sábado, 4 de abril de 2020



04 DE ABRIL DE 2020
VARIANDO

O vírus chinês

Nosso cérebro suporta muita coisa, mas é frágil para o vazio de sentido. Ele procura padrões, busca a lógica, quer ordenar o acaso. Ao caos e pavor que estamos vivendo com a covid-19 na saúde, com seus sérios reflexos políticos e catastróficos problemas econômicos, não poderia faltar uma explicação objetiva.

Surge então a ideia de que alguém o criou e estaria ganhando com isso, ou que existiria um propósito oculto que nos escapa. Como admitir que algo dessa magnitude, que afeta todas as vidas do planeta, não teria um vetor claro, uma razão de ser?

Aqui entra o pensamento mítico. Ele é a cola universal para o caos, qualquer cenário confuso e/ou contraditório pode ser amarrado em um todo de aparente coerência. O mito pode nos orientar, dentro da neblina de indeterminação, inventando uma trama que ligue os pontos soltos.

Usando desse nosso arcaico, mas sempre à mão, modelo de pensar, que guarda semelhanças com a paranoia, lançou-se a tese do vírus chinês. Abre-se um arco de insinuações que desemboca na suspeita de que a China teria artificialmente desenhado o vírus para desestabilizar a economia do Ocidente. Para não despertar suspeitas, sacrificou alguns dos seus.

A tese pega fácil por costurar preconceitos com medos. O mais óbvio é o racismo, mas temos uma dose de xenofobia temperada com o temor do poderio econômico chinês. Junte na poção o vírus ser originário de um país comunista. Na verdade, a China é um sistema híbrido: centralismo econômico, com ilhas de capitalismo, costurado com uma ditadura política.

Seja como for, quando nos distanciamos no olhar histórico, se o século 20 foi americano, há boa chance de o século 21 ser chinês. Quem lida com números na economia já se deu conta de que o dragão acordou. Um país enorme, com a maior população da Terra e uma cultura milenar, tornou-se uma potência. Falta-lhe o soft power, o poder de influenciar comportamentos, que aos americanos sobra. Podemos admirá-los, mas ninguém quer ser chinês nem viver lá.

O pensamento mítico criou essa tese esdrúxula, que ajuda a lidar com o medo do novo papel da China no mundo. E ainda devolve uma lógica onde só existe aleatoriedade. A história humana tem leis, a China não está aonde chegou por acaso. Porém há o imponderável, que pode dar as cartas e levar o mundo para uma rota impensada.

Biólogos e epidemiologistas alertavam para essa possibilidade. Quem os leu, como Bill Gates, alertou. Mas como, quando seria e qual desastre não tinham resposta. Sabem que vírus pulam de espécie e que tanto criações em cativeiro quanto mercados de espécies vivas aumentam exponencialmente esse risco, que também acontece naturalmente.

O pensamento mítico devolve a crença em um universo previsível. Mas, de fato, um simples vírus mostra como o destino humano está longe de ser controlado.

MÁRIO CORSO

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