sábado, 6 de maio de 2023


06 DE MAIO DE 2023
CARPINEJAR

Os inesquecíveis bobes nos cabelos

Você se lembra da Dona Florinda do programa do Chaves? Hoje ela não existiria mais. Também perderia metade do encanto a matriarca do sincericídio, Dona Hermínia, de Minha Mãe É uma Peça, criação do saudoso Paulo Gustavo.

Ambas as figuras eram caracterizadas pelos bobes nos cabelos. Com a consolidação da chapinha e do babyliss, eles desapareceram da prática cotidiana do embelezamento. Bobes colocados na horizontal davam volume e criavam ondas. Bobes na vertical alisavam. Eu passei a infância acompanhando a minha mãe e a minha irmã com bobes nos cabelos, recurso primitivo da época para ajeitar os penteados na véspera das festas.

Demorava para os fios ganharem curvas. Tratava-se de uma imersão que começava no final da manhã, atravessava o almoço e terminava no Jornal Nacional. Elas não poderiam atender nenhuma visita. Gritavam a cada silvo da campainha: "não estou para ninguém".

Armadas de vassouras, viviam correndo os três guris de perto, para não incomodarmos, para não entrarmos no quarto, território sagrado da preparação estética. O secador representava uma função à parte. Chuveiro estava proibido para não cair a energia de repente.

As mulheres pareciam astronautas da beleza pisando na Lua. Quando ficavam prontas, eu não mais reconhecia a minha irmã e a minha mãe. Evaporavam em nossa frente. Elas se tornavam iguais às Panteras, sósias de Farrah Fawcett, com a moldura arredondada e volumosa brilhante adornando os rostos.

Lá vinham elas com o gelo seco abrindo o espetáculo de nossos olhos. O cheiro de cera do piso do ambiente cedia espaço para a neblina do spray fixador. O mais impactante para a minha sensibilidade é que eu testemunhava a lenta transformação da aparência, o antes e o depois, o camarim e o palco, o que aumentava o maravilhamento, o pasmo e a surpresa.

Sem o amparo de um salão e daqueles capacetes metálicos, havia todo um trabalho artesanal. Era necessário preparar um por um dos rolinhos com um número incomensurável de grampos.

Atualmente, não se vê mais o mesmo martírio. Em compensação, foram extintos os bastidores divertidos da arrumação. As pessoas se trancam no banheiro e saem de lá em minutos, como num passe de mágica.

Não acompanhamos mais as etapas de transmudação, o esforço cinematográfico de produção de nossas celebridades caseiras. Não desfrutei dessa experiência com a minha esposa. Já começamos a namorar com as benesses práticas da modernidade.

No máximo da informalidade, eu a observo com a touca transparente para o banho. Nada que dure muito tempo para sacrificar o mistério da relação. Beatriz é que pega no meu pé na nossa intimidade. Não entende o motivo de eu usar pijama com bolso. Ela me pergunta se, por acaso, vou levar a minha identidade para a cama.

Nem a identidade cabe naquele bolsinho. Serve só como suporte para os comprimidos, coisa de velho cheio de deliciosas reminiscências familiares, que precisa se esforçar para se lembrar do presente e tomar os remédios de madrugada.

CARPINEJAR

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