sábado, 26 de outubro de 2019



26 DE OUTUBRO DE 2019
LYA LUFT

O sentido a gente inventa

Parece que muitas vezes, ao parar para pensar, imaginamos qual será o sentido da nossa vida. Seguidamente, aliás, se comenta o assunto: qual será o sentido de tudo isso?

E todos ficamos com ar meio perplexo. Vamos lutar por ele, produzir ou descobrir um pequeno significado a cada momento. Pois isso não nos é dado de bandeja, a vida não aparece e diz: "Olha aí, esse é o sentido de tudo".

Além do mais, cada um de nós é vários, é muitos, é pelo menos dois. Uma amiga me relatou um sonho há muitos anos: sonhava que corria por um campo e de repente foi atingida por um raio que a partiu em duas. Duas mulheres idênticas corriam pelo campo agora, mas em direções opostas.

Todos somos, mais que dois, muitos: muitas indagações, muitos desejos, muitas condutas, muitas frustrações. A toda hora vestimos máscaras, belas e irreais como as de Veneza, ou grotescas como caretas de choro ou sofrimento. Não é hipocrisia: é um modo de nos preservarmos, um jeito de sobreviver e merecer vida - e sobrevida, que às vezes é o que nos resta.

Tenho em minha sala um quadro despretensioso com moldura estreita e simples, no verso da qual a autora assinou apenas seu sobrenome: "Grauben". Sei que era já de avançada idade quando começou a pintar. Não tenho maiores informações sobre ela (gostaria de ter). É uma pintura ingênua e pontilhista: um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se senta uma menina com sua boneca. Ou é uma jovem mulher com uma criança.

De cada lado dessa mulher há um gato: o preto senta-se a seu lado direito no banco; o branco está no capim do lado esquerdo. Arte cada um interpreta como pode, mas para mim ali se representa a psique, a do adulto e a da criança que sobrevive em nosso inconsciente; e de cada lado aparece isso que somos de bom e mau, livre e prisioneiro, em suma a força da vida e a pulsão da morte.

No quadro, a "pulsão da morte" está mais próxima, sentada no banco do lado direito daquela mulher com a sua reprodução, dela parida, boneca ou criança. E estende-a um pouco afastada do corpo, como para mostrá-la a nós, indagando: "Qual delas sou realmente eu?".

Genes e acasos, experiências, tantas, foram me desenhando traço a traço com a minha destinada vida, e com a minha destinada morte pacientemente à espera. Construí com essa argila, tramei esses fios, bordei, pintei, esculpi com alegria e lágrimas, descobertas e afetos incríveis, no trabalho das horas de viver uma vida.

Quando tiver cavado todas as palavras da mina do silêncio, vou poder com elas fazer muitas telas, quadros mínimos ou grandes painéis, que nada resolvem mas vão continuar indagando. Embrulho tudo em palavras e amarro em intervalos, e deixo em textos para o leitor, meu amigo não muito imaginário - que procura seus significados como eu procuro os meus: ou, como eu, os inventa.

Mas também penso, em certas horas de leve ironia, que somos sérios demais: que muito melhor seria corrermos livres pelo campo, ou pela areia, espantando garças ou quero-queros só pela alegria de seguir seu voo.

LYA LUFT

26 DE OUTUBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Vida de artista

Ainda ela, claro. A quantidade de homenagens pelos 90 anos de Fernanda Montenegro será sempre insuficiente diante da sua grandeza. Aproveitando a data festiva, também li Prólogo, Ato, Epílogo, uma forma de me aproximar desta mulher com quem conversei timidamente uma única vez, por um minuto, quando fomos apresentadas por uma amiga em comum. E de conhecer não só sua história, mas a história do teatro brasileiro.

Entre tantas recordações, Fernanda menciona no livro a época em que era preciso ter uma carteirinha emitida pela Polícia Federal para poder transitar pelas ruas à noite. A ditadura impunha essa obrigação a duas categorias de profissionais: os atores de teatro e as prostitutas. Essa abjeta forma de controle acabou fomentando um preconceito que, mesmo já tendo diminuído, sobrevive de forma subliminar: a de que toda atriz é puta.

Quando menina, achava a coisa mais linda ser atriz, mas nem cogitei em me aventurar. Fui criança nos anos 1960 e início dos 1970, quando os costumes começavam a ser revolucionados, mas não ainda na minha casa. Meus pais, mesmo sendo frequentadores do melhor teatro, não aplaudiriam: sonhavam em ter uma filha "normal", e eu, sem vocação pra rebeldia, fui fazer Comunicação e virei publicitária. Mais adiante, acabei dando um jeito de atuar: passei a criar personagens fictícios através da escrita, que também é uma forma de ir além do próprio eu.

Ditadores perseguem artistas porque sabem que eles são porta-vozes dos desejos da população, o que consideram subversivo, por isso estigmatizam a classe e, muitas vezes, censuram. Já o cidadão comum não tem razão para desprestigiar um artista, a não ser que se sinta incomodado por um estilo de vida que, vá saber, evidencie suas frustrações. O artista, mesmo não sendo célebre, vive da sua arte, ama o que faz, usa os sentimentos como matéria-prima, reconhece a comédia e a tragédia da nossa humanidade, analisa as questões com a mente aberta, defende a liberdade e não se deixa regrar por convenções. Uma afronta aos que não conseguem lidar com essa entrega absoluta a uma existência plena. O fascínio pode acabar virando raiva. Joga pedra na Geni!

Todas as pessoas - inclusive as putas, senhores - têm ao menos um talento, que pode estar ligado a um esporte ou à gastronomia ou moda, jardinagem, bordado, computação, humor, música, não sei, você é que sabe qual é o seu dom. Alguma coisa você faz muito bem, mesmo que de forma amadora. Pois trate com gentileza o artista que você também é. O seu dom, ainda que infinitamente mais modesto que o de Fernanda Montenegro, é que ajuda a tornar o mundo menos rude. Quem coloca o mínimo de inspiração e paixão no que faz sempre devolve algo de bom para a sociedade.

MARTHA MEDEIROS


26 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Homens são cachorrinhos quando apaixonados

Todo adulto, quando faz carinho em um cachorro, altera a voz. Essa voz infantil e cantante é também a dos apaixonados. Não precisamos descobrir se alguém está amando pelos olhos, basta escutar o esforço sonoro para ser agradável.

O apaixonado torna-se um animal adestrado. Murmurando. Pausado. Soletrado. Rimado. Vive dentro de um musical de quatro pernas que só há dentro de sua cabeça.

Não fala, na verdade, vai mais lembrando do que falando, revivendo ápices dos encontros passados, com intervalos comerciais da saudade. Dá até raiva de abordá-lo se você está apressado. Ele não tem foco nenhum, como se vivesse distraído, dopado, abobado, em transe. Direcionou seu corpo exclusivamente para a encenação da conquista.

Talvez o apaixonado tenha reencontrado a ingenuidade da esperança e retrocede ao tempo verbal do jardim de infância. Não existe mais naturalidade do timbre. Vem açucarado, estranho, meloso, com diminutivos e exclamações.

Empresários, executivos, engenheiros, advogados - gente engravatada e séria! - começam a ter ataques de meiguice no discurso. Inventam de propor brincadeiras quando o assunto é pesado, esquecem horários, aumentam o tempo do lanche e do cafezinho.

Tornam-se cachorrinhos abanando o rabo, felizes, correndo de um lado ao outro para expor o vigor.

Mas a característica mais dominante é mudança de tom grave para o agudo. Diminuem a voz para fazer charme, para mostrar que estão interessados e oferecendo atenção especial a quem gostam.

O crush desejoso de um relacionamento sério modula a sua locução querendo gerar confiança para a aproximação da parceira. Acredita que a conversa sussurrada transmitirá a imagem de que é doce e inofensivo. Esconde qualquer alteração que possa denunciar perigo, rudeza ou agressividade.

A atração se revela sempre no volume da fala. Baixo, significa que o homem está entregue. Alto, indica que não está nem aí.

Um diálogo entre apaixonados é igual aos dengos de um tutor com seu mascote. O que explica a submissão masculina no início do romance.

CARPINEJAR


26 DE OUTUBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

O INSTAGRAM DOS SANTOS

COMO NA 'LEGENDA ÁUREA', OU SE É SÃO JORGE OU SE É DRAGÃO, CAVALEIRO OU SAURO ABOMINÁVEL, ALIADO DE DEUS OU REPRESENTANTE DAS HOSTES DEMONÍACAS. ESSA É A RETÓRICA DAS REDES SOCIAIS, ESTRUTURA NARRATIVA QUE FLERTA MAIS COM O DRAMALHÃO MEXICANO ESTEREOTIPADO DO QUE COM A RIQUEZA DO HUMANO REAL

Eles eram perfeitos de todas as formas. Foram assinalados pela graça divina antes do nascimento. Alguns não mamavam no seio materno às sextas-feiras (por causa da Paixão de Jesus). A biografia irretocável dos santos cresceu durante toda a Idade Média. Era um tipo específico de escrita sobre os eleitos de Deus: a hagiografia. Com o tempo, o escrito hagiográfico virou um adjetivo que quer dizer excesso de elogios na descrição, idealização da personagem, omissão de defeitos e ênfase no caráter heroico das ações. A mais famosa narrativa do estilo descrito é Legenda Áurea, obra do século 13, de autoria do arcebispo dominicano de Gênova, Tiago de Voragine. Apenas na Idade Moderna haveria uma reação crítica ao enfoque hagiográfico idealizador. Eram os "bolandistas", pesquisadores jesuítas que pretendiam expurgar o folclórico das biografias dos santos.

A narrativa hagiográfica é muito sedutora. O herói deve encarnar valores do grupo em grau exemplar. O santo é tudo o que não somos e, provavelmente, nunca seremos. Nem sempre foi assim. Os homens da Antiguidade viam muita humanidade nos seus heróis, como Aquiles ou Hércules. Os seres olímpicos eram falhos, apenas imortais e poderosos. Embora não seja algo exclusivo do Cristianismo, a religião dos seguidores de Jesus aumentou muito a busca de uma descrição próxima da perfeição.

A hagiografia é uma forma de propaganda. Biografias de políticos são, quase sempre, hagiográficas. As personagens políticas vão sendo enquadradas em tipos ideais sem muitos matizes, ao menos na consciência dos devotos de cada seita. Verborragias viram "autenticidade" e toda acusação se transmuta em "perseguição". Falta bolandismo na política. Sobra mitologia, abunda falseamento e somem áreas de transição. Tudo é polarizado, como em grandes santos em luta contra grandes demônios.

Estudo religiões porque acho que elas moldaram a maneira de pensar as sociedades. Pessoas de esquerda ou de direita, ateus e piedosos, católicos e pentecostais, ricos e pobres continuam fazendo narrativas hagiográficas dos seres que veneram na política, na cultura ou no mundo empresarial. Como na Legenda Áurea, ou se é São Jorge ou se é dragão, cavaleiro ou sauro abominável, aliado de Deus ou representante das hostes demoníacas. Essa é a retórica das redes sociais, estrutura narrativa que flerta mais com o dramalhão mexicano estereotipado do que com a riqueza do humano real. O Instagram dos santos continua bombando, o demoníaco também.

Seria curioso fugir da estrutura narrativa clássica de santos ou demônios. Que tal humanidade? Um candidato diria: "Fui adepto de tal linha política ou partido. Naquela época, parecia o melhor e o mais lógico. Depois, tudo mudou e fui para outro campo". Seria um reconhecimento de humanidade, de capacidade de reavaliar. D. Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda-Recife (candidato aos altares), foi integralista de extrema-direita. Terminou a vida como representante do clero progressista. Carlos Lacerda (1914-1977) foi militante comunista. Chegou à maturidade como um político conservador. Os dois eram inteligentes e sensíveis à coletividade. 

Admiro a trajetória deles no aspecto da capacidade de mudar e assumir a mudança, sem escamoteá-las de suas biografias. Como estariam hoje? D. Hélder ainda seria ligado à Teologia da Libertação que a elite vaticana defenestrou? O governador da Guanabara estaria ao lado do governo atual? Não temos como responder, apenas sabemos que a inteligência conduz à reflexão crítica e esta pode indicar mudanças. Michel de Montaigne (1553-1592) associou a certeza absoluta à loucura. Sempre desconfiei de extremos, ainda que ache a paixão interessante. Radicais podem ser defendidos como pessoas que vão à raiz, como diz a palavra. Porém, só a burrice ou a insanidade faz alguém pensar na raiz como o todo do universo possível de existência.

Sempre imaginei os santos como muito humanos. Alguns foram problemáticos; outros, intoleráveis no convívio. As narrativas sobre eles, as hagiografias, produziram uma personagem perfeita. Gosto de lê-las como um gênero literário, abomino a ideia de que a santidade exclua humanidade. Seres humanos normais, como eu e como você, querida leitora e estimado leitor, pensamos de um jeito, aprendemos, vivemos e mudamos de ideia. Ninguém daria aula hoje como deu sua primeira aula. Ninguém criaria seus filhos do jeito exato que o fez no passado. Aliás, quem diz que agiria da mesma maneira deveria ser impedido de ter novos filhos ou de receber uma nova turma.

Mudar de posição a partir de novos dados ou dos erros: uma chave do humano e da consciência. Permanecer no mesmo ponto sempre mostrando uma face do poliedro para o público é um equívoco e, normalmente, chamamos esse erro de "redes sociais". Deus é imutável, os seres humanos são volúveis e as redes sociais são a tentativa de canonização em vida da perfeição de cada internauta É preciso ter um pouco de esperança e um pouco menos de fé em santos com instagram.

LEANDRO KARNAL


26 DE OUTUBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

PREVENIR OU REMEDIAR

Envelhecemos mal. Cerca de 90% dos brasileiros chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica
Os brasileiros envelhecem a passos apressados. A faixa etária que mais cresce entre nós é a que passou dos 60 anos. A expectativa de vida ao nascer - que mal ultrapassava os 40 anos, no início do século passado - atingiu 76 anos, e não para de aumentar.

O envelhecimento populacional que experimentamos nos últimos 50 anos levou o dobro de tempo para ocorrer nos países europeus industrializados. Motivo de orgulho, esse aumento expressivo da longevidade, no entanto, vem acompanhado da necessidade de investimentos e de organização do sistema de saúde para a nova realidade.

Envelhecemos mal. Cerca de 90% dos nossos conterrâneos chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica. Embora ainda não tenhamos nos livrado das transmissíveis, enfermidades cardiovasculares, câncer, diabetes, degenerações neurológicas e outras patologias degenerativas são hoje as principais causas de morbidade e mortalidade.

A cada novo inquérito epidemiológico, os níveis de obesidade estão mais altos. Na última avaliação, 54% dos adultos caem na faixa de excesso de peso (IMC entre 25 e 29,9). Pior, cerca de 20% são obesos (IMC acima de 30).

A obesidade é um pacote que traz com ela hipertensão arterial, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, doenças reumatológicas e problemas ortopédicos, entre outros males.

A Sociedade Brasileira de Diabetes estima que existam 14 a 15 milhões de brasileiros com a doença, número que provavelmente subestima os que andam pelas ruas com glicemias elevadas, sem ter recebido o diagnóstico.

Cerca de 50% das mulheres e dos homens chegam aos 60 anos com hipertensão arterial, prevalência que não para de aumentar à medida que a idade avança.

Pressão alta e diabetes causam complicações graves: infarto do miocárdio, AVC, insuficiência renal, cegueira, feridas que não cicatrizam, amputações e outros agravos que provocam sofrimento e despesas para o sistema de saúde.

A assistência médica talvez seja o único ramo da economia em que a incorporação de tecnologia aumenta os preços do produto final. A cada procedimento, exame novo ou medicamento descoberto incorporado à prática clínica, os custos sobem.

Os gastos com saúde ficaram tão elevados que se tornaram impagáveis. No SUS, a saída é negar o atendimento quando as verbas se esgotam, recurso que a lei impede de ser adotado pela Saúde Suplementar. As consequências serão o aumento das filas à espera de tratamentos no sistema público e a falência dos planos de saúde, que ficarão cada vez mais restritos aos de maior poder aquisitivo.

O progresso e o desenvolvimento tecnológico nos trouxeram a possibilidade de ganharmos a vida no conforto das cadeiras e fartura de alimentos, combinação perversa que se tornou a fonte dos males modernos. Sedentarismo e excesso de peso estão por traz dos principais problemas que enfrentamos.

O sistema plúbico e os planos de saúde precisam investir na prevenção e na atenção primária, para interferir antes que as doenças se instalem. A alternativa é o caos.

DRAUZIO VARELLA



26 DE OUTUBRO DE 2019
ESPIRITUALIDADE


O QUE É UM ANJO?

"A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se alguém causa inda pena a tua chaga

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija."

(Augusto dos Anjos)

Meu amigo poeta do tempo de escola. Adorávamos suas rimas amorosas e plenas de amizade, amor, ternura, confiança - tudo que poderia fazer a vida mais gentil. Será? Por que gostávamos de falar palavras rudes e desacreditar da amizade e do amor?

Se era uma brincadeira da puberdade, o sentido ficou marcado profundamente em quem repetiu a frase tantas vezes que até hoje, mais de 60 anos depois, ainda está clara na memória.

As decepções, as exclusões, as exigências e as rejeições podem forjar seres solitários, revoltados. Ou não. O monge Ryokan, do século 17, no Japão, certa feita foi confundido com um ladrão e apanhou muito. Não reclamou.

Aceitou e se foi rindo da confusão do dono das melancias, que pedia perdão. Afinal, ele tinha se abaixado apenas para amarrar as sandálias de palha.

Afetos e desafetos.

Amores e traições.

Confusões. Sem olhar em profundidade cada qual se considera correto.

O que teria acontecido com Augusto - ele que era dos Anjos?

O que é um ser angelical?

Nos quadros medievais, suas faces são suaves, mãos e pés de dedos e artelhos longos, brancos.

Anjos negros? Por que não foram assim pintados pelos europeus?

Ateus e crentes são capazes de dialogar sem criticar, julgar ou querer convencer?

Anjo, Augusto dos Anjos, o que teria acontecido para escrever tal poema?

Amor e ódio - pares eternos?

Ou será que há amor que não cobra e nada pede?

Que ama por amar e nada mais?

Será que é possível afagar a mão que apedreja?

Ao invés de escarrar, melhor seria não beijar a boca falsa...

Equânime é o ser capaz de sentir compaixão pela vítima e pelo vitimador. Só é possível com muito treino. A compaixão não é visceral. Use a inteligência e vá além da dor, da aversão, do apego e da delusão.

Como sentir compaixão por quem causa divisão, briga, ódio, fake news, mata, estupra, mente, finge, corrompe e rompe todos os processos éticos legais que deveria estar a unir e a respeitar? Esforço correto. Não desista. É possível.

Vamos iniciar agora? Basta lembrar que cada ser que encontrar é um ser iluminado disfarçado. No Caminho, não há inimigos. Nada a temer. Nada pelo qual matar e/ou morrer. Nada a odiar e exterminar. Apenas entender e trabalhar para a transformação do ódio em ternura. Respire e venha se juntar a quem sabe imaginar e faz acontecer. Seja um átomo de paz.

Mãos em prece. Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Bruna Lombardi

MONJA COEN

26 DE OUTUBRO DE 2019
JJ CAMARGO

DE MÃOS DADAS


Eram um desses casais a quem podem faltar as palavras, porque são treinados na utilização de todos os outros sentidos

Em uma manhã de sol forte e uma brisa suave que iludia a sensação térmica, um casal de idosos caminhava lentamente na praia. Ela, com uma visível sequela de acidente vascular cerebral, arrastava a perna esquerda e colocava todo o peso do corpo na mão direita dele, um amparo indispensável para que se deslocasse com aquela lerdeza que só os muito velhos aceitam com resignação.

Vieram na minha direção e sentaram-se num banco de pedra, a dois metros da mureta, de onde eu espiava o mundo por cima do mar.

Ela tentou dizer alguma coisa e foi quando percebi que lhe faltava a voz. Não sei o que ela queria mas de qualquer maneira ele entendeu, e sorriu.

Foi então que bateu o vento, levando para longe o chapéu protetor que ela usava. Ele caminhou lentamente, apanhou-o quase embaixo do carrinho do sorvete e voltou remodelando a aba, sacudindo a areia, e recolocou-o na cabeça dela, com o cuidado de recolher as mechas brancas que extravasaram os limites do corpo do chapéu.

Então, aproveitando a proximidade, deu-lhe um beijo de leve nos lábios e recebeu a recompensa de um quase sorriso. Em seguida, tomou a mão esquerda disforme que ela mantinha passiva sobre a coxa e empunhou-a com delicadeza. Primeiro, ficou alisando a superfície das veias salientes, como se as tivesse recém descoberto, depois beijou-lhe a palma e, em seguida, apertou-a contra o peito, como a reconhecer que agora, sim, era ele que precisava de um afago.

E, com aquele novelo irregular de dedos entrelaçados, ficaram calados olhando o mar. Um desses casais a quem podem faltar as palavras, porque são treinados na utilização de todos os outros sentidos.

O silêncio lhes dava a força necessária para que, alheios a um mundo indiferente, eles vivessem em paz o tempo que lhes restava. Só agora, contando esta história, me dei conta que foi uma pena não tê-los abraçado, agradecendo a aula gratuita de afeto incondicional.

JJ CAMARGO


26 DE OUTUBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O supremo tribunal da impunidade

Eram 7h15min da manhã de sexta-feira, aqui, no norte do mundo, quando ouvi a voz límpida do Daniel Scola contar a seguinte história, na Rádio Gaúcha:

Semana passada, em São Leopoldo, um ladrão roubou um carro com uma criança de um ano de idade no banco de trás. Os pais, obviamente, ficaram desesperados, transidos de angústia e dor. Mais tarde, o carro e a criança foram encontrados. Dias depois, a polícia capturou o ladrão e o conduziu à delegacia. Lá, ele prestou depoimento, foi liberado e seguiu para casa.

Não preciso explicar o quanto isso é errado. Qualquer pessoa, por estreita que seja sua mente, sabe que a impunidade estimula a criminalidade. Outros ladrões, que roubarem outros carros, com outras crianças dentro, não perderão tempo deixando que os pais retirem os filhos do banco traseiro. Levarão carro e criança, porque ficou claro, pelo exemplo do ladrão de São Leopoldo, que fazer isso "não dá nada".

Ao mesmo tempo, em Brasília, o Supremo se encaminha para instalar outra ferramenta de impunidade, proibindo a prisão de condenados em segunda instância. Trata-se de uma lei urdida para beneficiar criminosos ricos e poderosos, com condições de pagar advogados caros e arrastar um julgamento até as fímbrias do STF, o que, na prática, pode significar a prescrição do crime.

Neste caso, talvez seja necessário gastar algum latim explicando o quanto isso é igualmente errado. Porque há gente boa, de luzes e letras, argumentando que a Constituição determina indubitavelmente que ninguém será preso até que todas as instâncias o condenem.

Há algo que me escandaliza quando ouço essas pessoas falando: é o fato de que, para elas, a Constituição se equivale ao conjunto de regras de um jogo de tabuleiro. No xadrez, por exemplo, os cavalos só se movem em L, os bispos na diagonal e as torres em linha reta. Isso jamais mudará, porque precisa. O jogo é esse e ponto. Se você quiser jogar, aceite.

Mas uma nação não pode ser regida por regras inflexíveis, já que os povos mudam e suas necessidades mudam também. Defensores da tecnicidade jurídica argumentariam que, sendo assim, o Legislativo deve mudar a lei, porque essa tarefa não cabe ao Judiciário. Eles estão certos. Só que, no caso da prisão em segunda instância, o texto da Constituição dá margem a duas interpretações, tanto que o STF está dividido.

Então, o que me escandaliza é ouvir juízes, advogados e até ministros do Supremo reconhecerem que proibir a prisão em segunda instância é ruim para o país, mas acrescentar que eles são a favor disso porque é o que está escrito. Ora, se existem pelo menos duas interpretações diferentes, ambas sustentadas por argumentos sólidos, por que não optar pela que fará o Bem, com bê maiúsculo, à nação?

Leis existem para regular as relações sociais, existem para atender às necessidades DAS PESSOAS. Um juiz tem de estar atento a essas necessidades.

No Brasil, leis lenientes, interpretadas de forma ainda mais leniente, desequilibraram a sociedade. Há uma sensação de impunidade e de desrespeito às autoridades que começa pelo aluno que agride o professor, passa pelo ladrão de carros que leva o nenê que estava no banco de trás e termina no traficante que tem dinheiro para arrastar seu processo STF acima.

Essa nefanda impunidade não é a única causa da insegurança, mas é a maior delas. E sem segurança você não caminha pela cidade, você evita andar de ônibus, você tem de gastar com vigilância e estacionamento, você não frequenta parques e praças, você se tranca em casa e perde a rua. Resolvam os problemas de segurança pública e 60% dos problemas do Brasil estarão resolvidos. Os ministros do Supremo tinham a obrigação de compreender esse clamor do povo brasileiro. E votar pelo certo. Pela lei que promoverá o Bem.

DAVID COIMBRA


26 DE OUTUBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Vendendo a alma ao Diabo

Quando jovem, num momento de desespero, tentei vender minha alma ao Diabo. Estava em um buraco, não enxergava saídas, a vida parecia um túnel angustiante sem fim e sem propósito. Sentia-me enterrado vivo, privado de vislumbre de mudança.

Quando sentimos que nada temos a perder, cometemos os maiores desatinos e foi o que fiz. Ou melhor, tentei fazer. Poupo-lhes dos detalhes sórdidos de como cheguei ao medonho. Mas em uma manhã de inverno, em que o frio de fora combinava com o da minha vida, nos encontramos. Ele se mostrava simpático e solícito, mostrou-me as vantagens e desvantagens da transação, tudo muito profissional.

A questão veio no preço, minhas vantagens seriam uma mixórdia. Teria um reinado minguado, praticamente ridículo. Perguntei-lhe sobre a desproporção e ele foi franco. Disse que eu era uma alma de baixa cotação. Acrescentou: "Você é sem carisma, sem refinamento, sem currículo, sem estilo próprio. Você é um ressentido - isso apreciamos - mas é sem qualificação maléfica. Dado isso, é o que o mercado tem para oferecer".

Quis retrucar, mas ele em poucas palavras fez uma brevíssima síntese da minha história. Era aterrador ouvir, e era tudo verdade. Não havia exagero, não era conversa de vendedor, barganha tola. Tanto que até me aconselhou: "Talvez não seja a hora de te vender, melhor esperar já ter realizado algo, então, quem sabe, daria para conseguir melhores vantagens. Agora não saberia como te aproveitar. Teria que te treinar, e isso é custo".

A humilhação não parava. Demonstrou detalhadamente como não serviria para a linha de frente da maldade por ser frouxo. Faria no máximo um trabalho secundário de retaguarda.

Quase sem voz, perguntei se me indicava um rumo para uma futura melhor classificação. "Informática. Estamos com um pressentimento de que por ali teremos grandes oportunidades para o mercado de ódio."

Ele foi levantando-se, fez questão de pagar o café e deixou uma gorjeta generosa para o garçom.

Como último conselho, já saindo: "Estamos interessados também em desenvolvedores de algoritmos para comportamentos. Faz parte de um projeto maior de desumanização. Tens o meu número, se aprenderes é só ligar".

Não foi um inverno fácil. O que era pior: saber do meu valor insignificante ou que nem o Diabo se interessava por mim?

É uma amostra grátis do inferno sabermos o que valemos e não o que pensamos que valemos. Ou seja, conseguir olhar desapaixonadamente para dentro. Enxergar o pedacinho de nada que somos.

Não voltei a procurar o tinhoso, temo ouvir outra vez meu preço. Mas o encontro rendeu. Crescer é livrar-se da ilusão de sermos talentos desperdiçados, boicotados. Talento e ressentimento não coincidem. Encarar minha desimportância cósmica foi vital. Valeu, Diabo!

MÁRIO CORSO




26 DE OUTUBRO DE 2019

ARTIGO

UM MOMENTO CONSTITUINTE NO CHILE?

Tobalaba chama-se a rua por onde caminhávamos dia desses. Começo parafraseando Gabeira, que, em 1973, caminhava pela Rua Irarrazabal quando pela primeira vez viu um caminhão cheio de cadáveres. A situação de Gabeira, em busca de asilo em uma embaixada, era mais dramática. Eu sou apenas um turista em Santiago que deparou com gás lacrimogêneo. Achei a cena curiosa. Enquanto manifestantes e carabineros confrontavam-se, pessoas em geral seguiam transitando normalmente. Eu não podia imaginar que estava presenciando o início de uma convulsão social comparável apenas àqueles dias em que Gabeira caminhava pela Irarrazabal.

De início, é inevitável a comparação com o Brasil de 2013. Ambos os movimentos não têm comandos políticos organizados e foram deflagrados por aumentos no transporte. Mas as semelhanças param aí.

O movimento brasileiro acabou instrumentalizado por interesses conservadores. A mobilização chilena, por sua vez, parece essencialmente antineoliberal. O Chile, tão aclamado por economistas brasileiros formados em Chicago, não tem sistema público de saúde. Muitos aposentados recebem menos de um salário mínimo. Serviços como água, luz e transporte são caros. É contra isso que as ruas se insurgem. Sugere-se um "novo pacto social", incompatível com o modelo construí- do pelos economistas de Pinochet, também formados em Chicago.

Bruce Ackerman, ao analisar a história dos EUA, sustenta que o país viveu um momento constituinte não apenas na Convenção da Filadélfia, que resultou na Constituição, mas também na Guerra Civil e no New Deal. Embora a Constituição tenha continuado em vigência, a profundidade das alterações promovidas por tais processos os qualifica como momentos constituintes.

No fim de seu governo, em 2018, Bachelet propôs uma nova Constituição. A proposta não teve sequência, e, por ora, não se identifica nas ruas um clamor explícito nesse sentido. Não é difícil constatar, porém, que o modelo neoliberal - que tem amparo na Constituição de Pinochet e no governo de Piñera - está sendo desafiado. O novo pacto social exigido pelas ruas supõe a suplantação desse modelo.

Não é possível prever o desfecho disso tudo. Mas é certo que o país não será mais o mesmo. Ackerman permite-nos afirmar, portanto, que, sim, o Chile vive um momento constituinte. A soberania popular exige um novo pacto. E nesse novo pacto já não há espaço para economistas formados em Chicago.

Procurador da República e especialista em Direito Constitucional jorgemauriciopk@gmail.com
JORGE MAURICIO KLANOVICZ

26 DE OUTUBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

OS FANÁTICOS


Nada é mais destrutivo do que a visão fanática, que em tudo vê adversários ou inimigos a odiar. O fanatismo é cego e surdo. Ouve sem escutar, olha sem enxergar. Não debate. Só admite o que armazenou na cabeça, tal qual prateleira de supermercado, onde se compra só o que ali está.

Vejamos os fanatismos explícitos da semana. Os absurdos foguetes festejando a derrota do Grêmio no Maracanã desconheceram que o luto caiu sobre todo o Rio Grande, até sobre os colorados como eu. Ou somos gaúchos só na pilcha da Semana Farroupilha?

A audiência pública em que o Legislativo buscou entender as 480 alterações que o governador quer impor ao Código Estadual do Meio Ambiente em votação "urgente" (sem consulta à sociedade) mostrou a miopia que leva ao fanatismo.

Alguns deputados "culparam" o Código Ambiental pelo atraso do Rio Grande nas últimas décadas, como se proteger a vida fosse o caos. Ou como se, num temporal, a ventania viesse dos galhos das árvores (por se mexerem) e a solução fosse amarrá-los?

Em contraposição, a juíza Patrícia Laydner (que, convidada, opinou pela Ajuris com a visão do Tribunal de Justiça) lembrou que o meio ambiente é um bem coletivo indispensável: "O Rio Grande não pode ?crescer? às custas da saúde da população", frisou, explicando o absurdo de alterar o Código às pressas. "Se a lei estiver desatualizada, deve acompanhar a preocupação atual com as mudanças climáticas, mas não vi nada disto na proposta", observou.

Lembrou ainda que, se votadas em urgência, as mudanças podem fazer do Código "uma colcha de retalhos", levando o Judiciário a tudo decidir em futuros conflitos. O deputado Rodrigo Lorenzoni e outros reagiram (quase em fúria) tomando a "colcha de retalhos" como um agravo ao Legislativo, quando a juíza queria, apenas, evitar eventual judicialização da área ambiental?

Por tudo isto, sete ex-secretários estaduais do Meio Ambiente e seis ex-presidentes da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (vindos de diferentes governos) pediram ao governador que retire a "urgência" que muda o Código. Encabeçados pelos ex-secretários Cláudio Dilda e José Alberto Wenzel, lembram que, nos últimos 45 anos, o Rio Grande consolidou forte tradição na área ambiental e que toda mudança deve ter evidências científicas e ampla participação.

Em 1974, ao criar a Coordenadoria de Controle do Equilíbrio Ecológico, o governo Euclides Triches iniciou o caminho que, em 2000, o modelar Código Ambiental consolidou após cinco anos de pesquisas e consultas. Por que abolir às pressas, agora, controles ambientais e facilitar a degradação em nome de falso progresso?

Imitaremos o desdém do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que levou 41 dias para oficializar o plano de emergência no combate ao derrame de petróleo no mar do Nordeste?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

26 DE OUTUBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

PRAGMATISMO COM A CHINA

Superada a fase inicial de estranhamento, fruto de declarações despropositadas do presidente Jair Bolsonaro ainda na época da campanha, parece que o pragmatismo voltou a prevalecer e brasileiros e chineses caminham para estreitar laços. Na passagem da missão comercial e diplomática pelo gigante asiático, principal destino do périplo pela Ásia, ficou a mensagem de que o país está aberto a fazer negócios que interessem às duas nações.

Se, no ano passado, o então candidato causou mal-estar ao sentenciar que a China estaria mais propensa a comprar o Brasil do que a comprar do Brasil, o discurso preponderante agora por parte do Planalto é de que o interesse maior está no intercâmbio com as principais economias do mundo, sem importar o viés ideológico. No gesto, acerta Bolsonaro, que viajou a convite do presidente Xi Jinping, no momento em que são comemorados os 45 anos do aniversário do estabelecimento de relações entre os dois povos.

Os números mostram, de forma nítida, a relevância da China. É o principal parceiro comercial do país, com trocas que, apenas neste ano, de janeiro a setembro, alcançaram US$ 72 bilhões. No caso do Rio Grande do Sul, a corrente de comércio foi de US$ 4,5 bilhões no mesmo período, com as exportações gaúchas centradas principalmente em soja, celulose e carnes. 

Motivos mais do que suficientes para nutrir um bom convívio com os chineses, que também, nos últimos anos, empreenderam pesados investimentos em território nacional, em áreas como logística e energia. Para o Brasil, o grande interesse imediato é se consolidar como um fornecedor relevante e estável de alimentos, mas também há espaço para imprimir maior cooperação bilateral em outras áreas, como tecnologia, um tema sempre sensível e estratégico.

Os sinais iniciais de tensão no começo do ano, com a chegada de Bolsonaro ao poder, começaram a ser superados com a viagem do vice- presidente Hamilton Mourão, em maio, à China. Foi também um prenúncio de que o Brasil não tomaria publicamente parte no conflito entre Estados Unidos e China. 

Mesmo que Bolsonaro seja um fã declarado de Donald Trump, demonstrar adesão às teses da Casa Branca seria imprudência desmesurada. Afinal, mais cedo ou mais tarde as duas maiores potências do mundo vão voltar a apertar as mãos. E, no mercado mundial de produtos agrícolas, que tem os chineses como principal destino consumidor, são os norte-americanos os grandes concorrentes dos brasileiros.

Na política de relações exteriores do Brasil, o melhor é que a racionalidade, sempre, se imponha. A mesma lógica deve prevalecer na convivência com os vizinhos do Mercosul. A ameaça do Planalto de tirar o país do bloco não pode passar de mais uma bravata.

OPINIÃO DA RBS

26 DE OUTUBRO DE 2019
DUAS VISÕES

Uma vitória do Brasil

Com a aprovação pelo Senado na última quarta-feira da PEC 06/2019, um novo capítulo da Previdência Social brasileira se inicia. Não me recordo na história recente das democracias da existência de pesquisas de opinião favoráveis ou manifestações populares que exigiam uma reforma... da Previdência. Sempre estamos acostumados a ver a população nas ruas exatamente pelo contrário. Ademais, vejamos que a maior reforma constitucional previdenciária já realizada neste país foi feita em apenas 10 meses, isso com dezenas de meios de comunicação e "especialistas" acenando contrariamente. 

O capital político do governo nessa reforma, aprove-o ou não, deve ser ressaltado: muitos tentaram, mas nenhum havia conseguido, mesmo em condições políticas e econômicas muito mais favoráveis. Não sem motivo que os principais veículos de impressa internacional ressaltaram esse importante ponto.

A reforma aprovada visa perenizar um regime que estava fadado ao insucesso em matéria de equilíbrio financeiro e atuarial. O argumento de que serão as pessoas humildes as mais afetadas caiu por terra durante os debates. Sabe-se claramente que as mudanças perpetradas visam exatamente a uma maior universalidade e distributividade, aproximando o regime brasileiro daqueles existentes nos países desenvolvidos e também em desenvolvimento (estes últimos nossos maiores concorrentes). 

A reforma em si tem como objetivo economizar aos cofres públicos (leia-se nosso dinheiro) R$ 800 bilhões em 10 anos. Somando-se aos outros projetos que serão apresentados, mais R$ 270 bilhões serão poupados em um decênio. Mais de trilhão!

O sistema de aposentadorias do Brasil tem característica bastante particular se comparado aos sistemas dos países membros da OCDE. Todos os regimes de previdência pública nos países da OCDE incluem uma idade mínima de aposentadoria, o que não era o caso do nosso país. O sistema brasileiro possui altas taxas de reposição - valor do beneficio previdenciário em relação à renda em idade ativa - e isso ocorre em uma idade muito baixa. 

A expectativa de vida no Brasil está um pouco abaixo da média da OCDE e tal fato não justificaria uma idade média de aposentadoria muito menor. Nos termos em que se encontra, o regime seria financeiramente insustentável e uma reforma profunda foi necessária e inevitável. A reforma da Previdência foi uma vitória de todos, uma vitória do Brasil.

JULIANO BARRA

26 DE OUTUBRO DE 2019
LAGOA DO PEIXE

Ruralista se candidata para chefia de parque nacional

Com a exoneração da agrônoma Maira Santos de Souza do posto de chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no sul do Estado, em 11 de outubro, começou a busca do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por uma sucessora. E despertou interesse da diretoria o nome de Giovana Sessim Borges, advogada e fazendeira de 51 anos que se apresenta como a segunda maior produtora de arroz e soja de Mostardas, que abriga parte do santuário ecológico.

O início das suas terras, às margens da antiga estrada do inferno, é identificado pela bandeira do Brasil pintada na porteira. Gosta de dizer que o verde e amarelo são sua marca pessoal. Casada e com dois filhos, um formado em Agronomia e a outra morando nos Estados Unidos, Giovana tem cerca de 500 cabeças de ovinos e gado angus espalhadas por 1,8 mil hectares. É um nome com trânsito entre ruralistas e pecuaristas.

Mas, para administrar a unidade, será preciso tratar, também, com os pescadores.Produtores travam com ambientalistas uma disputa histórica pelo uso do parque, cada um com seus interesses na unidade de conservação de proteção integral povoada por mais de 270 espécie de aves migratórias.

Giovana havia se oferecido ao cargo no primeiro semestre deste ano para mediar a discussão, mas acabou preterida pelo ICMBio, que nomeou Maira. A decisão da autarquia federal de afastar a ruralista de 25 anos foi tomada após a Justiça, ao atender pedido do Ministério Público Federal, suspender portaria que a alçava ao cargo: "Não existe qualquer elemento que comprove sua experiência profissional pretérita", diz o despacho.

Em conversas reservadas, Maira reconheceu ter "caído de paraquedas" e demonstrou humildade ao costumeiramente pedir ajuda para contornar situação do dia a dia nas 13 semanas como chefe.

Giovana critica a rigidez das leis ambientais e entende que parte da Lagoa do Peixe deve ser rebaixada de parque nacional para área de proteção ambiental (APA), status com normas bem menos restritivas, inclusive na chamada zona de amortecimento - perímetro no entorno da unidade que requer cuidados ambientais, mesmo sendo particular.

O sistema de conservação proíbe, dentro dos parques nacionais, pesca, pecuária e construção de moradia. Em uma APA, é possível tudo isso, até plantar. Giovana argumenta que os produtores dos arredores usam técnicas de manejo que não afetam o parque:

- Minha formação é em direito ambiental. A vida inteira defendi esse tema, só preciso do apoio da comunidade. Não posso ser punida por ser ruralista.

A reportagem entrou em contato com o ICMBio e o Ministério do Meio Ambiente, mas, até o fechamento da edição, não obteve retorno.

A exigência

Para ocupar o cargo de chefe do parque, a lei exige o preenchimento de pelo menos um dos cinco requisitos. Giovana diz ter quatro. Pela lei, basta comprovar um.

• 1 - Ter ocupado cargo em comissão ou função de confiança em qualquer poder, inclusive na administração pública indireta, de qualquer ente federativo por, no mínimo, um ano.

• 2 - Possuir título de especialista, mestre ou doutor em área correlata às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições do cargo ou da função.

• 3 - Ter experiência profissional de, no mínimo, dois anos em atividades correlatas às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições e às competências do cargo ou da função.

• 4 - Ser servidor público ocupante de cargo efetivo de nível superior ou militar do círculo hierárquico de oficial ou oficial-general.

• 5 - Ter concluído cursos de capacitação em escolas de governo em áreas correlatas ao cargo ou à função, com carga horária mínima acumulada de 120 horas.

MARCELO KERVALT

sábado, 19 de outubro de 2019



19 DE OUTUBRO DE 2019
LYA LUFT

O outro lado

Muitas vezes, assistindo ao espetáculo entre maravilhoso e horrível do mundo, também aqui ao meu redor, me pergunto se - e por que - estaremos mais agressivos.

Não preciso ir longe: basta ligar a tevê. Claro que posso escolher o positivo, entrevistas, concertos, natureza. Mas também preciso saber da realidade, porque sou uma mulher do meu tempo e, como já escrevi, dele dou testemunho em cada frase ou verso, crônica ou romance. Do meu jeito, não muito engajado e em nada partidário - já não acredito muito em partidos, que proliferam como ervas daninhas -, mas totalmente engajada no humano: decência, dignidade, direitos, deveres, alegrias, vida (e morte, que faz parte).

Quero dizer que sempre que generalizo estou errando, mas também isso faz parte. Não há espaço nem tempo, aqui no jornal, nem na minha vida diária, para enumerar o que não precise ser simplificado numa generalização.

Mais que tudo: estar de olho no outro lado das coisas, das pessoas, dos conceitos. Então, sim, tenho nos achado muito agressivos. Hostis a tudo que não é do nosso lado, nossa raça, nossa cultura ou nossa ignorância. Muito melancólico: redes sociais, noticiosos de tevê, jornal ou rádio, discussões em bar, reuniões de família ou de amigos... a qualquer momento pode irromper a voz bruta das acusações, do desprezo, da ironia.

Verdade que os exemplos que vêm do alto, onde estão ou deveriam estar os líderes a nos indicarem caminhos de comportamento, ambições, projetos e sonhos, não andam lá grande coisa. Confusão e incertezas, insegurança e as vezes cretinice, também no Exterior. Indiferença com a dor alheia, de parte das mais importantes autoridades do mundo: centenas, milhares de velhos, mulheres, crianças, expulsos, abandonados, entregues à sorte mais maligna, e, além de uns pequenos protestos, ninguém faz grande coisa. Não é responsabilidade nossa e na verdade pouco podemos fazer. A roda do tempo gira implacável, os costumes vão mudando, para frente, para trás, e nós, olhando. Sentindo, muitas vezes sem conseguir explicar, que há um outro lado em tudo isso.

Confundidos, reclamamos: mundo injusto, patrões exigentes, pais ou mães distraídos ou ocupados demais, amigos desleais, amantes traidores, salário pequeno, enfim, nos queixamos. Mas em geral isso disfarça a nossa arrogância - porque queremos ser considerados os melhores. Mesmo nos iludindo, achamos talvez que somos os melhores, e que merecemos começar o primeiro emprego com posto e salário de gerente, por exemplo.

Na verdade, no fundo mais fundo, há sempre o outro lado: a arrogância disfarça a insegurança; a brutalidade esconde medo da própria delicadeza; o dedo na cara do outro esconde o impulso de recuar com as costas contra a parede; o cinismo disfarça o romântico desejo de companhia e amor verdadeiros. A preguiça disfarça o cansaço ou a enfermidade; a profusão de afetos elaborados, traições e crueldades esconde possivelmente um agudo, sofrido, desejo de ternura e abraço.

Enfim, se estamos mais agressivos, estaremos quem sabe mais assustados, mais, mais... órfãos?

LYA LUFT

19 DE OUTUBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Joker

Que personagem adotar para que a sociedade preste atenção em nós? Nascemos carentes: precisamos de quem nos alimente e nos proteja, e dá-lhe biquinho, choro, mamãe, eu quero. Com sorte, receberemos amor e comida em troca, e aí será a hora de entrar para a escola: como ser benquisto em território desconhecido? Nossa adequação ajudará a fazer amigos, nossas estranhezas resultarão em bullying. Figurino, maquiagem e texto poderão facilitar nossa entrada na vida que sonhamos ter. "Seja você mesmo" é um conselho que só serve para aqueles que já sabem quem são, mas até aqui, estamos falando de quem ainda está tentando descobrir quem é - e como se fazer notar.

Arthur Fleck já está bem grandinho e ainda não sabe qual é a sua turma. Tenta fazer seu trabalho direito, mas é desprezado e humilhado. Os distúrbios mentais que traz da infância não ajudam nada. É um desajustado e tudo indica que continuará fantasiando que é popular e atraente, enquanto só apanha da vida. Até que entra em colapso: descobre que foi enganado pela única pessoa que o amava. Fim de linha. Só lhe resta virar o jogo da forma mais trágica que há. Estou falando dele, o Coringa que está em cartaz comovendo multidões.

Um bandido comovente? Muito prazer. Mais um ser humano que precisa de amor e atenção, como todos. Quem não tem uma coisa nem outra, busca alternativas patéticas e até mesmo radicais para consegui-las (inevitável pensar nas redes sociais, onde cada um pode abrir sua janelinha e dizer: "Olha eu aqui!". A internet é o picadeiro de todos nós, inclusive de malucos ávidos por se transformarem em super-heróis, mesmo que às avessas).

Coringa é um arrebatador filme de ficção sobre um personagem que todos conhecem, o arqui-inimigo do Batman. Só que o maniqueísmo recorrente dos quadrinhos deu lugar a uma inquietante indagação: de que lado, afinal, eu estou? Inevitável torcer por Arthur Fleck (interpretado pelo magistral Joaquin Phoenix), um pobre diabo que alguém muito "bonzinho" resolveu presentear com uma arma, a fim de que ele pudesse se proteger por conta própria, e o resto da história não é difícil de imaginar, Gotham City é aqui.

O mundo não é dividido entre bons x maus, e sim entre visíveis x invisíveis, acolhidos x desacolhidos, escutados x ignorados. "Seja você mesmo" é uma falácia para muitos, pois dificilmente saberemos quem somos se não tivermos uma certidão oficial de nascimento e o registro de um afeto e de um cuidado verdadeiro nos primeiros anos de vida. Sem isso, caímos

no mundo com uma bola vermelha no nariz, sendo ridículos para chamar a atenção, até que a nossa dor atinja em cheio o coração alheio: comova-se ou morra. Não é um conto de fadas, mas o filme, de forma meio cínica, termina com o lendário e romântico The End em letras cursivas - como se a busca pela nossa identidade terminasse um dia.

MARTHA MEDEIROS


19 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Furtando de si mesmo

Sou o meu pior ladrão. Todas as vezes em que perdi a carteira, eu mesmo me furtei.

Tirei do lugar costumeiro para esconder em algum ponto remoto, para ninguém achar. Só que é tão bem escondido que nem eu me lembro. Tampouco há uma senha de lembrança para reconstituir as pistas.

Isso já aconteceu quando abri a minha casa para uma festa de 60 pessoas. Metade dos visitantes seria desconhecida. Enfiei a minha carteira dentro do sapato social, que não uso com frequência.

No dia seguinte, eu não sabia se limpava o apartamento ou pulava para São Longuinho. Eu guardava a certeza de que estava em casa, mas onde? Não havia jeito de puxar o carretel da memória. Restava-me a cena anterior promissora de ter localizado um ótimo esconderijo.

Bloqueei os meus cartões, recebi novos, dei o dinheiro por desaparecido, perdi tempo e gastei boletos refazendo a identidade e a carteira de motorista, foi uma maratona de burocracia, até que fui convidado a um casamento e reencontrei a carteira ao calçar os sapatos. Três meses depois, lá estava o couro gordinho dormindo na sola. Nada ali mais prestava. E jurava que havia três notas de R$ 100, quando sobraram apenas duas de R$ 50. Quando perdemos algo, juramos que havia mais grana - doce ilusão.

Se nenhum colega casasse, nunca reaveria os pertences. Botei na cabeça que não repetiria a tacanha ideia. Tinha aprendido a lição.

Mas voltando de uma feijoada na residência de amigo, em que emprestei meus cacarecos, não conseguia carregar o jogo de pratos e copos sozinho, estava de bermuda, os documentos caíam perigosamente do bolso e inventei de pôr a carteira dentro da panela. Para quê?

Eu não escondi, eu a enterrei com tampa e tudo na despensa.

Ela morreu na panela de feijão por um semestre. Quando a redescobri, passou tempo demais para manter viva a esperança. Experimentei a mesma custosa ressurreição de vida bancária e pessoal.

Não contei para a família o que aconteceu. Faltou coragem para admitir tamanha tolice. Não queria que eles pensassem que eu era burro. Esquecido sim, admito, mas burro, jamais.

CARPINEJAR


19 DE OUTUBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

PAULÃO, O PATRIOTA

O inesquecível encontro de um brasileiro com uma loira americana em Nova York. Paulão diz que nunca sentiu tanto tesão por uma mulher.

Conheceram-se durante o estágio que ele fez no hospital da Universidade Cornell, no Estado de Nova York, num jantar oferecido pelo professor do departamento de cirurgia, para os médicos que participavam de um simpósio.

Estranhou o convite: - O professor mal percebia minha existência. Não era sempre que me cumprimentava nos corredores.

Uma vez, por ocasião de um congresso em Boston, o acaso colocou os dois sentados lado a lado, no avião. - Ele me disse good morning, com um meio sorriso, abriu a pasta, pegou uma revista científica e passou o resto da viagem lendo e grifando o texto. Na saída, murmurou goodbye.

Na véspera do jantar, Paulão comprou um terno azul-marinho e pagou US$ 120 por uma gravata de grife. As mangas do paletó ficaram compridas, inconveniente que a vendedora contornou com meia-dúzia de alfinetes de gancho.

Com medo de chegar atrasado, às cinco da tarde já tinha tomado banho, feito a barba pela segunda vez no dia, vestido o terno, conferido a posição dos alfinetes e acertado a simetria do laço da gravata, depois de seis tentativas.

Cinco para as oito, desceu do táxi em frente à porta art noveau do prédio da Park Avenue, no Upper East Side, reduto das famílias mais abastadas. O porteiro de luvas brancas que o recebeu verificou se o nome estava na lista e o acompanhou pelo saguão de mármore até a porta do elevador.

O papel que revestia as paredes da sala mostrava um campo coberto de relva com flores miúdas a perder de vista e um bando de pássaros no horizonte. Os sofás e as poltronas eram de veludo verde-escuro, num estilo que ele só tinha visto em museus. Todos os homens estavam de terno e gravata e as mulheres, de vestidos escuros.

Nascido e criado numa família de feirantes da Mooca, na zona leste de São Paulo, Paulão ficou pouco à vontade, com receio de que notassem os alfinetes do paletó naquele ambiente requintado.

Depois de cumprimentar os colegas do departamento e de ser apresentado às pessoas que não conhecia, parou numa rodinha de residentes do hospital, com os quais passava as visitas na enfermaria.

- O inglês do indonésio e do indiano não era fácil, o dos dois americanos seria, se falassem mais devagar. Eu concordava com tudo. Conforme a reação deles, ficava sério, sorria ou dava risada.

De frente para a porta, diz que foi o primeiro a vê-la entrar:

- Loiríssima, de cabelos soltos, vestido curto, vermelho-escarlate, agarrado no corpo, deu um sorriso na minha direção que iluminou a festa.

Quando serviram o jantar, não pôde crer: ela veio sentar a seu lado, na mesinha junto à janela.

- Quando ela chegou com o prato, meu inglês ficou melhor do que o do Brad Pitt.

Era sobrinha do professor, dava aula de artes plásticas na Universidade Columbia, viajava e falava de si mesma, com toda desenvoltura. Nenhum interesse pela vida dele, nem quis saber de onde era, mas Paulão não deu a mínima, tinha os olhos encantados pelo azul dos dela. No dia seguinte, o coração bateu forte quando o celular chamou.

O jantar foi num restaurante japonês, no decorrer do qual ela voltou ao tema da recepção na casa do tio: ela mesma.

- Quando pedimos a conta, perguntei onde seria o próximo encontro. Num hotel, ela respondeu. Só não caí de costas porque estava sentado. Nem tinha pegado na mão dela.

Foram os três dias mais longos da vida do nosso conterrâneo.

Ela o recebeu na porta do quarto. Vestia um négligé de seda vermelho como vestido da festa. Na mesa, uma garrafa de champanhe, um cesto de frutas, um prato de biscoitos e outro com queijos variados.

- Quando tenho orgasmos, fico morta de fome - explicou.

Advertido por um amigo que morava nos Estados Unidos de que as americanas contam a vida antes de ir para a cama, ao contrário das brasileiras, que o fazem na ordem inversa, ele conteve a ansiedade e fingiu estar diante das reflexões mais reveladoras da alma humana.

Até hoje Paulão não entende como tanto desejo pôde resultar num vexame tão retumbante. As justificativas para explicar a impotência só fizeram agravar a humilhação.

Ela foi magnânima. Em tom maternal, aconselhou-o a não ficar acabrunhado com um fato corriqueiro na vida dos homens. Foi pior, ele notou uma ponta de desprezo na fala.

Acabavam de se vestir, quando ela rompeu o silêncio constrangedor:

- Where are you from? - From Argentina - respondeu ele.

DRAUZIO VARELLA

19 DE OUTUBRO DE 2019
JJ CAMARGO

O QUE OFERECER QUANDO NÃO HÁ O QUÊ

Aquela conversa foi reveladora do quanto o jeito de sofrer é individual e intransferível

Tinha sido uma noite difícil, com os marcadores de infecção progressivamente piores, a frequência cardíaca alta, a pele pegajosa, e a dificuldade de obter-se um equilíbrio entre o nível de sedação do Luciano e o regime ventilatório proposto para a máquina. O cansaço físico é um mau conselheiro porque multiplica desânimos, e por mais que me esforçasse para encontrar uma notícia que prenunciasse alguma mudança de rumo, minimamente otimista, tudo dizia que não.

A mãe, viúva, uma mulher muito bonita, com uma elegância que desafiava a tristeza do momento, levantou-se quando saí da UTI e, com um neto em cada mão, preparou-se para ouvir. Metade pelo desespero de poupá-la, metade porque não conseguiria dizer o quanto o pai estava mal aos seus filhos adolescentes, escorreguei por uma esperança mentirosa.

Interpretando a mensagem positiva como uma frágil trégua na novidade assustadora do sofrimento, os garotos ganharam da avó o direito ao pátio ventoso.

Sem outras testemunhas, a mãe do Luciano me abraçou para agradecer:

- Obrigado, doutor, por me dar um tempo extra para preparar os meninos. Quando vi o seu ar de desânimo saindo da UTI, mais do que temer a verdade integral, eu entendi naquele instante que meus netos não suportariam o baque de perder o pai. Agora, vou ter de achar um jeito de administrar a revolta. Só me diga que tempo ainda terei para isso!

Para mim, aquela conversa foi reveladora do quanto o jeito de sofrer é individual e intransferível. Pensaria sempre numa mãe de único filho, como o ponto fraco da cadeia familiar do sofrimento, mas ela estava lá, impávida, choro por dentro e rocha por fora, porque alguém precisava manter o equilíbrio e preservar nos netos, pelo tempo que fosse possível, o que ela já perdera no filho: a esperança.

A verdade absoluta, que não pode ser omitida da família, ou de quem a represente, não pode ser imposta ao paciente sem que ele tenha manifestado o desejo explícito de conhecê-la. E ainda assim, não se pode esquecer que muitas vezes, no desamparo da situação, a pergunta direta, "Eu vou morrer, doutor?", tem apenas a pretensão desesperada de ouvir a negação confortadora.

A ideia recorrente de que o paciente precisa ser preparado para o pior é uma tolice. Nascemos para a felicidade, e portanto toda a tragédia sempre nos surpreenderá. Antecipar a amargura do futuro só significará sofrer mais, por começar antes.

Toda a informação infausta em um único pacote é, antes de tudo, crueldade. Ninguém tem todos os escudos de defesa disponíveis no primeiro instante de um enfrentamento que precisará ser amadurecido com a solidariedade dos amados, o ombro dos amigos, a confiança nos médicos, e qualquer outro recurso, mais subjetivo, incluindo fé e negação.

A sensibilidade médica é o maior requisito para transitar neste terreno movediço. E ela deve se expressar pela capacidade de filtrar informações desnecessárias, de evitar propostas falsas de tratamentos milagrosos, e de jamais abrir mão da oferta de parceria, porque não há nada mais generoso neste transe de dor do que o paciente saber, sem que ninguém lhe tenha dito, que mesmo quando não houver mais nada para fazer, o doutor que foi capaz de plantar nele esta confiança ainda estará ao seu lado. Porque isso é tudo o que se espera de um parceiro.

JJ CAMARGO

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