sábado, 5 de março de 2022


05 DE MARÇO DE 2022
ELIANE MARQUES

COMO EVITAR O DESTINO DA GUERRA

Em setembro de 1932, Freud responde a Einstein carta na qual este lhe pergunta acerca dos modos de se evitar o destino da guerra ("O porquê da guerra", 1933). Freud se assusta com a questão, mas logo compreende que Einstein pede apenas considerações de natureza psicológica sobre o tema. Entre outras conjeturas, o físico desconfia que tendências ao ódio e à destruição entusiasmam a humanidade para a guerra, com o que concorda o psicanalista, assentado em parte da teoria das pulsões. A pulsão de morte está amalgamada à pulsão de vida; uma tende a conservar e unir; a outra, a matar e desagregar. A pulsão de morte é ubíqua e serve à pulsão de vida - destruímos algo estrangeiro a nós em lugar de nos destruirmos.

Em O Mal-Estar na Cultura (1930), texto no qual espanca quaisquer dúvidas sobre a pulsão de morte, o psicanalista dirá que, aos apreciadores de contos de fadas, não lhes agradam conjeturas sobre uma pulsão agressiva constitutiva, pois acaso deus nãos nos criou à imagem de sua própria perfeição? Talvez advenha de tal crença a dificuldade de conciliarmos a existência do mal (especialmente aquele que nos habita) com a onipotência e a bondade de deus. De forma cômica, Freud postula que o diabo cumpriria função econômica de descarga idêntica à que o judeu cumpre no mundo dos ideais arianos e, digamos, todos os nãos brancos cumprem no mundo embranquecido. O diabo seria o subterfúgio perfeito para desculparmos deus.

Nesse sentido, "Amarás ao próximo como a ti mesmo" não seria diferente de "Amarás a teu inimigo". Ainda que nos mascare um verniz de ética cristã, sejamos ateus ou professemos outra religião, não concebemos próximo nenhum como merecedor do nosso amor. Qualquer próximo é mais inimigo do que amigo, especialmente se ele se mostrar como um alienígena à comunidade dos semelhantes. Portanto, o próximo não representa apenas um possível colaborador ou objeto sexual, senão um motivo de tentação para satisfazermos nele nossa agressividade, para explorarmos sua capacidade de trabalho sem lhe retribuir, para lhe causarmos sofrimento, martírio e assassinato. As relações sociais são perturbadas por tais tendências agressivas. Devido a elas, a sociedade se vê às margens da desintegração - as paixões pulsionais são mais poderosas que os supostos interesses racionais.

A comunidade dos semelhantes, antes referida, não diz respeito apenas à classe social em sentido amplo (raça, orientação sexual, identidade de gênero, classe em sentido estrito, nacionalidade...), inclui também a semelhança do escrever, do articular concepções teóricas, enfim, o modo de viver. Se suas decisões forem diferentes do que prescrevo como correto ou, melhor, se seu modo de gozo for diverso do meu, certamente o tal próximo será um degenerado, mais um tombado da esfera celeste onde me encontro junto com os deuses meus semelhantes. Cabe apenas empreender outra guerra contra ele, na ignorância de que ele é outro de mim mesmo.

ELIANE MARQUES

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