sábado, 6 de julho de 2019



06 DE JULHO DE 2019
CARPINEJAR

Cuidado com o que não vê

As pessoas estão revoltadas, passionais, imediatistas. Mesmo quando têm razão, perdem a razão pelo descontrole, por gritar, por destratar.

Elas já se sentem enganadas por antecipação. Como se todos, sem exceção, tivessem segundas intenções e ansiassem por obter vantagem.

Os olhos não enxergam mais, somente recebemos a realidade pela boca aberta, disparando insultos.

Uma senhora entrou em um ônibus na Capital, na parada da Igreja São Sebastião.

Percebeu que estava lotado, não havia lugar na frente ou nos fundos. Observou os assentos dianteiros e vermelhos reservados aos idosos, gestantes e deficientes físicos e direcionou o seu ódio a um jovem escorado na janela. Ele cochilava. Ela entendeu que, na verdade, dissimulava, fingia cansaço, disfarçava o roubo da cortesia.

Ela não foi nem um pouquinho educada e discreta:

- Ei, ei, pode levantar daí! Esse lugar não é seu!

- Como assim? - ele respondeu, assustado.

- É uma vergonha deixar uma velha como eu, com quatro netos, aposentada, de pé.

- A senhora acabou de entrar. Não a tinha visto.

- Não importa quando entrei, importa que você não deveria estar sentado aí. Mais respeito com quem merece. É uma roubalheira. Ninguém respeita nada. Tudo é malandragem. Tudo é safadeza.

- A senhora não pode me ofender. Calma, sem escândalo! Vou sair já, um minutinho.

- Escândalo? Lutar pelos nossos direitos é escândalo? Não fica nem vermelho. Um minutinho nada, sai agora seu moleque, sai!

- Não precisa ser grossa.

- Grossa? Agradeça por não ser linchado, por não ser posto para fora do ônibus, por não receber um pontapé na bunda.

O bate-boca foi crescendo de modo assustador. Ela ameaçou bater nele com a sua bolsa, segurando a alça como um chicote.

Os passageiros levantavam os seus celulares filmando e sonhando com os milhões de acessos no YouTube.

O rapaz, então, levantou-se com muito esforço, pedindo licença, pedindo ajuda, pedindo passagem. Estava amparado em muletas, havia perdido a sua perna esquerda.

Houve um silêncio constrangedor. Diante das freadas súbitas do transporte, ele se segurava na barra de cima com uma mão e com a outra buscava manter o frágil equilíbrio da perna inexistente.

A idosa buscou consertar a sua injustiça, e piorou o soneto:

- Não vi que era um aleijado.

O jovem, que ia fazer avaliação no Hospital de Clínicas, na Avenida Ramiro Barcelos, apenas corrigiu: - Aleijado é quem não tem alma.

CARPINEJAR

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