sábado, 6 de março de 2021


06 DE MARÇO DE 2021
JULIA DANTAS

COMO CONTINUAR?

Dentre todas as coisas incompreensíveis a respeito da guerra, há uma que sempre voltava à minha cabeça: como as pessoas faziam para ir vivendo suas vidas ao longo de anos e anos de conflito e conseguiam continuar trabalhando, casando, tendo filhos, se mudando de cidade, escrevendo livros, inventando coisas, frequentando bailes, indo à escola?

Me parecia inacreditável que as pessoas conseguissem existir num território sob a ameaça constante de um bombardeio, por exemplo. Como elas faziam para sair de casa e comprar comida sabendo que a qualquer momento suas vidas podiam estar em risco? Também me perguntava, ao ler sobre a ditadura, como as pessoas aguentavam viver sob um regime autoritário, ou como as pessoas aguentavam viver com profunda instabilidade, ou num país com fome e desemprego, com mais dúvidas que certezas. Bom, eu ainda não sei a resposta, mas hoje entendo.

De alguma forma, nossa mente encontra um modo de seguir operando e fabricando o tecido delicado da vida enquanto a ameaça paira ao nosso redor. Ou - devo dizer - isso acontece pelo menos na mente das pessoas que têm a mesma sorte que eu de até agora não terem perdido pessoas próximas para a covid.

Os seres humanos são contraditórios por natureza, e isso pode funcionar a nosso favor. Na véspera da vigência da bandeira preta no Estado, encerrei meu doutorado numa defesa via Zoom que reuniu amigos e familiares num encontro bonito, de aprendizado e abertura para o futuro. Esse rito de passagem foi um momento fora desse tempo: a vida aconteceu ali, naquela manhã de sexta-feira, e fiquei feliz. Quatro dias depois, li a notícia sobre a necessidade de alugar um contêiner refrigerado para armazenar cadáveres e me enchi de angústia e medo. Esses sentimentos opostos encontram espaço para conviver, e a tristeza pela onipresença da morte não anula a alegria das pequenas coisas da vida que ainda podem existir. Talvez seja assim que se sobrevive a um país em frangalhos.

"A Alemanha declarou guerra à Rússia - à tarde, natação", Kafka escreveu em seu diário quando a Primeira Guerra Mundial começou. Parece insensível, mas mostra como os pequenos eventos muitas vezes continuam se desenrolando a despeito dos grandes eventos. Falei dos meus pequenos acontecimentos, mas este texto é para dizer que espero que os profissionais da saúde também estejam conseguindo viver as suas alegrias pessoais. Tenho lido os depoimentos de exaustão. "Quando nós vemos um paciente se despedir do seu familiar ao telefone, todos nós morremos um pouquinho", disse Fabiano Nagel do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e eu morri um pouquinho também.

As equipes médicas já estão precisando fazer escolhas a respeito de quem vive e quem morre nos hospitais. Não existe literatura nem imaginação suficientes que possam dar a medida desse sofrimento. Eu apenas torço para que, em meio a esse trauma coletivo, os médicos, os enfermeiros, os maqueiros, os faxineiros e todos os outros funcionários que um hospital tem consigam encontrar, na parte íntima da vida, coisas boas às quais se agarrar e continuar aguentando.

JULIA DANTAS

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