sábado, 7 de novembro de 2015


RUTH DE AQUINO
06/11/2015 - 22h01 - Atualizado 07/11/2015 00h55

AgoraÉqueSouEla

Para minha mãe, que, há quase 70 anos, deixou o marido para escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher


Minha mãe faria 93 anos na semana passada, mas partiu no domingo de Carnaval. Deixou em mim uma saudade imensa e lições de coragem. Dinah ainda não tinha 30 anos quando fugiu do marido, que batia nela. Largou o lar em Campos, Estado do Rio de Janeiro. Deixou seus bens – e, um deles, o maior. Deixou o filho mais velho, levou no colo o menor, bebê. Tinha medo de ser perseguida e morta se levasse os dois filhos. Os irmãos dela a convenceram a agir assim. “Leve só o bebê, senão ele vai atrás de você!”

Não posso nem imaginar sua dor. Não havia divórcio nos anos 1950. Minha mãe veio para o Rio trabalhar com meu avô. Era “desquitada”. Sinônimo de tantos adjetivos depreciativos naqueles tempos. Linda morena, vista como “ameaça” pelas casadas, vista como “fácil” pelos casados. Nem a Igreja a aceitava. Católica ao extremo, perdera o direito de comungar. Foi quando conheceu meu pai na plateia de uma peça de teatro.

Apaixonaram-se à primeira vista. Ele, solteiro, enfrentou a oposição materna para se juntar a minha mãe. Minha avó paterna, gaúcha, era um poço de rigidez. Não via com bons olhos a união de seu caçula com uma desquitada com filho. Resignou-se, mas não me lembro de ter visto minha avó sorrir nas visitas dominicais. A união de meus pais produziu duas filhas e se estendeu “até que a morte os separou”, em fevereiro.

Meu pai não quis que minha mãe continuasse a trabalhar fora. E ela obedeceu. Mas sempre teve muita personalidade e banhava de luz os ambientes. Defendia as filhas, queria que perseguíssemos nossos sonhos. Alfabetizou as filhas em casa, com a ajuda de quadro-negro, giz, livros, cadernos. Fomos para a escola tirando 10 com estrelinha em ditados e redações, graças a suas aulas de ortografia e caligrafia.

Meus pais se casaram oficialmente depois que saiu, em 1977, a lei do divórcio. Quando penso que o divórcio no Brasil só foi legalizado há menos de 40 anos, e que a mulher era obrigada a mudar de nome quando se casasse, e precisava se submeter ao marido em quase tudo, acho uma enormidade o que se avançou em tão pouco tempo. Graças ao feminismo ou às que se insurgiram – e que as mais novinhas se lembrem sempre disso.

Liberdade não se dá, se conquista. E há um longo caminho pela frente. Não tenho nada contra a fé religiosa, mas todas as igrejas são instituições patriarcais e prestaram historicamente um enorme desserviço aos direitos da mulher como ser humano pleno e autônomo. E isso persiste até hoje.

Minha mãe tinha vergonha do desquite. Só descobri na adolescência que eles não eram casados oficialmente. Ela não falava no assunto. Senti orgulho quando soube o que minha mãe precisou fazer para continuar viva e recomeçar, num tempo de trevas e preconceito. Falei a ela de meu orgulho, inúmeras vezes. Mas a morena Dinah tinha um mantra: “Tenha filhos homens, Ruth. Torço por netos homens. Mulher sofre mais”. E sua força mental foi maior que tudo. Eu tive dois filhos homens. Minha irmã teve três filhos homens.

Entre os temas femininos que ressurgiram como bandeiras, está a violência contra a mulher – estupros, espancamentos, assassinatos. Apesar da Lei Maria da Penha, de 2006, uma mulher apanha a cada 15 segundos no Brasil. Segundo a ONU, sete em cada dez mulheres no mundo sofrerão algum tipo de violência física ou sexual ao longo da vida. É espantoso e amedrontador. Já escrevi uma coluna, “O primeiro amor em Copacabana”, contando como, aos 16 anos, quase morri afogada, nas mãos de um namorado ciumento.

No Rio, o indicado pelo prefeito Eduardo Paes a sua sucessão, Pedro Paulo, não conseguirá sair ileso das agressões contra a ex-mulher, Alexandra. Em fevereiro de 2010 ela foi ao IML, e o exame do corpo de delito apontou chutes nas coxas, socos no olho e na boca, dente quebrado. Secretário executivo de Coordenação de Paes, Pedro Paulo admite ter tido uma “briga de casal”, na qual ele foi “arranhado”. “Foi um episódio triste, de descontrole, mas superamos. Traí minha mulher e me arrependo profundamente.”

Pedro Paulo insiste que, por ter sido um incidente isolado, não pode ser enquadrado como violência doméstica. O pior, Pedro Paulo, é que, quando uma briga degringola para esse grau de agressão, nada mais é do que isso: “violência doméstica”. Basta um dia. E, como deputado, secretário e pré-candidato à prefeitura, terá de assumir o ônus.

Certa vez (você lembra?), o infame ex-goleiro Bruno, do Flamengo, condenado por homicídio, defendeu publicamente seu colega Adriano, que batera na namorada: “Qual de vocês nunca saiu na mão com a mulher?”.

Por tudo isso – e mais um pouco – dedico esta coluna a minha mãe, que, há quase 70 anos, decidiu escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher.

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