sexta-feira, 5 de agosto de 2022


05 DE AGOSTO DE 2022
EM DIA

A MÃO SOB A SAIA DA MONA LISA

No filme O Advogado do Diabo, há uma cena memorável em que Al Pacino, no papel de Lúcifer, explica quem é ao jovem Kevin (Keanu Reeves), dizendo: "Sou a mão sob a saia da Mona Lisa! Olhe para mim, Kevin! Sou uma surpresa? Eles não me enxergam chegando". É fato que poucas coisas geraram mais debates na história da arte quanto o sorriso enigmático de Mona Lisa. Não se sabe se é de ironia, desprezo, sedução, indignação ou até felicidade. Mas ele chega sutilmente, quase despercebido? E ganha proporções lendárias.

Ano passado fomos surpreendidos por um vilão sutil, desses que chegam sorrateiros e se instalam: a inflação, que andava apagada, chegou a mais de 25% segundo o IGP-M. E, de repente, nos vemos na obrigação de examinar a legislação do imposto de renda brasileiro, que faz de conta que nossa moeda não se desvaloriza.

Se você pretende vender sua casa, saiba que tudo o que receber do comprador vai ser considerado lucro e servirá de base para a cobrança de imposto de renda, com cega desconsideração dos efeitos corrosivos inflacionários.

Se você está feliz que aplicou seu rico dinheirinho a uma taxa Selic de dois dígitos, saiba que na hora que ele render, o Leão não vai querer saber se boa parte do que aparentava ser seu "rendimento" era meramente reposição do valor da moeda no tempo. E que o limite das deduções com dependentes e educação na declaração, historicamente, sempre foi corrigido abaixo da inflação, como se seus gastos não aumentassem. Quem é servidor público e está com seus vencimentos congelados sabe bem do que estou falando.

Na prática, a inflação converte o imposto de renda em um imposto sobre receita, uma base muito maior e distinta, que considera apenas o quanto ingressou no seu bolso sem se importar se isso é lucro ou não. E isso não poderia ser assim, afinal ele só pode recair sobre aquilo que, em sentido próprio e técnico, for considerado "renda". A mão sob a saia da Mona Lisa chega silenciosamente, sem avisar, mas desta vez provoca um sorriso bastante óbvio, de profunda indignação do contribuinte. Esperamos que este sorriso instale os mesmos acalorados debates; e que eles sirvam para limitarmos o imposto de renda aos seus contornos reais.

FABIO BRUN GOLDSCHMIDT

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