sábado, 4 de novembro de 2023


04 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Hidratação profunda

Não conheço mulher que não se perceba no caminho da alopecia. É um dos seus maiores medos, como se a feminilidade residisse na vitalidade dos cabelos. Minha amiga Criss Paiva, comediante que fala sério, destacou o hábito feminino de optar pelo xampu com propaganda catastrófica. A mulher escolhe o xampu que mais a ofende, que mais a condena, que mais a puxa para baixo.

Raramente uma mulher compra um produto normal, neutro, de manutenção. Ela não se interessa pelo otimismo dos anúncios, mas pelo alarmismo. Antes mesmo de levar em conta a especificidade do cabelo (liso, crespo, cacheado, ondulado), ou ainda sua textura (oleosa ou seca, alinhada ou propensa ao frizz), os gatilhos de consumo decorrem das orientações negativas no rótulo, para corrigir fios ressecados, com pontas duplas, descoloridos ou simplesmente destruídos.

A tragédia não pode ser pouca. Ela se sente atraída pela reconstrução e hidratação profunda. Ela se sente convencida com recomendações para cabelos danificados e quebradiços. Ela se sente fisgada com promessas de restauração e reposição da massa capilar. Na persuasão do pior, algumas frases-chave são irresistíveis, tais como "reposição da queratina", "redução da porosidade", "recuperação da elasticidade".

As descrições se valem das trevas. O retrato tem que ser o mais desanimador possível para que ela decida ir ao caixa. As campanhas exploram a culpa da mulher, que se vê responsável por sanar algo que possa ter feito de errado antes: exagero de tinturas, emprego ostensivo de secadores, escova definitiva.

Se ela tem mais de 20 anos, é óbvio que já passou por um desses processos e acaba apanhada pelo remorso de não ter se revelado suficientemente dedicada, prevenida e cuidadosa com a raiz de seus cabelos. O recado é infalível e atingirá o histórico de todas as consumidoras.

Em momentos de valorização do equilíbrio emocional e de busca por romances saudáveis, será que tal dispositivo depreciativo não interfere na confiança da mulher? Será que não a tenta a se relacionar com pessoas que se mostram ciumentas, possessivas, desleais, sob o pretexto de consertá-las, sob a missão de salvá-las?

Será que não a incita a crer que "com ela será diferente" diante de cafajestes e canalhas? Será que o descrédito com a própria aparência não a influencia a se rebaixar, a confundir desaforos com preocupação?

Será que não a molda a perdoar a infidelidade por achar que ninguém mais vai querê-la? Será que não traduz seu apego a um universo romântico, caracterizado por sacrifícios e renúncias? Será que não expressa uma cultura do boicote, do desmerecimento, da desvalia?

Será que não ilustra uma mania de sempre se enxergar equivocada, inapropriada, inoportuna? Será que não explica a ideia de que precisa dar atenção exclusiva para ser amada? Será que não escancara a cobrança desmedida e diária que ela sofre da sociedade?

Ainda bem que existe o condicionador, um contraponto de carinho às críticas ácidas do xampu. É o retorno ao creme da solitude. O condicionador não provoca espuma, não xinga, não se baseia no escândalo da precariedade e da insuficiência.

Apenas desembaraça os nós na hora de se pentear. É discreto, doce, de aroma contido. É a esperança pela maciez e brilho do elogio.

CARPINEJAR

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