quarta-feira, 4 de novembro de 2015


04 de novembro de 2015 | N° 18345 
DAVID COIMBRA

Tu e você


Fiquei bastante satisfeito ao saber que vocês estão resolvendo esse problema do “tu” e do “você”. É algo que me inquieta. Meu filho mesmo, outro dia ele falou “você”.

– Você sabe que...

Deu-me um arrepio na espinha, uma sensação ruim. Não deixei que ele terminasse a frase. Gritei:

– “Tu”, rapaz! “Tu”! Tu é gaúcho! Gaúcho fala “tu”!

Ele ficou um pouco perplexo. E seguiu em frente com a história usando o “tu”: “Tu sabe que...”

Depois me arrependi. Afinal, eu mesmo fico confuso. Em minha defesa, ressalto que gasto certo tempo trabalhando para que meu filho não perca sua identidade de gaúcho e brasileiro, e não está sendo fácil. Esses dias, tentei ensinar-lhe a dança do pezinho, mas ele não se interessou pela coreografia.

Agora, quanto ao “tu” e ao “você”, esse é realmente um problema. A verdade é que nós falamos errado, é preciso admitir. Se a Isolda fosse gaúcha, Roberto Carlos cantaria assim aquele lindo clássico, Outra Vez:

“Tu foi o maior dos meus casos. De todos os abraços, o que eu nunca esqueci

Tu foi, dos amores que eu tive, O mais complicado e o mais simples pra mim”.

Não combina! E, como já disse, trata-se de um erro de concordância. Teria de ser: “Tu foste o maior dos meus casos”. Mas aí tiraria a suavidade da canção tão sentimentalmente interpretada pelo rei. “Tu foste o maior dos meus casos” é frase que diria o meu amigo Amilton Calovi, que é alegretense, para sua chinoca Clarissa.

Os catarinenses fazem um meio-termo, mas erram também. Eles dizem: “Tu fosse”. “Tu fosse” é como brigadiano nas ruas de Porto Alegre: não existe.

Reconheço que o “você” é mais civilizado e facilita a conjugação – sempre devemos facilitar as conjugações. Numa entrevista, jamais uso o “tu”. É uma intimidade imperdoável. Com jovens, como jogadores de futebol, vou de “você”, e, se o entrevistado é mais velho ou é autoridade, chamo-o de “senhor”. Quando um repórter chama um ministro ou um juiz de “tu”, desvaloriza a própria entrevista, porque dá a ela um tom de promiscuidade brejeira. Um dia, vi o Collares, então governador do Estado, destruir um repórter que o tratou como “tu”:

– “Tu”, não: “senhor”. Eu sou governador do Rio Grande do Sul.

O repórter se desmanchou ali mesmo.

Fez muito bem, o Collares. Usar tamanha intimidade, nesse caso, é um desrespeito não apenas com o homem, mas com o posto que ele ocupa e, por consequência, com a população que representa. Quando a Luciana Genro tratava os outros candidatos à Presidência de “tu”, no debate eleitoral, eu me remexia na poltrona, incomodado. Como cidadão brasileiro, espero que um candidato à Presidência do meu país mereça certa deferência. A liturgia do cargo existe para demonstrar a importância do cargo.

Optar pelo “você”, portanto, não será ruim para nós. Eu, inclusive, quando escrevo, te trato como “você”, e faço isso com naturalidade.

Vamos nos render, pois. Optemos pelo “você”. A não ser que você tenha de dizer a mais importante das frases. Aí o “tu” é indispensável. Aí o “tu” mostra o seu valor. Porque ninguém usará “você” para dizer a outra pessoa:

“Eu te amo”.

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