sábado, 5 de março de 2022


05 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Um novo olhar

Cerca de 10 anos atrás, estudei em Londres com uma professora inglesa de pele diáfana, com quem eu passava as tardes em conversação, a fim de me aprimorar no idioma de Shakespeare. Entre vários assuntos, falávamos também sobre vida pessoal. Várias vezes ela mencionou seu namorado, um economista. Planejavam se mudar para Ibiza assim que ele terminasse o doutorado. Só no último dia de aula ela mostrou a foto do moço, e me dei conta que eu sempre o imaginava como sendo branco.

Corta para semana passada, quando voltei de uma temporada carioca e postei nas redes algumas fotos de encontros com amigos. Atenta, a escritora e atriz Elisa Lucinda, com quem também me encontrei, enviou um áudio zombeteiro para meu WhatsApp: "Descobri através das suas fotos no Instagram que sou sua cota no Rio". Ela tem intimidade suficiente comigo para disparar essa flecha, e que bom que o fez.

Anos atrás, Elisa, que é negra, gravou uma entrevista contundente, falando de como pessoas brancas entram num restaurante onde só tem brancos e não percebem que há algo errado com isso. "Se tem territorialidade, tem apartheid", denunciou ela.

Hoje vemos negros e pardos em plateias de teatros, em concertos de piano, dentro de aviões, mas o número ainda é infinitamente inferior à metade que lhes cabe em representatividade, uma vez que são mais de 50% da população. É um avanço contar com Gaby Amarantos e Emicida apresentando programas de tevê, ver elencos de novela menos desiguais, modelos negras nas passarelas e propagandas, mas ainda é cota. Elisa é uma amiga que a arte me deu. Ela não foi minha colega no colégio, não a conheci na academia de ginástica, não frequentamos a mesma sala de espera do médico, ela não foi minha cunhada, não chefiou departamentos nos locais em que trabalhei. Quem se atreveria a dizer que o termo "apartheid" é um exagero?

Vim da classe média alta do sul do país, o que explica meu quase inexistente contato social com negros, mas isso não me aliena da luta contra o racismo, ao contrário. Sei que cabe ao governo diminuir a desigualdade, mas e a parte que cabe a nós? Refletir sobre os nefastos condicionamentos culturais que herdamos é urgente. Se alguém comentar sobre uma empresária que está se destacando no mundo dos negócios, é básico supor que ela seja negra, assim como a terapeuta que uma amiga nos recomenda, assim como o economista por quem minha professora se apaixonou. Qual o espanto? O mundo não é dos brancos, o universo produtivo e intelectual pertence a todos. É constrangedor escrever essa obviedade, é vergonhoso, mas expor as fissuras comportamentais de uma criação apartada dos negros e de sua história também é uma forma de reparação. Elisa, toque aqui.

MARTHA MEDEIROS

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