicação complementar e esclarecem sentidos. Vê-se então que o racismo estrutural, além de entranhado nas instituições e na história, é também parte de um quadro maior em que atuam a tradição oligárquica, a iniquidade, o machismo, a homofobia e, claro, o genocídio.

As estruturas explicam o poder dessa herança triste, mas não nos eximem de discordar dos erros e lutar por uma história em que todos os quadros possam apresentar paisagens iluminadas pelo Sol do respeito, da solidariedade e da harmonia. Com arte, ciência e humanismo, sempre.

FRANCISCO MARSHALL
27 DE MARÇO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

A VARIANTE INGLESA

Há mais dúvidas do que certezas sobre a agressividade das novas variantes do coronavírus.

A discussão que acontece agora no Reino Unido vai nos ajudar a entender o impacto da variante P1, brasileira, identificada em Manaus, mas já presente em São Paulo e em outros Estados.

Algumas semanas atrás, o governo britânico lançou a advertência de que a variante B.1.1.7, descrita em setembro do ano passado, além de ser mais contagiosa, aumentaria o risco de morte pela covid, quando comparada às que circulavam no país antes dela.

Smriti Mallapaty faz uma discussão sobre o tema para a revista Nature. Em 3 de fevereiro, pesquisadores da célebre London School of Hygiene & Tropical Medicine surpreenderam o mundo, ao estimar que a nova variante aumentaria o risco de morte em cerca de 35%.

Segundo eles, o risco de óbito na população de 70 a 84 anos aumentaria de 5% nos infectados pela variante anterior para 6% nos infectados pela B.1.1.7. Já nos homens com 85 anos ou mais, esses números passariam de 17% para aproximadamente 22%.

Nicholas Davies, epidemiologista da London School, analisou os dados de 850 mil pessoas com PCR-positivo para o coronavírus que estavam em acompanhamento ambulatorial no período de primeiro de novembro a 11 de janeiro. Davies mostrou que a nova variante estava associada à mortalidade mais alta em todas as faixas etárias, em mulheres e homens, e nas diversas etnias.

Não há unanimidade na interpretação desses resultados, no entanto. Os críticos se referem a três aspectos: 1) o número de mortes entre os mais jovens foi pequeno para concluir que a mortalidade aumentou nessa faixa etária; 2) o estudo não levou em consideração a existência de comorbidades, como diabetes e obesidade; 3) na análise, foi incluída apenas uma pequena fração do total de mortes ocorridas no Reino Unido: 7%. Os resultados poderiam ser diferentes, se fossem considerados os pacientes hospitalizados.

Resultados preliminares publicados por outros grupos não mostraram aumentos de mortalidade entre pacientes infectados pela nova variante internados nos hospitais ingleses. É possível que B.1.1.7 cause doença mais grave, aumentando o número de internações, mas que o risco de óbito seja igual ao da variante anterior, predominante no início da epidemia.

Pode haver outra explicação: como essa variante é mais contagiosa, ocorre aumento do número de casos graves, portanto mais mortes nas UTIs sobrecarregadas, com dificuldades de atendimento.

Os autores do estudo refutam essa conclusão, com o argumento de que os riscos de morte das duas variantes foram analisados em pessoas testadas no mesmo período e nas mesmas localidades, atendidas em condições hospitalares semelhantes.

É muito provável que a mesma discussão seja válida para a variante de Manaus, que já se espalha pelo país. Seja qual for a explicação, entretanto, a persistência da epidemia garantida pelas aglomerações de irresponsáveis que não usam máscara potencializa o risco de emergirem mutações mais perigosas.

DRAUZIO VARELLA

27 DE MARÇO DE 2021
MONJA COEN

A AGENDA BUDA

Em 2015, lideranças internacionais se reuniram na Organização das Nações Unidas e criaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Aprendi com um jovem brasileiro, na cidade de Coimbra, em Portugal, que desenvolvimento significa não estar envolvido. A partícula des é uma negativa.

Por isso sugiro outro título: Agenda Buda para o Envolvimento de Todos com Todos - só assim poderemos assegurar uma vida saudável e o bem estar coletivo.

Houve um monge chinês, no século 7, chamado Gensha Shibi. Ele dizia: "Tudo que existe é uma joia arredondada sem dentro nem fora. Somos a vida dessa joia". Ou seja, somo a vida do planeta Terra.

Tomei a primeira dose da vacina. Agora espero que pelo menos 70% da população mundial seja vacinada. Só então ficarei bem. Só quando todos estiverem a salvo estarei a salvo também.

Estamos interligados a tudo e a todos. Acorda, gente! Acorda! É hora de juntos virarmos o jogo. Podemos ganhar desta pandemia. Fique em casa.

Chamamos no budismo de bodaisatva um ser desperto que reconhece aspectos de si mesmo em cada criatura e por isso cuida, respeita, quer o bem. Cuidar dos pequeninos, dos recém-nascidos, promover a cura para epidemias, evitar mortes prematuras, trabalhar na prevenção e tratamentos, promover saúde mental e bem- estar, sem abuso de drogas entorpecentes, sem abuso de bebidas alcoólicas, reduzindo as mortes por acidentes nas estradas, educando e desenvolvendo planejamento de reprodução saudável - itens da Agenda 2030.

É preciso cuidar dos mais frágeis. É preciso cuidar de todos. Todos cuidando de todos.

Hoje, em meio a pandemia do coronavírus, o Brasil se tornou o epicentro da crise: somos nós sofrendo, morrendo, lamentando. Somos um perigo para o mundo. Todos precisam estar bem. Todos, caso contrário o vírus se fortifica e nós nos fragilizamos - física, econômica e emocionalmente.

Tantas pessoas que não despertaram. Piedade!

Compreendo os jovens que querem estar juntos. Compreendo o medo e a ansiedade quando nem mesmo as vacinas darão um ponto final ao uso das máscaras e do isolamento. Contas chegando, dinheiro faltando, falta de medicamentos e de pessoal da saúde.

Festas, aglomerações e gente morrendo sem ar, sem comida, sem afeto. Raiva crescendo, insatisfação e crimes aumentando. Será que vamos sair dessa? Quando? Um mês, um ano, 10 anos?

Quero esquecer, não lembrar... Impossível! Aprender a conviver, sem reclamar e reaprender a cuidar. Paredão do Big Brother Brasil. Estamos todos lá, trancados. Só que alguns sem comida, sem roupas e doentes sem cuidados necessários.

Gente, está feio. Vamos mudar o cenário? Podemos? Certamente.

Vamos nos envolver mais com o afeto, o cuidado e a cura. Vamos chamar a alegria e a ternura. A sabedoria e a compaixão. Vamos juntos atravessar, atravessando. Que todos possam obter a mesma sabedoria dos seres iluminados e benfazejos e possamos viver em harmonia e respeito, através da Agenda Buda para o Envolvimento de Todos com Todos.

Mãos em prece 

MONJA COEN

27 DE MARÇO DE 2021
J.J. CAMARGO

PANDEMIA MORAL

A IMPUNIDADE DOS PODEROSOS É UMA DOENÇA PARA A QUAL JÁ NOS CONSIDERÁVAMOS VACINADOS

Antes da tragédia do morcego malpassado, eu viajava muito. E em cada país diferente me aprazia falar com as pessoas do povo, a começar pelo motorista de táxi, este modelo de cultura oral, que de tanto ouvir as opiniões alheias passa a defendê-las, e com tal convicção, que um desavisado poderia acreditar serem criações dele mesmo.

Como um brasileiro curioso, sempre me interessei em investigar o que mundo pensava de nós, como país. Depois de décadas em que o papo se resumia em reconhecer a habilidade dos nossos jogadores de futebol, de repente mostramos ao mundo para uma originalidade capaz de encher de inveja os nossos históricos detratores: tínhamos em marcha uma operação corajosa a ponto de denunciar os poderosos que, se descobriu, tinham mudado a cor do colarinho, agora encardido pelo suor gorduroso do flagrante, que nada os distinguia dos marginais arrestados pela polícia que cobrem a cabeça tentando poupar a mãe do resíduo de vergonha que alguns ainda sentem.

E havia um orgulho incontido quando confirmávamos que o pasmo do mundo era justificável, porque depois das denúncias, os noticiários da TV, todos os dias, documentavam os delinquentes sendo despertados do sono leve da impunidade, e com olhos esbugalhados e cabelos revoltos, serem conduzidos para uma viatura preta por um tipo de aparência oriental, a sugerir o fim da apatia tropical no combate ao crime, que durante muito tempo fora a atividade líder em organização no Brasil.

Sabíamos os nomes de todos os juízes e sentíamos orgulho deles. Depois de cada captura, perdurava a sensação gratificante, como se nós, simples mortais, tivéssemos empurrado o ferrolho da cadeia. E íamos dormir com a curiosidade aguçada: "Quem será o próximo?".

Lembro de uma noite em que assisti a um depoimento eufórico de ex-presidente Collor, que tinha sido inocentado por um tribunal, acho que chamavam de superior, em razão das provas terem sido obtidas através de escuta não autorizada. Aquele discurso ufanista deixou uma sensação de mal-estar, porque não mais se negava as acusações, pois as provas continuavam lá, irretocáveis, mas sim pela evidência de que a estratégia de desmascaramento tinha sido tecnicamente incorreta. Tente explicar ao cidadão comum o que é mais importante e entenderá a indignação dele. Passam-se poucos anos, e a história se repete, como sói acontecer com esse hábito nefasto que ela tem de replay. Mesmo quando a novela não tem nada que aponte merecer o Vale a Pena Ver de Novo.

Depois de centenas de apreensões, dezenas de delações premiadas, muitas prisões de políticos e empreiteiros corruptos, comprovação de desfalques monumentais em empresas públicas, desvio de bilhões para financiamentos espúrios no Exterior e, o mais importante, devolução após resgate de valores astronômicos para o patrimônio da União, eis que num lampejo de clarividência um magistrado, em decisão solitária, contrariando observação prévia do colegiado a que ele pertence, toma para si a tarefa de considerar que todas as denúncias comprovadas à exaustão devem ser ignoradas porque o tribunal que as julgou não era o adequado. Uma descoberta chocante porque significa que, face a uma incrível distração coletiva da suprema corte, ela demorou cinco longos anos para ser percebida!

Espera-se que o brasileiro, que sempre foi um povo pacífico, tome o caminho das urnas para expressar sua indignação. E comecem a se manifestar assim que controlarem a náusea da humilhação aqueles que, ingenuamente, acreditavam que ética e justiça eram sinônimos.

Este país, tão sofrido pela pandemia, não fez nada para merecer a recidiva dessa doença para a qual já nos considerávamos vacinados, e agora nos querem fazer acreditar que caímos no grupo placebo.

J.J. CAMARGO

27 DE MARÇO DE 2021
DAVID COIMBRA

Como descobri minhas duas qualidades

Um dia, uma amiga me contou que havia acordado nua, numa cama estranha. Na noite anterior, ela fora a uma festa e talvez tivesse bebido demais. Não lembrava como saíra do lugar, só lembrava que estava alegre e que se sentia sensual.

Então, corta. A cena seguinte era aquela: ela com-ple-ta-men-te nua, nuinha, nuíssima, numa cama que não conhecia, num quarto que não conhecia, num apartamento que não conhecia, com ninguém por perto para contar o que, afinal, acontecera.

Adorei a história da minha amiga e escrevi um pequeno conto baseado nela, e o publiquei em Zero Hora.

Doutra vez, outra amiga fez um desabafo acerca de seu namorado. Ela gostava do rapaz, estava tudo certo com ele e entre eles, exceto por um ponto: o sexo. Não que o sexo fosse ruim, nada disso, não era. Mas era imutável. Ele sempre começava beijando-a na boca e, em seguida, apalpava-lhe o seio esquerdo, para depois descer em direção ao entrecoxas. Sempre, sempre, sempre esse roteiro. "Por que ele não varia?", minha amiga perguntava. "Por quê?" Ela estava aflita.

Também sobre esse drama escrevi um continho, e o publiquei em Zero Hora.

Houve um tempo em que explorei bastante essas histórias, o que me dava boa satisfação. Depois, mudei. A gente muda, o mundo muda, não dá para fazer tudo do mesmo jeito o tempo todo, como fazia o namorado da minha amiga. Mesmo assim, me orgulho dos meus contos e crônicas a respeito de mulheres e sei que os leitores se divertiam com eles.

Por isso, elegi o tema "mulheres" para uma publicação especial que será lançada em breve. Mas não só esse. Há outros. Aí é que está. A Ana Karina, uma das poderosas editoras de GZH, me ligou, dias atrás, pedindo que selecionasse quatro temas para uma espécie de livro virtual que GZH vai lançar com meus textos. São 20 crônicas ou contos de cada assunto.

Essa proposta me mobilizou. Porque considerei importante escolher bem as quatro áreas que reivindicava a Ana Karina. De alguma forma, essa definição me definiria. Quais são minhas zonas de interesse? Bem você sabe que atuo constantemente na política e no futebol, mas a política não me comove. Ao contrário, sinto certa repulsa pela maneira como agem os políticos brasileiros.

De futebol eu gosto, mas não é do que MAIS gosto.

Livros, talvez? Ah, decerto que vivo cercado de livros. O livro é o único objeto que cobiço e compro com vontade. Volta e meia sinto ganas de escrever listas de livros preferidos ou trechos de romances ou contos ou crônicas ou até de poemas. Que tal Pronominais, do Oswald de Andrade?

"Dê-me um cigarro 

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro".

Há diversos elementos que aprecio nesse poema, mas não escrevo a respeito, porque não sou crítico literário. Nem de cinema, como é o meu amigo Ticiano. Assim, não posso relacionar o cinema e o livro como temas favoritos da minha escrita. Não são, ainda que tenha paixão por ler livros e assistir filmes.

Quais seriam, então, os outros três assuntos que me definiriam? Revelarei, leitor, e, fazendo assim, revelo muito de mim. São os seguintes:

Amigos, comida e filho. Sou um cara que gosta de comer bem. O que não é qualidade, é característica. Mas, ainda que eu não preste para nada mais, sei que possuo dois predicados nessa vida: sou um amigo leal e um pai dedicado.

Portanto, se quiser me elogiar, pode dizer isso de mim, caro leitor: "Ele é bom pai, ele é bom amigo. E foi um esforçado ponta-direita recuado nos tempos do IAPI".

DAVID COIMBRA

27 DE MARÇO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

O MAL REUNIDO

Há momentos em que os absurdos brotam por todos os lados, reunindo maldade e horror. Agora, por exemplo, a pandemia se propaga e ataca com diferentes cepas, fazendo da tétrica "média móvel de mortes" um hábito diário.

Mas o tumor do horror cresce, também, por atos dos que deveriam ser guardiães da ética, como a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal declarando o então juiz Sergio Moro como "parcial" ao condenar o ex-presidente Lula da Silva. O inexplicável foi a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia, que desfez o que fizera e, de repente, entendeu que o juiz foi "parcial".

A Lava-Jato foi ferida no cerne. A sentença que descobriu o conluio sórdido entre políticos e grandes empresários é algo de um passado que já não existe, após o STF decidir que surgiu da "parcialidade do juiz".

Os absurdos vão além. O orçamento do governo federal para 2021 destinará para gastos militares um quinto do total a ser aplicado por todos os demais ministérios. Irão a R$ 8,3 bilhões, como propôs o senador Márcio Bittar (MDB-AC), seguindo a proposta do governo, para construir submarinos, comprar aviões-caças e blindados, como se nos preparássemos para uma guerra, que não é, porém, contra a pandemia.

Enquanto os funcionários civis estão com salários congelados, o orçamento prevê aumentos para os militares a consumir outros bilhões. Só o devastador aumento da pandemia, porém, nos fere tanto no Rio Grande quanto a decisão do governador Leite de vender a Corsan, como se fosse bodegueiro de bairro.

Esqueceu-se de que água é vida e que o direito à vida não tem proprietários. A Corsan é lucrativa e eficiente e nos últimos quatro anos deixou mais de R$ 1,2 bilhão de lucro ao Estado, como lembram seus funcionários.

Em mais de 55 anos, a Corsan é modelo de gestão em todo o país. Atingiu o pico no governo Jair Soares, ao concluir o canal em concreto de 26 quilômetros (um dos três maiores da América Latina) para abastecer a cidade de Rio Grande, tratando 2 mil litros d´água por segundo.

Em Porto Alegre, em 1985-86, a gestão Jair executou 200 quilômetros de esgoto cloacal, até então quase todo jogado no Guaíba. Em Tramandaí e Capão da Canoa, os esgotos deixaram de ser despejados na areia. Em Santa Maria, além do abastecimento de água, construiu-se a maior estação de tratamento cloacal do Estado.

Tudo isto é só um exemplo do que a Corsan realizou, e que (em distintos graus) continuou noutros governos. Permitiremos que, agora, o mal se reúna em convenção nacional?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

Gerdau assina carta crítica ao governo

O manifesto nascido em um grupo de economistas sustentando que "a necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliada" ganhou um apoio de peso no Rio Grande do Sul: Jorge Gerdau Johannpeter. A informação foi confirmada pela coluna com interlocutores do empresário. Até agora, o gaúcho mais conhecido entre os integrantes do grupo era o ex-secretário da Fazenda Aod Cunha, que fez parte da equipe que redigiu o documento.

Quem confirmou à coluna o apoio de Gerdau foi o próprio Aod, que integra o conselho de administração do grupo siderúrgico. Para o ex-secretário, o empresário disse que considerou a carta "bem equilibrada". Embora haja críticas claras ao governo Bolsonaro no texto, são respeitosas e se referem aos atos, não à pessoa:

"O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre."

O texto não ignora que parte dos problemas econômicos foi causada pela covid, mas acentua que falta gestão: "Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal" (destaque da coluna).

em medida inusual para empresas desse porte, A Agência Euro criou um Conselho Consultivo. o objetivo é fortalecer a gestão da empresa de comunicação e indicar entidades sem fins lucrativos para apadrinhamento e destinação de 1% do valor do contrato de cada novo cliente às instituições. A Euro também passará a atuar na legalização dessas entidades, com suporte contábil e jurídico.

400%

é o quanto as despesas militares estão acima das previstas para a área da saúde em 2021, no orçamento do governo Bolsonaro aprovado na quinta-feira no Congresso. Técnicos dizem que o texto aprovado é uma peça de ficção, dado o desencontro entre receitas e despesas previstas. Ficção de horror, pelo jeito.

MARTA SFREDO 

27 DE MARÇO DE 2021
MARCELO RECH

Daqui a um ano

Iludido pela bolha de aplauso permanente, o presidente Jair Bolsonaro cometeu um dos maiores erros políticos da história recente brasileira. Ao negligenciar a angústia nacional por imunização contra a covid-19, Bolsonaro derrapou em uma distorção primária: tomou fanatizados que viam complôs nas vacinas como se fossem a opinião pública, e passou a espezinhar quem defendia a vacinação mais rápida possível do maior número de brasileiros.

Alguém que tivesse tropeçado em tal erro de estratégia em meio a uma guerra que custa milhares de vidas diárias deveria estar fadado ao limbo político. Mas é precipitado subestimar Bolsonaro e sua máquina de construção de narrativas que se propagam por redes sociais e grupos de mensagem. Quando as pesquisas alertaram para o fato de que a aflição central dos brasileiros não era uma suposta obrigatoriedade de vacinação, mas a escassez de vacinas, o presidente recalibrou seu discurso. Desde então, procura se passar por um campeão das vacinas e se ufana de o Brasil ser o quinto que mais imuniza no mundo (embora lute para ficar entre os 60 primeiros em doses por habitante).

Uma pesquisa da Ipsos e do Fórum Econômico Mundial em fevereiro passado auscultou a disposição de 15 países em se vacinar, e triturou a resistência de Bolsonaro. Apenas o Reino Unido (com 89% dispostos a se vacinar) está à frente do Brasil (88%) O desprezo inicial de Bolsonaro às vacinas teria tido algum eco na Rússia (42% de disposição) ou na França (57%), mas não em um país em que é raro não se conhecer alguém que tenha morrido de covid-19.

Não importa se assentadas sobre uma realidade alternativa, as tais narrativas é que constroem hoje o chamado imaginário popular. Lula, por exemplo, passou a apregoar que foi inocentado e pula todos os trechos que possam rememorar sua relação promíscua com empreiteiras. Bolsonaro vai na mesma linha. Sem ruborizar, suas redes repetem agora que ele se esmerava em conseguir vacinas desde março de 2020.

Mais do que o presente, Bolsonaro mira o eleitorado daqui a um ano, quando esquentar o debate eleitoral. Até lá, o país deverá estar plenamente imunizado, mas o sofrimento dos mais pobres com a crise econômica seguirá latente. No Brasil, a memória é curta. No segundo trimestre de 2022, Bolsonaro espera que as mortes e as negligências sejam passado e que a elas se sobreponha a narrativa de que sempre esteve ao lado das vacinas e de quem mais precisava de renda.

É um cálculo político arriscado, mas que só precisa convencer um terço do eleitorado para colocá-lo no segundo turno contra, provavelmente, Lula, seu adversário ideal. A estratégia naufraga na hipótese de uma terceira via, e é por isso que qualquer cabeça moderada que se levante levará sempre cipoadas imediatas das redes de Bolsonaro.

MARCELO RECH

27 DE MARÇO DE 2021
J.R.GUZZO*

Uma aberração que chamam de justiça

O STF levou o Brasil e os brasileiros a viverem neste momento numa situação de absurdo permanente, em que as leis deixaram de existir como um conjunto de normas estáveis, previsíveis e válidas para todos - e na qual tornou-se impossível, para o cidadão comum, acreditar que exista justiça.

Como poderia ser diferente? Os processos penais que tiveram mais sucesso em toda a história nacional, atingiram de verdade a alma da corrupção e mandaram dezenas de ultrapoderosos para a cadeia, inclusive um ex-presidente da República, foram anulados com o único resultado visível de beneficiar Lula - e permitir sua candidatura, de novo, à Presidência da República.

Pior: a ministra Cármen Lúcia anulou o voto que ela própria tinha dado num primeiro momento, este desfavorável a Lula, para vir com um outro, novo em folha e afirmando exatamente o contrário: o culpado de tudo, diz Cármen agora, é o então juiz Sergio Moro, que mandou os ladrões para a cadeia. Pelo seu decreto, baixado em acordo com os chefes da facção pró-Lula do STF, Moro é "suspeito".

Ficamos assim, então: quando a Justiça brasileira, enfim, consegue punir a corrupção, obter confissões públicas dos ladrões, colocar gente rica na prisão, vem o STF e diz que tudo isso está errado. O culpado é reconhecido como mártir e herói: o magistrado que teve o trabalho e a coragem de enfrentar os bandidos é quem está errado. Como é que algum cidadão racional vai acreditar que uma aberração dessas é "justiça"? Os políticos podem fazer quantos discursos quiserem; os "especialistas" entrevistados pela mídia podem preencher o horário nobre durante um mês inteiro. Nada vai convencer ninguém, salvo quem quer ser convencido, de que o STF tornou-se uma degeneração.

A população brasileira está privada da proteção da lei; se ela vale para uns e não vale para outros, ninguém está seguro, a não ser os amigos dos magistrados supremos. É um desastre. A maioria das pessoas, que têm de cuidar da própria vida, é indiferente aos disparates do STF: os que param para pensar um pouco abandonam, cada vez mais, qualquer esperança de viver um dia num regime em que as leis sejam de fato aplicadas. Em qualquer dos casos, não haverá ninguém, nem hoje e nem nunca, para defender um tribunal que abandonou as suas funções e virou um escritório de despachos para atender aos que mandam no país.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO*


27 DE MARÇO DE 2021
INFORME ESPECIAL

A missão que mobilizará centenas de militares do RS

Na primeira quinzena de maio, o tráfego de aviões entre o sul e o norte do país terá reforço. A bordo das aeronaves, cerca de 600 militares do Rio Grande do Sul se somarão a uma missão iniciada em março de 2018. A Operação Acolhida, autorizada pelo presidente da República, tem como objetivo evitar que a vulnerabilidade de Roraima diante do fluxo de refugiados venezuelanos, que continuam a cruzar a fronteira apesar da pandemia, se transforme em um drama humano ainda maior. O 11º contingente ficará no norte do país entre 15 de maio e 14 de dezembro.

Na chegada, os venezuelanos passam por uma série de controles e exames, recebem lanches e atenção especial. Tudo em coordenação com diversos órgão, que vão da Polícia Federal ao Ministério da Saúde. Depois são encaminhados a um abrigo temporário e, mais tarde, enviados a várias regiões do território nacional. Até o momentos, 6.471 venezuelanos foram acolhidos no Rio Grande do Sul. As cidades que receberam famílias de refugiados são Antônio Prado, Cachoeirinha, Canoas, Caxias, Chapada, Esteio, Pelotas, Porto Alegre, Santo Antônio da Patrulha, Santana do Livramento, Sapucaia, Sarandi, Tramandaí e Viamão.

TULIO MILMA

sábado, 20 de março de 2021


20 DE MARÇO DE 2021
LYA LUFT

O jardim secreto

Nestes tempos amargos, assustadores, com a luzinha da esperança lá longe, não me peçam para ser divertida ou boazinha.

Repito aqui a história de Pandora, enviada pelo pai Zeus, deus do Olimpo na mitologia grega, para encontrar seu futuro marido levando uma caixa selada que ela não deveria abrir. Fala-se "caixa de Pandora", mas eu imagino uma ânfora, como nos desenhos gregos antigos. Mais elegante...

Só que, curiosa (riem os machistas), ela não se conteve e abriu uma frestinha só. Imediatamente, grande rumor, e lá do fundo saíram esvoaçando feito morcegões malignos, os males do mundo: ódio, rancor, suspeita, calúnia, crueldade, frieza, cinismo, exploração do mais fraco, e tantos mais. Quando, assustadíssima, a pobre Pandora conseguiu enfim fechar a tampa, restou lá no fundo da ânfora um último ser: a pálida esperança.

Hoje, eu a vejo mais pálida do que nunca: quem vai nos ajudar, quem nos lidera, quem nos conforta, quem nos ensina e conduz, protege e salva e nos cura? Quem nos abre um horizonte?

Muitos choram, esbravejam, reclamam, gritam, poucos - que eu veja - conseguem fazer alguma coisa. E morre gente. E morre gente. E abrem-se valas. E contratam-se caminhões frigoríficos para os mortos. Médicos se desesperam, impotentes. Pessoas morrem em casa, no chão do hospital, não há leitor nem aparelhos suficientes... e vai piorar. Simbólica a foto de um homem morto no chão de ladrilhos de um hospital, braços abertos feito um crucificado: ao lado, sentada, a enfermeira que não o conseguiu salvar - atroz imagem da desolação - e isso tudo corre mundo.

Como viver assim, como trabalhar, como se relacionar em paz até consigo mesmo?

Então lembro da importância de um lugar quase secreto, sagrado, tranquilo, que não precisa ser fantasioso mas real: o que chamo o jardim da amizade. Relembro as amizades importantes de minha vida, sem crises de ciúmes, sem muita cobrança nem pressão, a não ser, aqui e ali, um "ei, me dá notícias porque me preocupo". A paz de poder andar lado a lado, de mãos dadas ou não, como crianças inocentes ou não, falando, silenciando, escutando, dando ombro e colo para quem se aflige até mais do que nós diante da duríssima realidade atual.

Crianças doces, adolescentes ousados, adultos concentrados, gestos inocentes ou nem tanto, é neste lugar precioso, que nem todos sequer conhecem, o das amizades fraternas ou amorosas, que podemos nos recuperar um pouco, falar, escutar, contemplar, achar forças para continuar a vida cotidiana tão desregulada, onde não podemos receber em casa pessoas amadas, nem ir aos lugares que eram os nossos, nem agir com naturalidade, mas usar máscara, medir a distância segura, e de preferência ficar em casa onde estou há um ano... ou largar tudo e viver como se fossem tempos normais, e nos contaminar, e contaminar os outros, e aumentar mais esse largo rio de desgraças que inunda o planeta, o país, a cidade, a rua aqui em frente.

Um amigo afetuoso, leal, que deseja e sabe fazer as trocas afetivas necessárias, é um tesouro especial. E pode ser do outro lado do whats, e-mail ou celular - o mundo cibernético servindo de jardim sossegado para aliviar a alma.

LYA LUFT

20 DE MARÇO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Realeza e realidade

Quando criança, figuras monárquicas eram personagens da minha imaginação, com todos os estereótipos que lhes cabiam: a princesa bela, a rainha ardilosa, o príncipe salvador, o rei indolente - nada que me mantivesse muito tempo acordada. Castelos? Preferia os que eu erguia na beira da praia, excitada com a proximidade da onda que talvez preenchesse de água o fosso que eu havia cavado com as mãos ou, se viesse forte, pusesse abaixo minha fortaleza medieval. Já visitei castelos de verdade e nenhum jamais me comoveu ou me pareceu tão lindo quanto os que foram feitos de respingos de areia molhada escorrendo pelas pontas dos meus dedos.

A fantasia supera a realidade por um curto tempo de nossas vidas. Depois, temos que fazer a travessia. De minha parte, não via a hora. Desde cedo intuía que a realidade seria muito mais fascinante. Hoje observo príncipes e princesas de carne e osso, falíveis, traidores das fábulas infantis, mas que se tornaram muito mais interessantes quando pararam de nos acenar a distância.

Não é de hoje que a mundanidade atravessou as pontes levadiças e invadiu os portões dourados da monarquia. E, surpresa, lá dentro, estão todos nus. Reis se divorciam e são acusados de corrupção, duquesas paqueram DJs e leem livros de feministas, príncipes tomam cerveja e usam jeans rasgados. A plebe fica dividida: por um lado, vê furtadas as suas ilusões. É difícil abrir mão do sonho do "para sempre". Por outro lado, como não se deixar atrair pelo estilo "gente como a gente" de seres que imaginávamos tão especiais?

Assisti à entrevista de Harry e Meghan como se fosse uma mosquinha numa sessão de terapia. Indiscrições foram servidas em bandeja de prata. Certamente havia subtextos e recados nas entrelinhas, estratégias e ambições não reveladas - dizem os tabloides que Meghan planeja concorrer à sucessão de Biden na presidência dos Estados Unidos, e eu duvido, mas nem tanto: a realidade também é um mundo encantado, onde tudo pode acontecer.

O que havia de claro era um casal jovem tentando respirar. Buscando saídas contra a orientação autoritária "é assim que as coisas são", que também já escutamos de nossos pais, os reis e rainhas de nossos apartamentos de dois quartos. Mudam os cenários, os sobrenomes, as heranças genéticas, mas por baixo da pele somos todos iguais, sem nenhum sangue azul, com muito sangue quente, fazendo e dizendo besteiras, sendo sinceros a despeito da desconfiança alheia, procurando um jeito de ser feliz que não irrite muito os outros. Estas são as histórias reais, o resto é família irreal. Para quem ainda se agarra ao "pra sempre", restou apenas a simpática e longeva rainha Elizabeth, soberana em desafiar o tempo.

MARTHA MEDEIROS

20 DE MARÇO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Porto Alegre indoor

E vem chegando mais um aniversário dela, a nossa querida cidade. Essa Porto Alegre que, há um ano, quem pode vê apenas de passagem, indo e voltando rápido para se expor o mínimo possível ao vírus.

A data é 26 de março, só na outra semana, eu sei. Mas em tempos de confinamento, qualquer possibilidade de assunto vira crônica. Mesmo que seja um assunto adiantado. Cada dia é um dia e cada ideia é uma ideia, quando se vive a pandemia.

A Porto Alegre de antes estaria agora em plenos preparativos para o baile de aniversário da Redenção. Tinha gente que esperava essa festa com a mesma ansiedade com que alguns sonham com o Carnaval. Quantos casais não se apaixonaram para sempre, casaram e se separaram em apenas uma noite, no baile da Redenção?

Outra atração de aniversário seria o show na orla, que lotaria para ver, quem sabe, o Frank Jorge de disco novo, a Negra Jaque maravilhosa e tantos novos artistas que foram obrigados a trocar os palcos pelas lives. Mas orla lotada é coisa do passado - para quem tem pressa de ir para o futuro. As filas de cinco horas no cartório para o registro de óbitos na madrugada do último sábado (13) são uma triste prova de que não se pode mais negar a gravidade da situação.

Falando nisso, é preciso lembrar o momento negacionista de Porto Alegre, que disponibilizou o kit de tratamento precoce nos postos de saúde. Felizmente, a Justiça mandou apreender o coquetel "enquanto não existirem evidências robustas, baseadas em pesquisas clínicas e reconhecidas pela comunidade científica, da eficácia deles para o tratamento precoce da patologia". Invertendo a palavra de ordem dos negacionistas, não nos venham com cloroquina, a gente quer a vacina.

O jeito tem sido curtir Porto Alegre da porta para dentro, embora a vontade do lado de fora. Nunca se viu tanto pôr do sol postado nas redes. Tantas fotos de flores, plantas, as árvores da cidade. Tantas imagens do rio Guaíba, que pode até ser lago, mas a gente segue chamando de rio. Não por cabeças-duras, mas por amor.

Ficar em casa ganhou a companhia dos podcasts. Um dos mais interessantes foi criado por duas professoras de física da UFRGS, Carolina Brito e Marcia Barbosa. A Ciência Como Ela É - A Saga de Carlota conta a história ficcional da Carlota, que enfrenta inúmeros desafios para se tornar cientista. No elenco, Mel Lisboa, Ilana Kaplan, Nany People e muitos outros nomes, com direção de Ricardo Severo. A temporada tem 10 episódios e sai todas as segundas. Para ouvir: ufrgs.br/asagadecarlota.

Noites Gregas é o podcast do professor Cláudio Moreno que ganhou fama e, espera-se, fortuna, divulgado em todo o país. Merecidamente, porque cada episódio nos leva para a Grécia dos deuses em uma viagem que poderia durar a vida inteira. Para ouvir: noitesgregas.com.br.

As noites de terça continuam animadas pelo Sarau Elétrico, que saiu do Ocidente para chegar longe no Youtube - mas só enquanto durarem os estoques de vírus. Com Katia Suman, Luís Augusto Fischer e Diego Grando mostrando a mesma picardia dos saudosos tempos do ao vivo. Ainda na linha literária, o professor Sergius Gonzaga entrevista autores, críticos e pessoas que não negam a cultura em Os Livros da Nossa Vida. Vale ver a série toda e acompanhar os novos episódios em fb.com/gonzagasergius.

E que tal uma peça virtual com ingressos gratuitos para quem quiser ir ao teatro na quarentena? Se Não Agora, Quando?, da atriz gaúcha radicada no Rio Marcélli Oliveira, aborda com leveza temas delicados como a solidão e a falta de perspectivas através de uma personagem que acompanha, da janela do seu apartamento, a vida de seus vizinhos. Basta reservar os ingressos em bit.ly/senaoagora. A temporada vai até 28 de março.

Porto Alegre completa seus 238 anos já com um novíssimo Ministro da Saúde fazendo declarações dúbias sobre isolamento e tratamento da doença. Há quem diga que, pior do que está, não fica. Não é o que indicam as previsões para as próximas semanas. Por via das dúvidas, melhor comemorar o aniversário da leal e valorosa em casa. Para a gente se atirar de cabeça na cidade quando isso tudo passar.

CLAUDIA TAJES

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