sábado, 7 de setembro de 2019



07 DE SETEMBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Efeitos colaterais de Woodstock

Estamos no período de aniversário de 50 anos de Woodstock, marco da contracultura. Os festejos soam apenas nostálgicos, não escuto nada de novo sendo dito. Não sei se viverei para ver uma interpretação distanciada desse movimento. Por enquanto, ele segue enaltecido e sem crítica. De qualquer maneira seria difícil, pois estamos tanto sob seus efeitos, como somos - enquanto geração que dá o tom no planeta - fruto dessa mudança.

Não chegou ainda um olhar externo que avalie qual realmente o alcance de sua importância e quais seus equívocos. De essencial desbancamos a hierarquia entre as gerações e a força da tradição. Houve um progresso na liberdade pessoal, o exercício da sexualidade voltou a ser como antes de séculos de repressão religiosa. Cada indivíduo agora pode - pelo menos em tese - inventar-se como bem lhe aprouver.

Sem nenhuma, mas nenhuma mesmo, saudade do mundo anterior, mas haveria efeitos colaterais da revolução de costumes da metade final do século 20? Estranho que ninguém conecte nada do nosso mal-estar da civilização atual a seu legado. Tudo teria sido positivo?

Eu colocaria duas dúvidas no coro dos contentes. Primeiro: a hipertrofia da adolescência e como consequência a dificuldade de se portar como adulto que os baby boomers - nome que se dá aos nascidos desde o pós-guerra até 1960 - têm e tiveram. Eles foram a primeira geração que massivamente viveu e criou uma cultura da adolescência e portanto a idealizam como grande momento da vida. Antes crescer era bom, hoje é uma perda. Envelhecer era ruim, mas não uma tragédia como agora.

Segundo: essa geração criou a filosofia do tudo é relativo. Desconstrução é a palavra de ordem para dizer que não se pode dizer nada. O saudável questionamento e a abertura para a pluralidade dos saberes deu lugar a ideologias que circulam em um vazio metafísico e neutralizam que qualquer coisa valha. Em nome da democracia da multiplicidade dos outros vieses, anularam-se todos.

O terraplanismo, cito apenas a mais conhecida e cretina manifestação de crítica à ciência, não teria como pai a aceitação de qualquer delírio bizarro pela onda New Age? Lembram da Era de Aquário, quando toda manifestação cultural, da astrologia à mitologia de uma obscura tribo indígena, podia ser equiparada a qualquer outro saber? Lembram da proliferação da picaretagem dos gurus esotéricos? Essa geração colocou em xeque qualquer hierarquia, por que não o modo como justificamos um corpo de conhecimento? Ela não teria aberto as portas para o atual analfabetismo científico?

Repito, eu me sinto muito à vontade entre a minha geração e me orgulho dela, mas acho que somos demasiado condescendentes com alguns imbróglios que criamos e que nem o excesso de maconha justifica.

MÁRIO CORSO

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