sábado, 1 de outubro de 2022


01 DE OUTUBRO DE 2022
ELIANE MARQUES

AS ANCESTRAIS DA NOVA PEQUENA SEREIA

Se, de um lado, para que meninas racializadas pulassem de alegria foi suficiente verem a nova pequena sereia com a pele semelhante à delas, de outro, isso bastou para arrepiar o pelo de partes do Brasil e de outras terras. Assim como o fez Ulisses ao se amarrar ao mastro do navio para gozar do canto das sereias sem sucumbir a seu encanto, a branquitude o repete ao encontrar o novo objeto no fundo de seu olho para amarrar o ódio contra o desejo de continuar encantada.

Contudo, equivoco-me ao supor medo. Como se todas as sereias dessem continuidade ao "eu profundo" incorruptível popularizado por Hans C. Andersen - pele clara e olhos azuis -, a frase "Ariel é branca" diz do fascínio pela monocultura encantatória. Então, o medo se senta na possibilidade de sua fricção por um canto outro, ainda que se trate de outro encanto do si mesmo ora partido entre mulher e peixe, branco e negro, fundo e superfície.

Em A Autobiografia de Minha Mãe, de Jamaica Kincaid, Xuela e outras crianças viram uma mulher nua na parte do rio onde a foz beija o mar. Para Wole Soyinka, quando o rio molha sua língua no sal marinho, não mais sabemos qual divindade chamar, se a do rio - associada a Oxum - ou a do mar, Olocum ou sua filha Iemanjá. De acordo com Xuela, não era possível definir se a mulher estava em pé ou sentada, o que leva a crer que seu tronco se dava ao fundo dos olhos e sua cauda de peixe se mantinha no fundo do mar. 

Porém Xuela não lhe dá o nome de sereia. Apenas enuncia que era mais linda do que qualquer outra e de uma maneira significativa para ela e não no estilo europeu - sua pele marrom-escura; o cabelo preto, brilhoso e enrolado em pequenos caracóis; seu rosto uma lua suave, marrom, reluzente. As meninas do vídeo que viralizou, exibindo o encanto delas com a sereia racializada, repetem a vivência de Xuela, com a diferença de agora nomearem "serei-a" (serei ela?) e de poderem sonhar-se na pele dessas criaturas impossíveis e, por isso, divinas.

Pois bem, a mulher divina fez um gesto para que as crianças se aproximassem. Alguém disse que deveriam fugir, porém um menino arrogante feito Ulisses foi rindo em direção a ela, sem o truque da cera nos ouvidos, preferindo a entrega à domesticação. À medida que avançava, ela se distanciava, embora não saísse do lugar, até que ambos desapareceram, assim como desapareceu da memória dos que ficaram (no livro e fora dele) quase tudo que diz respeito às tradições não branqueadas e o resto - o que ficou - é "visto" com dúvida ou desamor.

O encontro de Xuela poderia ter sido com Iemanjá ou Oxum, também sereias, mas foi com Mami Wata (que tem muito de cada uma delas). Mami partiu, por amor, da costa africana ao Caribe com o primeiro navio branqueiro. Ela não vinha dentro da embarcação, seguia a esteira de espumas, as lágrimas do oceano. Seu coração de caracol se estremecia de dor (Mãe Sereia, Teresa Cárdenas).

Então, a Ariel do remake da Disney tem lá suas ancestrais esquecidas ou quase, ora lembradas também por amor.

ELIANE MARQUES

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