sábado, 6 de fevereiro de 2021


05 DE FEVEREIRO DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

Boemia 

Desta vez a pergunta veio do Arthur de Farias, um velho amigo que goza de merecidíssima fama em nosso cenário musical. Depois de alguns graciosos salamaleques, ele escreveu: "Por acaso, tu sabes por que se fala boemia e não boêmia? Minha hipótese furada é que a culpa é do erro de prosódia do Adelino Moreira, na música cantada com aplastador sucesso pelo Nelson Gonçalves. Meu avô, que era anterior a isso, falava boêmia. Renovados votos de estima e consideração".

Caro Arthur, nem sempre podemos descobrir o porquê de uma mudança ocorrida no idioma, mas isso não quer dizer que não exista, em algum lugar, uma explicação para ela. Como aprendi com o mestre Luft, nada acontece por acaso em linguagem; posso não enxergar agora a sua motivação, mas tenho certeza de que ela está lá, na nuvem, esperando que a encontrem.

Primeiro vamos aos fatos: boêmio (fem. boêmia) é, originalmente, o adjetivo gentílico dos naturais do reino da Boêmia, anexado, no início do século 20, à antiga Tchecoslováquia. Reza a enciclopédia que na França, desde o fim da Idade Média, o nome bohème era também aplicado aos ciganos, os quais, segundo a crença popular, teriam entrado em terras francesas vindos daquele reino.

No século 19, o termo naturalmente passou a designar também os jovens artistas, intelectuais, jornalistas, atores e poetas que levavam um estilo de vida anticonvencional, alternativo, ao sabor do dia, tão frugal que às vezes beirava a miséria. Fala- se então numa vida boêmia, no círculo boêmio, nas festas boêmias, na geração boêmia. Contudo, na hora de criar um substantivo para designar este tipo de vida - o Inglês criou bohemianism, algo assim como "boemianismo" -, o Francês, de onde tiramos o termo, optou pelo feminino do adjetivo: la bohème: a boêmia literária, a boêmia do Quartier Latin, etc. Puccini compõe sua ópera La Bohème e Aznavour (por que não?) canta o seu grande sucesso com o mesmo título, uma rememoração nostálgica de uma juventude pobre mas feliz ("Boêmia, boêmia/significava: somos felizes/boêmia, boêmia/só comíamos a cada dois dias", diz o estribilho).

Ora, o termo foi importado da França tanto pelos portugueses quanto pelos brasileiros, e as duas formas, boêmio e boêmia, vieram no seu pacote original, com fitinhas e cheiros de alfazema, como diria um Eça de Queirós. Aqui, no entanto, o feminino boêmia sofreu uma adaptação - talvez fosse melhor dizer uma especialização - que Portugal não adotou: quando se trata do substantivo que designa o tipo de vida que os boêmios levam, nossos falantes deslocaram o acento tônico para o "i", fazendo-o rimar com alegria. "Ah, a bela boêmia do Quartier Latin" (uma mulher), para nós, portanto, é diferente de "Ah, a bela boemia do Quartier Latin".

Aqui deve ter influído um padrão morfológico bem conhecido por nós: o uso do sufixo _ia, com o "i" tônico, para formar substantivos derivados de adjetivos: covarde, covardia; ousado, ousadia; teimoso, teimosia; boêmio, boemia. A mudança não foi vista com bons olhos pelos mais conservadores, mas hoje podemos escolher livremente entre as duas propostas, assim como podemos escolher (com a autorização dos gramáticos mais caturras) entre Oceânia e Oceania ou ortoépia e ortoepia. Adelino Moreira não errou.

CLÁUDIO MORENO

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