sábado, 6 de julho de 2019



06 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

Chuvas de verão

Acho que o velhinho aqui da frente morreu. Não o tenho visto. Eu o via sempre da minha sacada, a casa dele fica a poucos metros de distância. Ele mora com a mulher, que também é bem velhinha. Os dois têm cabelos brancos da neve de janeiro e se deslocam com andadores de metal. Calculo que estejam com 90 anos ou mais.

Uma cuidadora mora com eles, o que significa que pobres não são. Esses profissionais ganham muito bem nos Estados Unidos. Dificilmente você contrataria um cuidador por menos de US$ 3 mil ao mês. E, se precisa morar junto, como no caso do meu vizinho, é muitíssimo mais.

Quando o dia está bonito, a cuidadora leva os dois para tomar chá fora de casa, num patiozinho que eles têm. Eu estou aqui, escrevendo, olho pela janela e os vejo saindo pela porta dos fundos. Aí, me detenho no meio da frase. Não interessa se é uma vírgula que estou puxando pela cauda ou um acento que estou fincando na testa de uma vogal, não interessa se estou prestes a encontrar o verbo mais formoso: paro tudo. E fico a observar. 

A cuidadora primeiro põe a mesinha, depois busca um dos velhinhos, que avança lentamente, atrás daquele andador. Em seguida, vem o que ficou esperando na cozinha. Por fim, eles se acomodam, um diante do outro. Tomam chá, suponho que seja chá, e conversam um pouco e calam muito e, de repente, se olham em silêncio.

Gosto quando se olham.

Porque me ponho a especular: há quanto tempo estarão juntos? Cinquenta anos? Sessenta?

Digamos que sejam 50. Você conhece de sobejo uma pessoa quando vive todo esse tempo com ela. Você já passou de tudo em sua companhia. Houve decepções e alegrias, perdas e ganhos, amigos e familiares morreram ou se mudaram de cidade, e vocês ainda estão juntos. Então, em uma tarde de sol ameno, vocês se olham por cima de uma mesa de chá e, o mais espetacular, sorriem um para o outro.

É disso que gosto: eles, às vezes, sorriem um para o outro. Duas vidas inteiras compartilhadas, e eles veem motivos para se alegrar, quando se olham. Devia ser banal; é especial.

Quando vejo essa cena, chamo a Marcinha:

- Eles estão sorrindo!

A Marcinha não fala nada, mas sei que ela está cogitando se, um dia, bem velhinhos, nós também seremos assim. Quem não pensaria o mesmo? Um amor antigo, com a solidez e a suavidade que só o tempo é capaz de produzir, um amor desses é o mais belo que há.

Mas não tenho mais visto o velhinho. Nem passando devagar, atrás da janela, pela cozinha da casa, nem no chá vespertino, na sombra do pátio. Na verdade, a cuidadora não botou mais a mesa para o chá, apesar de o verão ter chegado ao norte do mundo e os dias estarem tão aprazíveis.

Nesta semana, no fim de uma tarde quase quente, a Marcinha estava na sacada e me chamou:

- A velhinha está saindo!

Fui ver. Ela ultrapassou a porta dos fundos passo a passo, com a cuidadora segurando-lhe a ponta do cotovelo. Ficou parada de pé, debaixo de uma árvore. A cuidadora foi para dentro e ela continuou lá, sozinha. Não tomou chá, não fez mais nada. Apenas manteve-se parada, fitando o vazio. Não sei se estou imaginando, mas acho que vi um brilho úmido em seus olhos. Talvez. Não sei. Só sei que, minutos depois, a cuidadora a buscou e a conduziu de volta para o escuro da casa. 

E ela me pareceu mais vagarosa e mais triste. O que terá sido feito do velhinho? Espero que esteja bem. Espero que ele logo saia à rua para tomar seu chá da tarde. E que olhe de novo nos olhos da sua velhinha e ela olhe nos olhos dele e os dois troquem sorrisos mansos e cheios de significado. Em silêncio.

DAVID COIMBRA

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