sábado, 6 de julho de 2024



06 DE JULHO DE 2024
MARTHA

Vergonha de contar

Quando jovem, escutava relatos de mulheres vítimas de abusos sexuais, e elas me pareciam exagerar ao denominá- los como tal. Enquanto eu as escutava, me vinham à cabeça apenas expressões como "foi uma inconveniência" ou "que insensibilidade". Me solidarizava com as dores delas, mas tinha dificuldade de classificar a intenção maliciosa de um parente, por exemplo, como uma agressão passível de um trauma.

É assim que a cultura machista domina nossas mentes. Se não haviam imobilizado a mulher e feito algo à força com ela, então não era violência. Era qualquer outra coisa desagradável, e a melhor saída era calar. Como se um beijo roubado por um tio fosse apenas desagradável. Como se o marido de uma amiga que roçasse as mãos nos seus seios fosse apenas desagradável. Como se um médico que se prolongasse desnecessariamente em um procedimento íntimo fosse apenas desagradável.

O mundo é desagradável para muita gente, quase o tempo todo. As coisas não saem como desejamos, pessoas nos magoam, planos fracassam, há um desconforto emocional que não cessa, e nada disso é realmente um abuso, e sim uma contingência da existência humana. O que caracteriza o abuso é a intenção deliberada de te constranger, o descuido obsessivo com teus sentimentos, a sedução opressiva que te apavora, a culpa transferida justo para a inocente da história. Há muitas maneiras de se infernizar a alma de uma adolescente e de destruir a confiança de uma mulher sem enfiar nada dentro de seu corpo, a não ser o medo.

A perversidade tem ótimos advogados de defesa. "Você está imaginando coisas" é uma frase que já absolveu milhares de cafajestes. "Você dava sinais de que queria" já aliviou a pena de muitos ordinários. "Você era um pingo de gente, não teria como lembrar" já tentou fazer com que as vítimas parecessem loucas.

Por fim, o argumento que passa o pano definitivo: "Era comum. Agora é que a mulherada deu para encher o saco". Nossas filhas e netas fazem parte desta mulherada que não leva mais o abuso para o escuro do quarto nem chora sozinha sobre o travesseiro. As palavras ganharam novo sentido - e consequências. Hoje, para que nada disso se repita, a gente conta, sim, para todo mundo. _

MARTHA

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