domingo, 29 de novembro de 2015



29 de novembro de 2015 | N° 18370 
MARTHA MEDEIROS

Sexo casual


Por mais que o sexo seja livre, considero um desperdício utilizá-lo apenas como sessão de aeróbica

A maioria das pessoas com quem convivo é casada ou está num namoro estável, mas outro dia almocei em São Paulo com uma amiga solteira, com pouco menos de 30 anos, e acabamos tendo uma conversa interessante sobre os novos formatos de relacionamentos amorosos, tudo por causa de um livro que ambas havíamos lido. Estou falando de Pagando por Sexo, do cartunista Chester Brown, em que, por meio de uma história em quadrinhos, o autor conta por que desistiu do amor romântico em troca da prostituição. Polêmico, mas um retrato interessante da desilusão atual.

Qual a importância do sexo nas relações? A monogamia ainda se sustenta? Só sexo basta?

Foi quando nós duas começamos a falar sobre rolos, essa modalidade tão em uso atualmente. Relações sem compromisso, sem rotina, sem fidelidade, sem ciúmes. Apenas com sexo de vez em quando. Precisa mais?

Essa minha amiga comentou que conhecia outra garota na faixa dos 30 que dizia já ter transado com 650 caras. Não sou boa em matemática, mas resolvi calcular: supondo que ela tenha vida sexual desde os 15, vem transando com um homem diferente a cada oito ou nove dias, ininterruptamente, sem contar as recorrências. Se não for uma profissional do ramo, é uma boba que gosta de contar vantagem. Se não for uma coisa nem outra, então o mundo mudou mais rápido do que consegui acompanhar.

Em que momento o romantismo morreu?

O rolo é vantajoso. O sem isso e sem aquilo pode ser muito benéfico numa etapa da vida em que a ninguém tem mais paciência para investimentos afetivos sérios, mas essa racionalização não me parece afrodisíaca.

Por mais que o sexo seja livre, pleno e ótimo, considero um desperdício utilizá-lo apenas como sessão de aeróbica. Pode ser sem compromisso, sem rotina, sem fidelidade e sem ciúmes, mas que graça terá se não houver um encantamento mínimo, um brilho se insinuando no fundo do olho?

Sexo casual também é encontro. E, como tal, se torna mais estimulante quando se vale de alguns aditivos que passam longe da cama. Um Whatsapp no meio da tarde dizendo que bateu saudade, um telefonema no fim da noite pra dizer “dorme bem”, uma confidência trocada, um cuidado em não magoar, pequenas gentilezas que fazem parte do jogo. Jogo? Sim, jogo. É ou não é uma relação entre adultos? Então sem falsa inocência. É um jogo.

Não se está falando de amor pra sempre, e sim de um relacionamento sem vínculos, mas que nem por isso precisa evitar pequenas graciosidades que tornam a confluência mais terna. Porque senão passa-se o rodo em centenas e só o que se leva disto é uma boa pontuação no ranking.

Sem apego, sem sentimento, sem exclusividade, sem troca, sem planos. Nada contra, cada um sabe de si. Mas acho mais palpitante com.



29 de novembro de 2015 | N° 18370 
CARPINEJAR

Fiador da desgraça

O que eu já vi de pessoas que não amam mais acabarem se envolvendo em projetos duradouros como casamento e filhos. Ensaiam o discurso do fim e alteram bruscamente a rota quando confrontados.

Em vez de recuar, apressam os passos. Em vez de soltar as amarras de uma relação problemática, apertam os laços. Em vez de sair, entram ainda mais dentro de casa. Em vez de dizer a verdade, prestam declarações eternas. Em vez de quitar os juros emocionais, realizam mais dívidas.

Estão a um triz da separação e compram anéis de noivado ou marcam igreja ou decidem ter uma criança.

Confundem a porta de saída com a de entrada, e se lançam com unhas e dentes para uma última e redentora chance, que não mudará em nada o desgaste de um longo isolamento a dois.

A boca desmente o desejo e complica o desenlace. A palavra expressa exatamente o inverso das verdadeiras intenções. Se era difícil largar, será impossível a partir de agora.

Sempre me chamou atenção o quanto existem casais caminhando ao contrário de suas decisões. Talvez por culpa. Talvez pela vergonha da solidão. Talvez pela ilusão de se ver mais responsável pela felicidade do outro do que pela própria felicidade. Talvez por comodismo. Talvez para evitar a decepção de quebrar uma promessa. Talvez pela necessidade de ser melhor do que realmente é. Talvez por não admitir que fracassou. Talvez por faltar forças para recomeçar. Talvez por entender o tempo como investimento e achar que se dedicou excessivamente para jogar tudo fora. Talvez por supor que o ruim é, ao menos, conhecido.

Qualquer que seja o motivo, o melindre de decepcionar e desagradar impulsiona os maiores erros. O receio é de quê? Que no fundo ela ou ele fale mal de você? Mas não tem como controlar os pensamentos alheios nem dentro da convivência, muito menos fora.

Trata-se de uma atitude fóbica, parecida com a vertigem: é tanto o medo de cair que a vontade é cair mesmo para terminar logo com o medo.

Você percebe o esgotamento da rotina e assume pendências para os próximos cinco anos. Pretende ir embora e começa uma reforma sem precedentes. Pretende ir embora e adquire um cachorro. Pretende ir embora e interrompe o anticoncepcional.

Não há limites para o boicote. Você se afoga nas lágrimas e nada em direção a uma dor maior. Você tenta disfarçar o que sente fazendo o oposto, e aumenta as expectativas e engrossa as mentiras.

Na vida amorosa, o “não” vive se escondendo perigosamente no “sim”. Até terminar do pior jeito, deixando alguém plantado no altar ou com uma criança no colo.

sábado, 21 de novembro de 2015


22 de novembro de 2015 | N° 18363 
CARPINEJAR

Viagra natural


O maior afrodisíaco do homem é se sentir desejado. É de menos a beleza e a aparência, por mais que soe cabotino de minha parte, o homem se apaixona quando vê que é desejado. Muito desejado. A descrição aumenta o prazer, a antecipação reforça a vontade.

É irrelevante se a mulher é alta ou baixa, loira ou morena, feia ou miss, com quilos a mais ou a menos, o que adiciona coragem no homem é o discurso arrebatado, a volúpia e a excitação de sua companhia.

A dúvida alimenta o imaginário feminino, por sua vez é a certeza que impulsiona o homem. A convicção. O filme precisa ser legendado e dublado ao mesmo tempo. Qualquer desconfiança do objeto amoroso desencadeia desvalia e ressentimento.

Quando a mulher desenha, diz o quanto o quer, quando promete e anuncia o que fará, quando explica o motivo dele ser o eleito, o homem pira de felicidade.

Ele joga melhor com a vantagem no placar. Odeia ser humilhado e constrangido – é um carente, é uma criança emocional, busca reconhecimento no sexo e no amor. Ele se afastará do relacionamento que subestime o seu desempenho ou o critique em demasia. Não é maduro o suficiente para rebater as ofensas e seguir adiante.

Excitação masculina é elogio, é declaração de exclusividade, é manifesto de virilidade. Facilmente influenciável, folgadamente impressionável, depende do retorno efusivo, da resposta para definir se está agradando. Pode bajular que ele não se importa, pode exagerar que oferece um desconto.

Todo homem é um político na cama, refém do Ibope, das pesquisas de opinião, da crença do voto. Não vive sem o panfleto, o folder de suas realizações e de sua propaganda eleitoral.

Sua alegria é tributária dos enredos e das fantasias, das mensagens picantes e áudios fora de hora, das insinuações ao telefone. Ele gosta da preparação, do aviso, de alguém que se renda aos códigos e dialetos da intimidade.

Pois ser procurado ou procurar é para o casal que transa pouco e não se provoca ao longo do dia, é problema de quem não está conectado sexualmente.

Mas não se deve confundir desejo com submissão. A submissão é broxante, envolve desagradável imposição e ausência de livre-arbítrio. O que ele anseia é ser escolhido pela mulher, adorado pela mulher, que ela confesse a plena excitação em seus ouvidos, que o beijo, o gemido e a palavra venham sempre misturados.


22 de novembro de 2015 | N° 18363 
PAULO GERMANO

A maconha que fumei


Já fui maconheiro. Fumava de dois a três baseados por dia.

No início, era bom: tocava nos Gabardines, saudosa banda de rock dos tempos da faculdade, e as letras e melodias me assaltavam a mente e me escorriam pelos dedos com incontrolável facilidade. Uma usina de criação, era o que eu era.

O lado ruim se manifestava na rua. Havia sempre alguém me olhando. Com o tempo, havia sempre alguém me julgando – e me achando ridículo. Meu primeiro ataque de pânico foi num show do Mark Knopfler, no Gigantinho, quando tive a clara impressão de que o próprio Mark Knopfler me achava ridículo: o olhar dele me encontrava o tempo todo em meio a 14 mil pessoas que também me achavam ridículo, e tive a certeza de que Mark pensava:

– O que faz no meu show um rapaz tão ridículo? Desmaiei.

A paranoia continuou me perseguindo, não conseguia mais me aproximar de mulher nenhuma. A criatividade do início deu lugar a uma lentidão de raciocínio devastadora. Virei um recluso improdutivo. E cada vez mais me sentia burro e feio e principalmente ridículo.

Conclusão: a maconha faz mal. Talvez tenha feito pior para mim do que para outros, mas conheci e ainda conheço dezenas de usuários, já entrevistei psiquiatras e neurologistas de todas as correntes e sei que a maconha faz mal.

Se sou contra a descriminalização? Pelo contrário. Sou a favor inclusive da legalização, que golpearia um mercado negro livre de impostos, reduziria o financiamento do crime organizado – a maconha é de longe a droga mais consumida – e reconheceria os dependentes como doentes, que é o que eles são e é o que fui, e não como marginais.

Mas defender a legalização nada tem a ver com a crescente glamourização da droga entre os jovens. Na semana passada, Rihanna, umas das cantoras mais bem-sucedidas da atualidade, anunciou o lançamento de sua própria marca de maconha: MaRihanna (bom trocadilho, admito) será lançada no primeiro semestre de 2016 no Colorado, nos Estados Unidos, onde a erva é legal.

– É a primeira marca de maconha verdadeiramente mainstream no mundo, e tenho muito orgulho disso – declarou a cantora, e até agora não pude compreender o motivo do orgulho.

Há três meses, alguns artistas liderados por Gregório Duvivier postaram fotos em redes sociais acendendo um baseado. Em tese, seria uma campanha pela descriminalização da droga. Na verdade, não passava de uma apologia ao uso da droga: “Saia do armário, poste você também”, escreveu Gregório, estimulando seus seguidores a publicarem imagens com a mesma pose.

Aparentemente contestador, esse tipo de postura com arzinho rebelde não pode ser mais paradoxal quando envolve artistas identificados com bandeiras tão nobres como a liberdade feminina (no caso de Rihanna) e todos os flagelos sociais do Brasil e da humanidade (no caso de Gregório). Que sentido podem ver no incentivo ao consumo da maconha?

Do álcool à heroína, droga nenhuma faz bem a uma sociedade. Usá-las ou não é uma escolha pessoal, mas uma sociedade consciente entenderá a importância de enfraquecê-las, como o cigarro já foi enfraquecido – e só se enfraqueceu porque é uma droga legal, porque foi combatido e tratado como problema de saúde.

Quanto aos meus ataques de pânico, já passaram. Deixei a maconha faz tempo, hoje só fumo cigarro.

Sei que você torceu o nariz para a última frase. Com toda a razão.



22 de novembro de 2015 | N° 18363 
MARTHA MEDEIROS

Simplicidade

Parece simples, deveria ser simples, mas quem é que simplifica a própria existência?


Em 2010, quando lancei uma coletânea de crônicas chamada Feliz por Nada, muita gente começou a me chamar para eventos a fim de que eu falasse sobre felicidade, certos de que eu dominava o tema. Agora está mudando acabo de lançar um livro chamado Simples Assim e andam me convidando para falar adivinhe sobre o quê. Pois é. O que me faz pensar que, ao lançar algum novo livro mais adiante, melhor refletir sobre o título, ou daqui a pouco serei presa por charlatanismo.

Por ora, sou especialista em simplicidade, é o que diz meu crachá. Tenho um bate-papo agendado sobre o assunto, daqui a alguns dias, na sede da The School of Life em São Paulo, então aproveito para rascunhá-lo aqui.

Do que falo quando falo em simplicidade: não de vida franciscana, e sim de vida facilitada.

Parece simples, deveria ser simples, mas quem é que simplifica a própria existência? Quase todo mundo pratica o autoboicote e depois joga a culpa no chefe, nos genes, no governo, no destino, nos astros. Responsabilizar-se pelas consequências do que faz? Não tem emoção, fica faltando o drama.

Chegar no horário. Não responder a provocações. Controlar o ego. Fazer check-ups periódicos. Não mentir. Não protelar. Evitar pessoas muito complicadas. Ouvir música. Manter os amigos por perto. Não desistir ao ouvir o primeiro “não”. Desistir ao ouvir o quinto “não”. Pagar as contas em dia. Produzir. Não levar tudo para o lado pessoal. Não se sentir ofendido por mais de 10 minutos. Atender os próprios desejos. Consertar o que está dando defeito. Ser gentil. Não fofocar demais. Terminar o que começou. Não fingir. Persistir. Manter o bom humor. Cumprir os deveres antes de se liberar pra farra. Não pirar.

Releia os exemplos que dei. Nada tem a ver com fortuna, status, poder. Facilitar a própria vida custa nada. Sai de graça.

Está achando óbvio, eu sei. Só que o óbvio é o primeiro a ser ignorado quando se abre os olhos pela manhã. A maioria das pessoas que conheço está neste momento concordando com esse texto, julgando-se bom exemplo do que está escrito aqui, só que não. Na prática, muitos compram briga à toa, se consideram perseguidos, não toleram imprevistos, reclamam de qualquer besteira, não sabem relativizar, se amarram, colocam os pés pelas mãos e sofrem. Claro.

Dói o que vou dizer, mas direi mesmo assim: somos todos insignificantes. Só o que nos dignifica são nossos sentimentos e nossa generosidade. Vai ser uma sorte se um dia formos lembrados pelos outros com simpatia. Entendo que todos gostariam de inspirar documentários, virar tema de samba-enredo, nome de rua, mas é pouco provável. Chamar a atenção dá uma trabalheira danada: troco fácil por uma tranquila noite de sono.

Melhor ter uma vida boa do que ficar na memória dos outros como um gênio (ou um chato) incompreendido.

sábado, 14 de novembro de 2015



15 de novembro de 2015 | N° 18356 
CARPINEJAR

Separação feliz


Você deve se separar quando está feliz. É meu excêntrico conselho. Porque não adianta se separar na tristeza se continua casado com a alegria do outro. É só a fase ruim passar que terá recaída e esquecerá as mágoas. É só o desentendimento esmorecer e a luz do sol bater na sala e no quarto que o amor manda de novo em casa.

Uma decisão fora de si perderá a validade quando voltar a si.

Você é capaz de rebater os ressentimentos e as brigas com facilidade, justificar o fim com rotina morna e sem sexo, mas não resistirá ao riso do seu par, às promessas de festa, aos carinhos e juras apaixonadas.

Precisa não gostar mais dentro do contentamento, para não cometer o engano de se afastar de uma das facetas de sua companhia e permanecer secretamente vinculado às demais.

A tendência é correr do namoro ou casamento no desespero, por pura ânsia, sem distanciamento do todo, sem recobrar as caminhadas deliciosas de mãos dadas e dos pés se acarinhando de noite.

Se não tem coragem de pedir o desenlace no céu, a queda é ensaio para repetir o voo. É uma sabotagem piorar o que se encontra pior – raro é definir a incompatibilidade na mansidão.

Ao fugir às pressas do que incomoda, será perseguido depois por aquilo que lhe satisfazia e não tem mais. É se dar um tempo sozinho que as lembranças irresistivelmente agradáveis tomarão conta, e se achará um idiota por não comparar o joio e o trigo, a joia e a gema.

Precisa definir o fim durante a reciprocidade, não na falta, a carência é uma miragem e produz distorções e exageros. Precisa elaborar o julgamento na presença, pois reclamar da ausência é parte da saudade.

Precisa propor a partilha no período de paciência, com o juízo firme e a esperança atenta, jamais com o orgulho ferido ou em meio à coerção das gritarias e ofensas.

O problema é que os pares rompem os laços quando estão mal, inventando purgatórios entre os amigos e familiares, e depois sucumbem aos encantos quando se recuperam e se veem pacificados da raiva.

No romance, o inferno é próximo e complementar ao paraíso, mas o medo de uma semana difícil ser para sempre causa precipitações. Se a separação não é feita no momento favorável, é que ainda não está seguro da mudança.

Desamor mesmo é querer ir embora quando tem todos os motivos para ficar. Ir no melhor dia porque nem o melhor dia segura.

Se não ama mais, daí sim nem a alegria fará efeito. Nem o beijo mais longo. Nem o abraço mais demorado e mais cálido. Descobrirá que é um estranho para um estranho, e a intimidade certamente morreu.



15 de novembro de 2015 | N° 18356 
MARTHA MEDEIROS

Vida resolvida


Hoje, a vida resolvida fica para depois que o vivente bater as botas. Antes, tem nada resolvido. Nada

Conversávamos sobre um amigo que ainda reluta sobre o que gostaria de ser quando crescer quando a velha senhora liquidou o assunto: Pouca vergonha. No meu tempo, aos 35 anos as pessoas já estavam com a vida resolvida.

O jovem rapaz em questão tem exatamente 35 anos, casou e se separou, não tem filhos e está pensando em fazer outro curso na universidade, já que não se adaptou à primeira profissão que escolheu. De fato, ele não está com a vida resolvida.

Até pouco tempo atrás era assim, tínhamos um norte a seguir: escolhíamos um par e um trabalho e, dali por diante, seríamos sensatos se não trocássemos mais de rumo, gozando a aposentadoria dos desejos. Nunca mais se preocupar com nada, apenas aproveitar a tal vida resolvida.

Havia quem simulasse direitinho a acomodação, mas se já naquela época o apaziguamento não era tão bem resolvido assim, imagine hoje.

Hoje, minha senhora, a vida resolvida fica para depois que o vivente bater as botas. Aí, sim, estará tudo resolvido, bem resolvido, três palmos abaixo da terra. Antes, tem nada resolvido. Nada.

No fluir dos dias deste século 21, deixamos de ser adolescentes indecisos para nos tornar adultos indecisos, mas vamos tateando, vamos experimentando, que a palavra experiência é que tem justificado todas as atitudes: a experiência de um hobby, de uma viagem, de um amor, de outro amor, e de outro mais. 

A experiência de trabalhar com fotografia e depois trocar pela experiência de trabalhar como professor de violoncelo, e então dirigir um documentário sobre uma orquestra mirim. E depois abrir um restaurante vietnamita, que logo fechará porque surgiu a oportunidade de viver uma experiência botânica num parque no interior de Goiás. Sonhos prestes a se realizarem até que outros sonhos chamem e novas experiências se descortinem: a palavra movimento também está muito em uso, vale lembrar.

Experiência e movimento, dupla dinâmica – dinâmica mesmo – que veio substituir casamento, família e profissão, o trio que amarrava o cristão numa vida resolvida.

Bem vertiginosos, esses novos tempos em que é permitido querer tudo e querer mais, em que ser considerado uma pessoa de confiança não implica em criar raízes numa única cidade, e tampouco em ter uma única mulher ou um único marido para sempre, mas alguns ao longo de uma vida longa. Filhos do primeiro casamento, do segundo – e no terceiro, aleluia, a lua de mel merecida, com os netos visitando de vez em quando. Inventam-se atividades conforme a demanda: ainda haverá cursos profissionalizantes daqui a alguns anos? 

A conclusão de uma faculdade será requisito fundamental para garantir um futuro? Ainda existirá futuro ou o tempo se resumirá a um eterno presente, renovável a cada segunda-feira?

Experiência, movimento. A vida resolvida era segura, mas muito parada.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015



11 de novembro de 2015 | N° 18352 
MARTHA MEDEIROS

Os meus livros do ano


2015 foi o primeiro ano em que tive um perfil no Facebook. E foi o ano em que li menos. Óbvio que tem relação. Já estou tratando de diminuir o tempo que perco furungando no smartphone.

Mesmo assim, deu pra selecionar algumas dicas para estes últimos dias de Feira do Livro de Porto Alegre, atendendo a pedidos.

Começo destacando Stoner, de John Williams, cujo primeiro parágrafo é um spoiler: resume tudo o que virá pela frente. O que a gente não imagina é o quanto esse “tudo”, que abrange a vida inteira de um homem comum, pode ser fascinante. Outra história sobre um homem comum é A Morte do Pai, do norueguês Karl Ove Knausgard, que se divide em duas partes: a adolescência e a maturidade do personagem. O livro cresce do começo para o fim – assim como nós.

Tenho um fraco por Domingos Oliveira. Iniciei 2015 lendo sua ótima autobiografia, Vida Minha, e acabo de ler seu primeiro romance, Antônio: o primeiro dia da morte de um homem. Mesmo escrevendo ficção, Domingos não consegue fugir dele mesmo – ufa. Em ambos os livros, sua marca registrada: o encantamento pelas mulheres, pela vida, pela paixão. Uma prosa repleta de filosofia e um pouco de bandalheira para dar graça à coisa. Solar. Adorável.

Ainda as relações humanas: Pagando por Sexo, do cartunista Chester Brown, traz em quadrinhos uma discussão interessante sobre prostituição, baseada na trajetória pessoal do autor. Desiludido com o amor romântico, Chester decide sair apenas com garotas de programa. Uma reflexão provocativa e inteligente sobre a solidão e as dificuldades de relacionamento.

E ainda biografias: a de Oliver Sacks, Sempre em Movimento, é dinâmica como sugere o título. A neurociência acaba virando pano de fundo para o que salta das páginas: gana de viver. E Elis, uma Biografia Musical, de Arthur de Farias, é obrigatória não só para os fãs da cantora, mas para quem quer enxergar a história da MPB por dentro.

As conversas entre o cineasta José Pedro Goulart e o psicanalista Paulo Sergio Guedes renderam o vibrante É Preciso Viver no Mundo da Lua – um olhar arguto e desestressado sobre a existência.

Poesia? Todas as Mulheres, de Fabrício Carpinejar. Depois de oito anos longe dos versos, ele retoma o gênero e a verve.

Para os adolescentes, Diário de uma Sentimentalista, da jovem e afiada estreante Sthefany Lacerda, que arranca em alta velocidade rumo à conquista de uma voz madura, logo, logo.

Por fim, sugiro David Nicholls e seu Nós, trocadilho para a história de um casal que está junto há 25 anos e que tenta se desamarrar, Três Vezes ao Amanhecer, prosa espetacular do italiano Alessandro Baricco, e Os Largados, do também italiano Michele Serra, um primor de ironia.

Foi o que o Facebook permitiu, esse sanguessuga.

sábado, 7 de novembro de 2015



08 de novembro de 2015 | N° 18349 
CARPINEJAR

Glicose do afeto


Bêbado tem dono, sim. Tem endereço. Tem memória. E merece todos os cuidados.

Quem abusa de bêbado já extraviou o caráter. Quem troça de bêbado não guarda lembrança dos extremos da adolescência e da fragilidade do corpo. Quem zomba de bêbado não enfrentou a severa humildade de dormir abraçado numa privada.

Não se fica com mulher embriagada ou que não responde pelos seus atos. É covardia, golpe baixo, desaforo. O que se deve fazer é dar carona e largá-la em casa – nada mais do que isso. Sedução requer igualdade de condições. Se ela não desfruta de equilíbrio para rejeitá-lo, não resta prêmio em conquistá-la. Zerar na noite é melhor do que não poder se olhar no espelho de manhã.

Não é homem aquele que se aproveita do porre alheio para tirar vantagem. Não cultiva o próprio respeito. Não conta com a mínima compreensão de solidariedade, de educação, de decência (palavra em desuso, infelizmente).

Bêbado é um cachorro atravessando a BR – precisamos diminuir a velocidade para não atropelar.

Não existe nenhuma graça de ver alguém cambaleando, derrubando copos e objetos em dança suicida. O riso excessivo é enganador, significa descontrole, deixou de ser divertido há quatro copos. O sofrimento se expressa também na comédia.

Sempre que um amigo passa de seu limite na bebida, eu sereno imediatamente. Acordo impulsivamente do efeito do álcool.

Um amigo em apuros é o meu café, o meu guaraná cerebral. Desperto de qualquer torpor. Não acentuo o constrangimento e não finjo euforia para cavar confissões e frases engraçadas.

Não debocho dele. Ele não se torna uma piada pela fala presa, pelos tombos ou gafes desesperadas. Não o exponho para os outros. Falo cada vez mais com calma, soletrando, explicando o que está acontecendo e que é recomendável recuar com água ou refrigerante. Sou o chato, sou o careta, sou o pai de meu comparsa, sou a figura que ele vai odiar na balada e chamar de estraga-prazer. Pois tentarei ajudar enquanto ele somente busca enlouquecer. Meus ombros serão passarelas, jamais permitirei que ele seja um mico de auditório, ainda que eu cumpra o papel desagradável de leão de chácara.

É o meu momento de protegê-lo de si mesmo – seu pior inimigo.



08 de novembro de 2015 | N° 18349 
MARTHA MEDEIROS

Amor ao primeiro acorde

Sei que, quando menos esperar, minha música vai tocar bem perto de mim, assim como um amor que a gente sabe que é nosso

Sempre considerei romântico o amor à primeira vista. Você vê alguém de relance e tem certeza de que é a pessoa que sempre quis encontrar, aquela que se encaixa no seu ideal, mas aí você descobre, no dia seguinte, que aquela pessoa não mora na mesma cidade, ninguém sabe seu nome, onde trabalha e que fim levou. A criatura desaparece de cena e você fica apenas com aquele rosto gravado na memória, e a partir de então passa a procurar esse rosto em todas as ruas que atravessa, em todos os bares que frequenta, em todos os aeroportos.

Vivi uma experiência semelhante, mas não envolve uma pessoa, e sim uma música. Eu a escutei há muito tempo numa trilha de filme (desconfio que foi dentro do cinema, nem certeza disso eu tenho). Na época não me liguei tanto – gostei do que ouvi e depois esqueci. Esqueci o filme, inclusive. Ficou tudo retido no passado.

Dois anos atrás eu estava em Londres, caminhando por uma rua de Notting Hill, quando escutei a tal música num alto-falante de um quiosque onde alguém vendia CDs, LPs e outras raridades. Talvez por estar sozinha na capital inglesa, conectada com minhas emoções mais íntimas, escutá-la de novo me comoveu.

Eu não tinha um smartphone para acionar o Shazam a fim de descobrir o que estava tocando. Resolvi apelar para um aplicativo menos tecnológico: a confiança. Fui até o cara do quiosque e perguntei pela música. E aí deu tudo errado. Em vez de ele me dizer que música era aquela, ele me mostrou a capa do CD que estava tocando. Uma coletânea. O sol estava forte naquele sábado e havia muitas outras pessoas em volta manuseando discos e querendo a atenção do vendedor. Passei a enxergar só o braço dele estendido com o meu objeto do desejo nas mãos, enquanto atendia outros clientes. Parecia uma fruteira. Saquei uma nota de cinco libras, peguei o CD e fui embora.

No meu flat não havia onde escutá-lo. Passei os olhos pela lista de músicas e intérpretes e não reconheci nada. Tudo bem. A dúvida manteria o clima de “provoque a sede até não aguentar mais”.

Dias depois, de volta ao Brasil, beijei e abracei minhas filhas, tomei um longo banho e então abri a mala. Tirei de dentro o CD. Rasguei o lacre. E, segurando-o feito um Santo Graal, me encaminhei até o aparelho de som. Não era a primeira faixa. Nem a segunda. Nem a terceira, nenhuma delas. Minha música não estava naquele disco. Picaretas existem em todo lugar.

Passei o CD adiante, não me interessei por nada que tocava nele. Até hoje procuro a minha música em cada loja em que há som ambiente, em cada playlist de festa, nas estações de rádio que ouço no carro e na web, nas trilhas sonoras de minisséries e na casa de amigos. Estou calma. Sei que, quando menos esperar, ela vai tocar bem perto de mim, assim como um amor que a gente sabe que é nosso e que só é preciso paciência até que se revele. E então teremos o resto da vida.



07 de novembro de 2015 | N° 18348
JJ CAMARGO | J.J. CAMARGO

HORA DE ACORDAR!

TRABALHAR COM TRANSPLANTE É DESCOBRIR QUE AS HISTÓRIAS SE REPETEM


Quem já se submeteu ao convívio massacrante da burocracia sabe bem o quanto o burocrata profissional odeia subir a escada hierárquica em busca da solução de um problema que ultrapassou os limites do seu reinado. Provoque essa situação ameaçando-o com a responsabilização pela perda de uma vida humana e ele cederá, mas terás construído um inimigo feroz e duradouro.


O Cláudio Lacerda é um obstinado por fazer o que deve ser feito e ganhou crachá de inscrição instantânea no clube dos que não aceitam que as mazelas de um país pobre sejam limitantes do tamanho dos seus sonhos.

Há 16 anos, começou um programa de transplante de fígado em Recife, e o livro que publicou com histórias emocionantes descreve uma verdadeira corrida com obstáculos, transpostos um a um com persistência invejável, ultrapassando os mil transplantes.

Quem trabalha com transplante descobre que as histórias se repetem, unidas pela energia contagiante que brota da percepção que, quando uma vida pode ser salva, não há dique burocrático que detenha o tsunami da determinação.

A Rana tinha só quatro aninhos mal-vividos pela doença hepática congênita que, desde logo, anunciou que nenhuma paliação seria efetiva. Com a consciência da enorme dificuldade de se conseguir um doador de tamanho compatível com o seu corpinho mirrado, ela foi colocada numa lista de espera plena de improbabilidade.

O anúncio da existência de um doador pediátrico em Maceió euforizou o grupo que viu renascer a esperança de salvar aquela bonequinha de sorriso triste. E foi no embalo dessa expectativa que a burocracia deu o ar da graça. A pessoa que atendeu ao telefone para responder ao pedido de liberação do helicóptero para busca do órgão na capital vizinha antecipou que naquele horário era impossível e, apesar dos apelos, desligou o telefone.

Claro que a capacidade de luta e a tenacidade de quem tinha feito mil transplantes no nordeste brasileiro tinham sido subestimadas. Os intermediários foram dispensados e ele assumiu o controle da operação “Helicóptero Já”. Confirmada a negativa com uma justificativa estúpida como “não pode e pronto”, o primeiro obstáculo foi removido diante da ameaça de que a morte da criança seria a responsabilidade de alguém e que, antes que o telefone fosse novamente desligado, o nome desse alguém tinha que ser anunciado.

Confirmado que esse tipo de gente não se comove, só restava mesmo a ameaça pertinente de responsabilização pela vida desperdiçada. E dum pingo de gente que nem vivera para entender que existem pessoas que não se importam que alguém possa morrer desde que se cumpra o regulamento. No meio da madrugada, com o estresse em ascensão e o tempo se esgotando, a discussão mudou de nível e, acionado o burocrata grau 4, este lançou mão de um argumento que seu cérebro de ervilha deve ter concebido como definitivo: “Helicóptero, a esta hora, só com autorização do governador!”. Maravilha que alguém podia decidir, porque a resposta estava pronta: “Então, acorde o governador!”.

Pouco provável que, em toda a linda história de Pernambuco, um governador tenha sido acordado por uma causa mais justa.

ENQUANTO ISSO, NA ACADEMIA


Na reunião de outubro da Academia Sul-Riograndense de Medicina, sob a presidência do professor Luiz Fernando Jobim, foi revisitado um tema muito atual, a medicina do sono. O encontro teve a participação brilhante de um renomado especialista, Denis Martinez, professor e pesquisador da UFRGS. Alguns tópicos abordados:


- A obrigação de dormir nasce da necessidade de repor a adenosina trifosfato (ATP) nas áreas de maior consumo, no córtex, que faz processamento e, principalmente, na área responsável pela atenção.

- Eliminar a necessidade de dormir é uma possibilidade real. Nos libertaria dessa escravidão e seria uma revolução na vida em sociedade. Por exemplo, trabalharíamos 40 horas de segunda a terça-feira e depois cinco dias de descanso. Grande oportunidade para o ócio criativo!

- Uma das mais importantes funções do sono é permitir a limpeza de proteínas que se acumulam no cérebro. Isso só acontece durante o sono. O acúmulo dessas proteínas está implicado em Parkinson e Alzheimer.

- Apneia do sono, transtorno conhecido há pouco mais de 40 anos, é a maior causa identificável de pressão alta. Pode ser, também, a maior causa de cardiopatia na idade avançada.

- A síndrome da perna inquieta é uma causa comum de insônia e pode ser tratada com altíssima taxa de sucesso. Novas opções de tratamento estão revolucionando o tratamento de vários transtornos do sono e levando ao desuso os famigerados medicamentos tarja preta.

- Parar de fumar reduz o risco de morrer. Tratar a apneia do sono, principalmente em sua forma grave, aquela em que o individuo tem mais de 30 paradas respiratórias por hora, reduz mais ainda.

- Das pessoas com apneia do sono, um terço tem insônia, 40% têm sonolência e os demais são assintomáticos. Por isso, a apneia é chamada – ironicamente – de “o mal silencioso”.

- Homens apresentam 16 vezes mais apneia do sono do que mulheres jovens. Após a menopausa, a frequência se iguala. E de protegidas, as mulheres se tornam as mais vulneráveis, se não forem tratadas.


RUTH DE AQUINO
06/11/2015 - 22h01 - Atualizado 07/11/2015 00h55

AgoraÉqueSouEla

Para minha mãe, que, há quase 70 anos, deixou o marido para escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher


Minha mãe faria 93 anos na semana passada, mas partiu no domingo de Carnaval. Deixou em mim uma saudade imensa e lições de coragem. Dinah ainda não tinha 30 anos quando fugiu do marido, que batia nela. Largou o lar em Campos, Estado do Rio de Janeiro. Deixou seus bens – e, um deles, o maior. Deixou o filho mais velho, levou no colo o menor, bebê. Tinha medo de ser perseguida e morta se levasse os dois filhos. Os irmãos dela a convenceram a agir assim. “Leve só o bebê, senão ele vai atrás de você!”

Não posso nem imaginar sua dor. Não havia divórcio nos anos 1950. Minha mãe veio para o Rio trabalhar com meu avô. Era “desquitada”. Sinônimo de tantos adjetivos depreciativos naqueles tempos. Linda morena, vista como “ameaça” pelas casadas, vista como “fácil” pelos casados. Nem a Igreja a aceitava. Católica ao extremo, perdera o direito de comungar. Foi quando conheceu meu pai na plateia de uma peça de teatro.

Apaixonaram-se à primeira vista. Ele, solteiro, enfrentou a oposição materna para se juntar a minha mãe. Minha avó paterna, gaúcha, era um poço de rigidez. Não via com bons olhos a união de seu caçula com uma desquitada com filho. Resignou-se, mas não me lembro de ter visto minha avó sorrir nas visitas dominicais. A união de meus pais produziu duas filhas e se estendeu “até que a morte os separou”, em fevereiro.

Meu pai não quis que minha mãe continuasse a trabalhar fora. E ela obedeceu. Mas sempre teve muita personalidade e banhava de luz os ambientes. Defendia as filhas, queria que perseguíssemos nossos sonhos. Alfabetizou as filhas em casa, com a ajuda de quadro-negro, giz, livros, cadernos. Fomos para a escola tirando 10 com estrelinha em ditados e redações, graças a suas aulas de ortografia e caligrafia.

Meus pais se casaram oficialmente depois que saiu, em 1977, a lei do divórcio. Quando penso que o divórcio no Brasil só foi legalizado há menos de 40 anos, e que a mulher era obrigada a mudar de nome quando se casasse, e precisava se submeter ao marido em quase tudo, acho uma enormidade o que se avançou em tão pouco tempo. Graças ao feminismo ou às que se insurgiram – e que as mais novinhas se lembrem sempre disso.

Liberdade não se dá, se conquista. E há um longo caminho pela frente. Não tenho nada contra a fé religiosa, mas todas as igrejas são instituições patriarcais e prestaram historicamente um enorme desserviço aos direitos da mulher como ser humano pleno e autônomo. E isso persiste até hoje.

Minha mãe tinha vergonha do desquite. Só descobri na adolescência que eles não eram casados oficialmente. Ela não falava no assunto. Senti orgulho quando soube o que minha mãe precisou fazer para continuar viva e recomeçar, num tempo de trevas e preconceito. Falei a ela de meu orgulho, inúmeras vezes. Mas a morena Dinah tinha um mantra: “Tenha filhos homens, Ruth. Torço por netos homens. Mulher sofre mais”. E sua força mental foi maior que tudo. Eu tive dois filhos homens. Minha irmã teve três filhos homens.

Entre os temas femininos que ressurgiram como bandeiras, está a violência contra a mulher – estupros, espancamentos, assassinatos. Apesar da Lei Maria da Penha, de 2006, uma mulher apanha a cada 15 segundos no Brasil. Segundo a ONU, sete em cada dez mulheres no mundo sofrerão algum tipo de violência física ou sexual ao longo da vida. É espantoso e amedrontador. Já escrevi uma coluna, “O primeiro amor em Copacabana”, contando como, aos 16 anos, quase morri afogada, nas mãos de um namorado ciumento.

No Rio, o indicado pelo prefeito Eduardo Paes a sua sucessão, Pedro Paulo, não conseguirá sair ileso das agressões contra a ex-mulher, Alexandra. Em fevereiro de 2010 ela foi ao IML, e o exame do corpo de delito apontou chutes nas coxas, socos no olho e na boca, dente quebrado. Secretário executivo de Coordenação de Paes, Pedro Paulo admite ter tido uma “briga de casal”, na qual ele foi “arranhado”. “Foi um episódio triste, de descontrole, mas superamos. Traí minha mulher e me arrependo profundamente.”

Pedro Paulo insiste que, por ter sido um incidente isolado, não pode ser enquadrado como violência doméstica. O pior, Pedro Paulo, é que, quando uma briga degringola para esse grau de agressão, nada mais é do que isso: “violência doméstica”. Basta um dia. E, como deputado, secretário e pré-candidato à prefeitura, terá de assumir o ônus.

Certa vez (você lembra?), o infame ex-goleiro Bruno, do Flamengo, condenado por homicídio, defendeu publicamente seu colega Adriano, que batera na namorada: “Qual de vocês nunca saiu na mão com a mulher?”.

Por tudo isso – e mais um pouco – dedico esta coluna a minha mãe, que, há quase 70 anos, decidiu escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015



04 de novembro de 2015 | N° 18345 
MARTHA MEDEIROS

Na real


Quando falo sobre minha atividade como escritora, alguns me julgam modesta, mas de modesta não tenho nada. O que tenho é uma maneira muito própria de encarar meu trabalho. É uma aventura, uma sorte, uma oportunidade, nada mais.

Como o estrelismo anda em alta, acabo passando por humilde, mas lendo o livro Grande Magia, de Elizabeth Gilbert, encontrei alguém que também tem uma ideia pé no chão sobre o que é ser um artista.

Elizabeth é autora de vários livros. Entre eles, o best-seller Comer, Rezar, Amar. Está lançando agora Grande Magia – Vida criativa sem medo, em que relata sua trajetória profissional e dá uma situada sobre como a coisa funciona.

Assumidamente autoajuda, ela incentiva o iniciante a não ter medo de ser rejeitado, medo de parecer um narcisista, medo de que todo mundo já tenha feito melhor do que ele, medo de não ter talento, medo de magoar os parentes, medo de não fazer sucesso. Comece logo, ordena ela. Criar é para os corajosos.

E faz um lembrete importante: não busque a originalidade. Eu tenho batido nessa tecla nos eventos literários em que participo, mas Elizabeth Gilbert é mais famosa do que eu, então ouça o que ela diz: “A maioria das coisas já foi realizada – mas ainda não foram realizadas por você”. Ou seja, troque originalidade por autenticidade. Faça do seu jeito e veremos o que acontece.

Pode acontecer nada. Sua arte provavelmente não será importante para os outros. Assim é. Você não veio ao mundo para salvar ninguém. Apenas faça aquilo que sabe e que lhe dá prazer. Se for bom, o resto virá por consequência. Se não for bom, ao menos você apostou. É o que somos todos: apostadores.

A certa altura, ela reproduz no livro uma resposta que Werner Herzog deu a um cineasta independente que se dizia incompreendido, esnobado, preterido, injustiçado e pobre. “O mundo não tem culpa de você ter decidido ser artista. Não é tarefa do mundo gostar dos filmes que você faz e, sem dúvida, ele não tem nenhuma obrigação de financiar seus sonhos. Ninguém está interessado. Se precisar, roube uma câmera, mas pare de reclamar e volte ao trabalho.”

O problema é que ninguém quer ser reconhecido apenas como um criador disciplinado e meia-boca. As pessoas sonham em se transformar em ícones. Ou um Walter Salles, ou nada. Ou uma Clarice Lispector, ou nem vale iniciar. Se os Titãs conseguiram, por que não eu?

Melhor reduzir as expectativas. O sucesso é um acidente. Simplesmente entre no jogo e pratique muito. Utilize seus momentos de ócio, pois durante o horário comercial será preciso dedicar-se a uma profissão que lhe sustente. Ser artista não é sua profissão. Provavelmente nunca será. E daí? Você não quer se divertir?

Se esse for o real propósito, aí, sim, a tal magia pode acontecer.



04 de novembro de 2015 | N° 18345 
MOISÉS MENDES

Capitalistas


Escrevi no domingo que os empresários estão vendo a banda passar, alheios às decisões políticas que os afetam, e de novo recebi e-mails que me enquadram como anticapitalista e comunista. Não sou anticapitalista e nunca fui e nunca serei comunista, porque não tenho mais idade nem preparo físico.

Ser comunista, disse Picasso, exige muito mais do que ser fascista. O fascista não precisa pensar muito e não tem nenhum compromisso com a reflexão mais complexa. Com a internet, menos ainda.

Mas convivi com alguns colegas comunistas. O grande João Aveline foi o jornalista mais comunista que conheci. Trabalhou aqui na Zero até depois dos 70 anos. Vinha à minha mesa na Editoria de Economia e fazia sempre a mesma provocação: e aí, seu liberal de meia-tigela.

Pois em 1988, como jornalista de Economia, entrevistei um jovem de 37 anos que começava a brilhar no Estado. Comandava as redes de lojas Modacasa e Eletro Shop. Entrevistei José Galló durante quase uma hora, na loja da Ipiranga, numa época em que não havia quase mais nada por perto. Lembro do que ele me disse ao final: nunca concedi uma entrevista tão longa.

Naquele tempo, o comércio não abria aos domingos. Galló desafiou os sindicatos e abriu a Eletro Shop de Canoas num domingo. Na entrevista, ele defende a competição sem proteções e subsídios, exalta o lucro e diz: um dia, o comércio funcionará aos domingos.

Executivo há mais de duas décadas, Galló é o presidente das Lojas Renner. Virou a estrela do varejo aqui e no Exterior. Remoçou a marca e modernizou ambientes e processos das 264 lojas. É referência mundial de ousadia e criatividade. A Renner cresce sem parar, mesmo na crise.

Pois, na segunda-feira, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma entrevista com ele, que passo a usar como recibo contra os que me acusam de comunista. Galló diz que os líderes empresariais brasileiros, distantes do que se passa em Brasília, devem ser protagonistas e ajudar a destravar a economia. A crise é mais política do que econômica, diz Galló.

Naquele 1988, quando o entrevistei, o Brasil quebrado pediu um papagaio de US$ 1,5 bilhão ao FMI. A inflação foi de 1.037,56%. Mas não havia o que enfrentamos hoje – o brutal poder de destruição do que há de pior na política brasileira.

Essa é a melhor frase de Galló sobre a crise política: “Essa luta irresponsável está prejudicando o Brasil”. Ah, se tivéssemos menos chorões e mais capitalistas da estirpe de José Galló.



04 de novembro de 2015 | N° 18345 
FÁBIO PRIKLADNICKI

INIMIGOS E ADVERSÁRIOS


Lendo textos de pensadores das mais diferentes extrações ideológicas, muitas vezes tenho a impressão de que a visão de mundo que cada um deles propõe só funcionaria, na prática, se todo mundo concordasse prontamente em agir conforme tal filosofia. Mas e se o outro não concordar conosco?

Por isso, embora eu não seja lá muito versado em teoria política, tenho me interessado pela leitura do recém-lançado livro Sobre o Político (WMF Martins Fontes), da belga Chantal Mouffe, professora da Universidade de Westminster, na Inglaterra. Dialogando com uma diversidade de autores que vai de Elias Canetti a Freud, ela argumenta que o dissenso é fundamental na democracia, na contramão de teóricos que defendem a eliminação das diferenças. É uma leitura que ajuda a explicar muito do que ocorre no Brasil hoje.

Mouffe acredita que as divergências políticas não devem ser entendidas como uma disputa entre amigos e inimigos, mas sim entre adversários que se respeitam como agentes legítimos no debate democrático. Cá entre nós, é uma ideia que está em consonância com o que dizem os comentaristas esportivos quando pedem paz nos estádios justificando que os torcedores não são inimigos, apenas adversários. 

Nós, brasileiros, portanto, deveríamos entender com facilidade esse princípio, mas não é isso que ocorre. Com a homogeneização dos projetos ideológicos dos maiores partidos políticos, que praticamente implodem a própria ideia de projeto (ou seja, um conjunto de ideias que se diferencia das outras), o debate se polarizou radicalmente ao ponto de os extremos não entenderem como legítimo quem está no lado oposto. Daí a necessidade, do ponto de vista desses radicalismos, de eliminar o inimigo.

Outro efeito da descrença nos projetos partidários, como adianta Mouffe, é a ocupação do campo por outras instituições, como a religião. Contrariando os advogados do racionalismo, a autora defende que a paixão por uma causa – de direita ou esquerda – é essencial para o político e que, no momento em que almejarmos estar além destas diferenças, a própria democracia estará em risco, pois toda hegemonia pressupõe exclusões.



04 de novembro de 2015 | N° 18345
NO ATAQUE | Diogo Olivier

DIVISÃO DA GRANA


Voam por aí números arredondados acerca da premiação oficial aos clubes do Brasileirão. Mas há alguns trocados além dos milhões oferecidos pela Globo, detentora dos direitos de transmissão, do primeiro ao quinto lugar – daí para baixo os valores despencam. No caso do Grêmio, que briga para ficar atrás apenas do Corinthians, seriam R$ 6,3 milhões – e não R$ 6 milhões. Se o campeonato terminasse hoje, o Inter receberia migalhas: R$ 310 mil. Fortuna na minha e na sua vida, merreca na Série A. Não paga o salário de D’Alessandro. São R$ 34,4 milhões repartidos entre quem ficar até o meio da tabela. É praticamente o mesmo valor do ano passado. Eis a divisão da grana:

Campeão R$ 9,3 milhões

Vice R$ 6,3 milhões

3º lugar R$ 4,1 milhões

4º lugar R$ 3,1 milhões

5º lugar R$ 2,1 milhões

6º ao 10º R$ 310 mil

COADJUVANTES FARROUPILHAS


É preciso analisar os contextos específicos, é claro, mas sem revogar o principal. O Grêmio está distante 14 pontos do campeão Corinthians. É um oceano de pontos, de rendimento, de opções no elenco.

O Inter, então, nem de telescópio Hubble vê a equipe construída por Tite: 23 pontos. Grêmio e Inter são meros coadjuvantes. O futebol gaúcho não pode perder a dimensão de sua grandeza.

NASCIDOS NA ALDEIA

A crise aumentou o número de jogadores gaúchos na Arena e no Beira-Rio. No Grêmio são 11. No Inter, 10. A maioria dos naturais da aldeia não é titular, mas ainda assim é prova de que a falta de recursos obriga os dirigentes a rechear o grupo com pratas-da-casa.

É cerca de um terço dos elencos. E nessa soma não entram os da base nascidos em outros estados, como o baiano Walace ou o matogrossense Valdívia.

ARENA PARA A LIBERTADORES

O Grêmio planeja a Libertadores nos gabinetes. O grande objetivo é anunciar a compra da gestão da Arena antes da competição. Não será fácil. Há muitas partes envolvidas e um sem-número de cláusulas para serem vistas e revistas no contrato, cuja redação está em andamento. Mas seria um golaço de marketing.

DESORGANIZAÇÃO COLORADA

A torcida do Inter pegou no pé de Réver pelos seus erros nos gols sofridos no Serra Dourada, mas outros pecaram também. Anderson falhou na cara de Renan. Paulão foi vencido pelo alto nos dois gols do Goiás. No primeiro, Ernando assiste Zé Love entrar pela direita. Se a bola espirrasse do outro lado da área, encontraria um jogador de verde vergonhosamente livre.

No segundo gol, o jogador do Goiás pensa, ergue a cabeça e chuta. Se William, a sua frente, encurtasse o espaço, impediria a bola de ser alçada. Quando o zagueiro fica no mano-a-mano a todo instante com o atacante adversário é por que algo não vai indo bem no todo. O Inter perdeu por desorganização coletiva, e parte dela tem de ser depositada na conta do técnico.

04 de novembro de 2015 | N° 18345 
DAVID COIMBRA

Tu e você


Fiquei bastante satisfeito ao saber que vocês estão resolvendo esse problema do “tu” e do “você”. É algo que me inquieta. Meu filho mesmo, outro dia ele falou “você”.

– Você sabe que...

Deu-me um arrepio na espinha, uma sensação ruim. Não deixei que ele terminasse a frase. Gritei:

– “Tu”, rapaz! “Tu”! Tu é gaúcho! Gaúcho fala “tu”!

Ele ficou um pouco perplexo. E seguiu em frente com a história usando o “tu”: “Tu sabe que...”

Depois me arrependi. Afinal, eu mesmo fico confuso. Em minha defesa, ressalto que gasto certo tempo trabalhando para que meu filho não perca sua identidade de gaúcho e brasileiro, e não está sendo fácil. Esses dias, tentei ensinar-lhe a dança do pezinho, mas ele não se interessou pela coreografia.

Agora, quanto ao “tu” e ao “você”, esse é realmente um problema. A verdade é que nós falamos errado, é preciso admitir. Se a Isolda fosse gaúcha, Roberto Carlos cantaria assim aquele lindo clássico, Outra Vez:

“Tu foi o maior dos meus casos. De todos os abraços, o que eu nunca esqueci

Tu foi, dos amores que eu tive, O mais complicado e o mais simples pra mim”.

Não combina! E, como já disse, trata-se de um erro de concordância. Teria de ser: “Tu foste o maior dos meus casos”. Mas aí tiraria a suavidade da canção tão sentimentalmente interpretada pelo rei. “Tu foste o maior dos meus casos” é frase que diria o meu amigo Amilton Calovi, que é alegretense, para sua chinoca Clarissa.

Os catarinenses fazem um meio-termo, mas erram também. Eles dizem: “Tu fosse”. “Tu fosse” é como brigadiano nas ruas de Porto Alegre: não existe.

Reconheço que o “você” é mais civilizado e facilita a conjugação – sempre devemos facilitar as conjugações. Numa entrevista, jamais uso o “tu”. É uma intimidade imperdoável. Com jovens, como jogadores de futebol, vou de “você”, e, se o entrevistado é mais velho ou é autoridade, chamo-o de “senhor”. Quando um repórter chama um ministro ou um juiz de “tu”, desvaloriza a própria entrevista, porque dá a ela um tom de promiscuidade brejeira. Um dia, vi o Collares, então governador do Estado, destruir um repórter que o tratou como “tu”:

– “Tu”, não: “senhor”. Eu sou governador do Rio Grande do Sul.

O repórter se desmanchou ali mesmo.

Fez muito bem, o Collares. Usar tamanha intimidade, nesse caso, é um desrespeito não apenas com o homem, mas com o posto que ele ocupa e, por consequência, com a população que representa. Quando a Luciana Genro tratava os outros candidatos à Presidência de “tu”, no debate eleitoral, eu me remexia na poltrona, incomodado. Como cidadão brasileiro, espero que um candidato à Presidência do meu país mereça certa deferência. A liturgia do cargo existe para demonstrar a importância do cargo.

Optar pelo “você”, portanto, não será ruim para nós. Eu, inclusive, quando escrevo, te trato como “você”, e faço isso com naturalidade.

Vamos nos render, pois. Optemos pelo “você”. A não ser que você tenha de dizer a mais importante das frases. Aí o “tu” é indispensável. Aí o “tu” mostra o seu valor. Porque ninguém usará “você” para dizer a outra pessoa:

“Eu te amo”.

terça-feira, 3 de novembro de 2015



03 de novembro de 2015 | N° 18344 
CARPINEJAR

Minha Porto Alegre


Como é difícil mostrar a própria cidade. Dois amigos argentinos – Lorenzo e Tomás – vieram visitar Porto Alegre depois de tanto professar a minha paixão. Acostumados com as praias brasileiras, chegaram aqui por absoluta crença nos meus elogios escandalosos para a capital gaúcha.

Fiquei encarregado de provar o meu gosto, e somente me confundi e me amargurei. Apresentei a Usina do Gasômetro no entardecer e aconteceu num dia nublado e o sol não deitou no horizonte, não prateou o Guaíba, e os olhos castanhos da água não se transmudaram em verdes pela luz refletida.

A curiosidade não produzia atenção, não prolongava nenhum lugar na memória da dupla estrangeira. Eles me olharam com pena, como que pedindo mais, e levei os dois para a Feira do Livro, mas ambos conheciam um projeto semelhante em Córdoba, não se mostraram arrebatados e não tinha jeito de singularizar a minha cidade. 

As palavras escapavam. E corri para o terraço da Casa de Cultura Mario Quintana e o meu espanhol era curto para explicar a importância de nosso poeta pensador. E fomos ao porto do Guaíba, ao morro Santa Tereza, aos chopes na ladeira, e a comoção não vinha e a monotonia já parecia eterna.

Eu estava cansado de falar, gesticular e rir de nervoso. Desisti de esclarecer a minha cidade. Entendi que é o mesmo que justificar o porquê de amarmos uma mulher. Como expor visivelmente o que é subjetivo? Como descrever a minha emoção de atravessar a Rua da Praia, calçadão que frequento desde menino? Como detalhar o efeito de caminhar em bairros com a copa fechada das árvores? Como alfabetizar o arrepio, o coração acelerado, o sotaque, o aconchego de um chimarrão na Redenção?

É igual a fundamentar o amor pela esposa, já que não alcançarão o poder da nossa cumplicidade, a telepatia das mãos dela em meu rosto, as longas conversas de apoio quando quero desistir de tudo, o sabor do nosso beijo, as festas e gafes conjuntas, as vitórias e superações sigilosas.

Porto Alegre é inexplicável para os turistas e, paradoxalmente, adorada pelos seus moradores. Os meus amigos só enxergavam os defeitos, e eu com as virtudes engasgadas na garganta.

Voltei para casa ouvindo Nelson Coelho de Castro no carro e cantando sozinho o que é intraduzível, o que não tem rima em outra língua, o que não tem versão em outro crepúsculo.

A única forma de conhecer uma cidade é amando.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015



02 de novembro de 2015 | N° 18343 
DAVID COIMBRA

O mundo é bonito


Já vi coisas bonitas na vida. Já me emocionei com a beleza do mundo. Lembro de quando me pus diante do Duomo de Milão pela primeira vez. Muito tinha lido sobre essa grande catedral gótica e estava ansioso para conhecê-la. Quando enfim pisei na praça em frente à igreja e levantei os olhos para suas paredes brancas, falhou-me a respiração. Era mais magnífica do que podia ter imaginado. E, como um bobo deslumbrado, senti os olhos umedecidos. Mas me contive. Não chorei. Sou do IAPI, afinal.


Fiquei encantado com a beleza de outras cidades. Roma, por seu significado histórico. Paris, porque Paris é Paris. E a mais bela entre todas as belas: o Rio.

Em meio a 10 arco-íris formados pelas Cataratas do Iguaçu, sentindo no peito o poder da natureza, gritei de alegria.

E também me enlevei pelo encanto de certas mulheres. Uma mulher que de repente espia o vento lá fora ou que baixa os olhos e perscruta pensativa os nós dos dedos, que observa os homens grandiosos com condescendência suave, que pendura uma vírgula de melancolia na comissura dos lábios, uma mulher assim com uma pequena tristeza dançando numa esquina da alma, essa é uma mulher para quem você olha e não consegue mais deixar de olhar.

A beleza serve para tocar o espírito.

Agora, estou vivendo numa linda região do planeta, esse gelado e luminoso norte dos Estados Unidos. Outro dia, saí a caminhar e, numa esquina, vi uma arvorezinha. Chamo-a de arvorezinha porque ela é minúscula, perto dos carvalhos imponentes da cidade. Essa arvorezinha está plantada no jardim de uma casa sem qualquer requinte, engastada numa ladeira pouco íngreme, bem na esquina de duas ruas onde não passa carro nenhum. O jardim é aberto, não tem cerca. Se você quiser, pode pisar na terra e tocar na arvorezinha. Foi exatamente o que fiz.

Havia parado a fim de admirar as folhas avermelhadas da arvorezinha. Não sei com certeza se aquilo era vermelho. Talvez fosse rosa ou roxo. Sei que era tão bonito. A copa da arvorezinha não era densa, mas era ampla, como se quisesse dar um abraço.

Foi sentindo isso, sentindo como se estivesse sendo abraçado, que entrei no jardim, me aproximei da arvorezinha e parei sob sua sombra vermelha. Toquei de leve no tronco fino. Levantei o braço. E acariciei uma folha. Virei-me, então, para continuar a caminhada, e aí vi que alguém me observava. Era uma senhora, decerto a dona da casa, parada de pé, ao lado da escada. Olhei-a, surpreso. Ia me desculpar pela invasão, mas ela falou antes. Disse, sorrindo:

– O mundo é bonito. Concordei: – É bonito...

E fui embora, agradecido e um pouco emocionado. Mas só um pouco. Sou do IAPI, afinal.

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